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1.
As máscaras como representação geral
Quando
se trata com máscaras, procura-se ir para além do lugar comum: máscara
como disfarce, como alegoria, como simulação teatral? “Bem te conheço, ó máscara!” é aliás locução conhecida, inscrita num
cenário ou de festa ou de
período carnavalesco mas que contudo não esgota o significado que a
máscara pode ser ou inevitavelmente é em circunstâncias específicas. E
muitas vezes tal asserção transtorna os imaginários por esta razão muito
simples: a máscara é uma projecção de nós nos outros, havendo todo um “background” histórico que nos impele numa determinada direcção, pois
de acordo com especialistas a máscara começou por ser
encenação ritual no
encalço da imitação do rosto dos “deuses”
ou do que como tal se tomava. E depois, com o correr do tempo, esvaziado
que fôra esse sentido primevo, passou a ser uma simulação de cariz
sacerdotal, dentro dum sagrado já perdido enquanto
visão imanente ou dependente
dum real que se contemplara.
Ultimamente,
neste nosso tempo dessacralizado e filho dum inconsciente colectivo ou
dum subconsciente forjado pelas publi-imagens, ou
imagens de substituição,
multiplicaram-se as fantasias como por exemplo as provenientes da
cultura de massas ou cultura
popular assim chamada. Por exemplo as fantasias
à Batman que, nesse caso,
são a face normalizada e em versão cinéfila dum dos mais antigos
mitos do Homem revisitado pelo
marketing hollywoodesco: o vingador que sai das sombras mas é
portador da luz, o anti-minotauro que, por razões diversas e muito
próprias (megalomania positiva,
adesão a monomanias justiceiras animais, fervor pelo insólito) resolve
colocar os seus poderes de máscara poderosa ao serviço da comunidade
ferida pelas prepotências diversas. Que é como quem diz: uma espécie de
activista imerso em penumbra planejada que, em vez de transportar
consigo soluções sociais permitidas, políticas, de cidadania legitimada,
traz para o mundo da razão a força dos seus músculos e o engenho da sua
perspicácia num universo societário e conceptual paralelo mas que se
torna benéfico e reconfortado (reconfortante?). E a quem a comunidade
quotidiana, sem máscara ou com a máscara transparente dos direitos
frente aos díscolos, aplaude com ardor, enlevada pelas façanhas desse
transformado cuja missão é
transformar/modificar sem se dar
a conhecer no seu contexto de personalidade civil.
Nesta
perspectiva particular a máscara propõe pois o indizível, o
impossível aos que não dispõem
desse artefacto que pressupõe poderes mais vastos e eficientes. Sem a
sua máscara, no caso vertente, o homem-morcego não passa dum argentário
vulgar, algo excêntrico e snob
mas apenas dono de um lirismo um pouco ingénuo que o aproxima do
diletantismo de filho-família. Mas assim que assume a máscara o
personagem muda literalmente de figura…
Sendo uma
clara face de substituição, mesmo de transfiguração como ficou sugerido,
a máscara é igualmente uma projecção dos nossos continentes submersos,
das partes demasiado sugestivas e reveladoras do
duplo que se acoita nos nossos
compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as
actuações que doutra forma não
teriam ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos
esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua
pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara
revela/desvela: o que somos
intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca
patentearíamos à realidade circundante e colectiva.
E sendo o
teatro (ou o theatrum mundi), como é, a assunção plena da máscara, natural se
torna que todos sejamos um pouco actores, ora num plano de recusa ora no
da aceitação de uma certa estratégia de
saber viver numa sociedade em
que as mais graves encenações se apresentam contemporaneamente de forma
“aberta” mas num universo em que o grosso da população praticamente
perdeu a privacidade na polis
em que os donos da realidade fingem que tudo continua a existir
normalmente. (Quem não sabe que, hoje por hoje, o reino dos que mandam
no quotidiano é uma completa
mascarada?).
Nesta
conformidade, o grande e real perigo que nos espreita é que a máscara se
nos cole à cara, fazendo com que o imaginário encenado, para uma
hipótese mínima de defesa, passe para o lado de lá do palco.
Que é como quem
diz: para o lado de cá da existência em sociedade…
2.
As máscaras como representação do artista
Neste
impressionante acervo de quarenta e cinco máscaras proposto por Floriano
Martins o que de imediato salta aos olhos é a sua
modificação expressiva. Não
são máscaras, digamos, para
usar mas para contemplar, para
ver, na verdade para que o
destinatário – que é o público em geral, se assim me exprimo – se
encontre frente ao mistério que elas sugerem. Que elas são –
constituindo matéria ora de maravilhamento ora de espanto, ora de
inquietação (ora mesmo de medo) frente ao inusitado da transfiguração.
E tal facto é
sublinhado pelos títulos que as certificam, que obviamente as definem
tanto no mundo da expressividade como no do humor negro, da surpresa e
da eventual estranheza que ante elas se sintam. Máscaras de teatro? Não
o afirmarei. Máscaras sobretudo de arte criada por intermédio duma
vivência em que o experimentador joga com um certa tradição mas
principalmente com os contrastes mais íntimos de quem as pode observar,
num jogo incessante (incessado?) de sugestões e de procuras propiciado
pelas novas tecnologias de que dispõe hoje em dia um autor plástico
capacitado.
Pela
visão do conjunto percebe-se, sente-se, que a
máscara com que estamos a contas é todo um
engendro patenteado em diferentes recorrências, em diversas
visualizações, em diversas montagens calibradas por uma ideia base: elas
trazem já em si corpos, transportam subjacentes transmutações carnais,
são já o elemento humano que em si-mesmo se transfigurou, se projecta
então num universo multifuncional e objectivo que só neste mundo
ficcionado cobra a representatividade que lhe é própria fazendo jus à
frase canónica de que a Arte, afinal, não é uma
verdade mas uma
mentira que torna possível a Realidade. Ou seja, por palavras
operativas eficazes: que, transtornando a “verdade” que é a mentira
global societária em que subsistimos (em que conseguimos ir
subsistindo?) atinge e consagra uma realidade mais funda, ou apenas
realmente verdadeira, para
além do Bem e do Mal que os controladores sociais apresentam como
inevitáveis. E que não são mais que impostura num contexto por eles
criado e mantido e onde tentam
que não tenha lugar a imaginação
criadora, pedra philosofal da Liberdade.
E nestas
máscaras compósitas integrando uma
intenção, como em toda a verdadeira obra artística, não se detecta
uma mística nem mesmo uma metafísica – inúteis e complicativas, alibis
para encandear ingénuos ou os que por razões específicas vivem afastados
(pois os afastaram) do conhecimento verdadeiro e da sabedoria possível.
Estão ali, frente aos nossos olhos, na sua naturalidade e na sua nudez
real (e consequentemente surreal, que é a realidade em todas as direcções), constituindo
corpo concreto ainda que solúvel numa globalidade que por estes meios se
desamarra.
Aqui,
nelas, “on ne peut évidemment s’atendre à une autre jugement sur ce symbol”,
como referia Guillaume d’Auvergne citado por Justin van Lennep, “senão
àquele que era comum aos alquimistas e aos sábios de antanho”.
E é este o
justíssimo intuito, a meu ver, deste autor que me habituei a
estimar – entendendo nesta
palavra o que de salubre e de fundamental existe numa criação visando a
permanência duma proposta transfiguradora e, para tudo dizer,
intemporal.
Casa do Atalaião de Portalegre, Setembro de 2012
Nicolau
Saião
(Os textos
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