REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 32 | outubro | 2012

 
 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO

Sobre Máscaras,
de Floriano Martins
 

Nicolau Saião (Portugal). Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário”.
 

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1.      As máscaras como representação geral

     Quando se trata com máscaras, procura-se ir para além do lugar comum: máscara como disfarce, como alegoria, como simulação teatral? “Bem te conheço, ó máscara!” é aliás locução conhecida, inscrita num cenário ou de festa ou de período carnavalesco mas que contudo não esgota o significado que a máscara pode ser ou inevitavelmente é em circunstâncias específicas. E muitas vezes tal asserção transtorna os imaginários por esta razão muito simples: a máscara é uma projecção de nós nos outros, havendo todo um “background” histórico que nos impele numa determinada direcção, pois de acordo com especialistas a máscara começou por ser encenação ritual no encalço da imitação do rosto dos “deuses” ou do que como tal se tomava. E depois, com o correr do tempo, esvaziado que fôra esse sentido primevo, passou a ser uma simulação de cariz sacerdotal, dentro dum sagrado já perdido enquanto visão imanente ou dependente dum real que se contemplara.

   Ultimamente, neste nosso tempo dessacralizado e filho dum inconsciente colectivo ou dum subconsciente forjado pelas publi-imagens, ou imagens de substituição, multiplicaram-se as fantasias como por exemplo as provenientes da cultura de massas ou cultura popular assim chamada. Por exemplo as fantasias à Batman que, nesse caso, são a face normalizada e em versão cinéfila dum dos mais antigos mitos do Homem revisitado pelo marketing hollywoodesco: o vingador que sai das sombras mas é portador da luz, o anti-minotauro que, por razões diversas e muito próprias (megalomania positiva, adesão a monomanias justiceiras animais, fervor pelo insólito) resolve colocar os seus poderes de máscara poderosa ao serviço da comunidade ferida pelas prepotências diversas. Que é como quem diz: uma espécie de activista imerso em penumbra planejada que, em vez de transportar consigo soluções sociais permitidas, políticas, de cidadania legitimada, traz para o mundo da razão a força dos seus músculos e o engenho da sua perspicácia num universo societário e conceptual paralelo mas que se torna benéfico e reconfortado (reconfortante?). E a quem a comunidade quotidiana, sem máscara ou com a máscara transparente dos direitos frente aos díscolos, aplaude com ardor, enlevada pelas façanhas desse transformado cuja missão é transformar/modificar  sem se dar a conhecer no seu contexto de personalidade civil.

   Nesta perspectiva particular a máscara propõe pois o indizível, o impossível aos que não dispõem desse artefacto que pressupõe poderes mais vastos e eficientes. Sem a sua máscara, no caso vertente, o homem-morcego não passa dum argentário vulgar, algo excêntrico e snob mas apenas dono de um lirismo um pouco ingénuo que o aproxima do diletantismo de filho-família. Mas assim que assume a máscara o personagem muda literalmente de figura…

   Sendo uma clara face de substituição, mesmo de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela: o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos à realidade circundante e colectiva.

   E sendo o teatro (ou o theatrum mundi), como é, a assunção plena da máscara, natural se torna que todos sejamos um pouco actores, ora num plano de recusa ora no da aceitação de uma certa estratégia de saber viver numa sociedade em que as mais graves encenações se apresentam contemporaneamente de forma “aberta” mas num universo em que o grosso da população praticamente perdeu a privacidade na polis em que os donos da realidade fingem que tudo continua a existir normalmente. (Quem não sabe que, hoje por hoje, o reino dos que mandam no quotidiano é uma completa mascarada?).

   Nesta conformidade, o grande e real perigo que nos espreita é que a máscara se nos cole à cara, fazendo com que o imaginário encenado, para uma hipótese mínima de defesa, passe para o lado de lá do palco.

  Que é como quem diz: para o lado de cá da existência em sociedade…

2.     As máscaras como representação do artista

 

   Neste impressionante acervo de quarenta e cinco máscaras proposto por Floriano Martins o que de imediato salta aos olhos é a sua modificação expressiva. Não são máscaras, digamos,  para usar mas para contemplar, para ver, na verdade para que o destinatário – que é o público em geral, se assim me exprimo – se encontre frente ao mistério que elas sugerem. Que elas são – constituindo matéria ora de maravilhamento ora de espanto, ora de inquietação (ora mesmo de medo) frente ao inusitado da transfiguração.

  E tal facto é sublinhado pelos títulos que as certificam, que obviamente as definem tanto no mundo da expressividade como no do humor negro, da surpresa e da eventual estranheza que ante elas se sintam. Máscaras de teatro? Não o afirmarei. Máscaras sobretudo de arte criada por intermédio duma vivência em que o experimentador joga com um certa tradição mas principalmente com os contrastes mais íntimos de quem as pode observar, num jogo incessante (incessado?) de sugestões e de procuras propiciado pelas novas tecnologias de que dispõe hoje em dia um autor plástico capacitado.

    Pela visão do conjunto percebe-se, sente-se, que a máscara com que estamos a contas é todo um engendro patenteado em diferentes recorrências, em diversas visualizações, em diversas montagens calibradas por uma ideia base: elas trazem já em si corpos, transportam subjacentes transmutações carnais, são já o elemento humano que em si-mesmo se transfigurou, se projecta então num universo multifuncional e objectivo que só neste mundo ficcionado cobra a representatividade que lhe é própria fazendo jus à frase canónica de que a Arte, afinal, não é uma verdade mas uma mentira que torna possível a Realidade. Ou seja, por palavras operativas eficazes: que, transtornando a “verdade” que é a mentira global societária em que subsistimos (em que conseguimos ir subsistindo?) atinge e consagra uma realidade mais funda, ou apenas realmente verdadeira, para além do Bem e do Mal que os controladores sociais apresentam como inevitáveis. E que não são mais que impostura num contexto por eles criado e mantido e onde tentam que não tenha lugar a imaginação criadora, pedra philosofal da Liberdade.

   E nestas máscaras compósitas integrando uma intenção, como em toda a verdadeira obra artística, não se detecta uma mística nem mesmo uma metafísica – inúteis e complicativas, alibis para encandear ingénuos ou os que por razões específicas vivem afastados (pois os afastaram) do conhecimento verdadeiro e da sabedoria possível. Estão ali, frente aos nossos olhos, na sua naturalidade e na sua nudez real (e consequentemente surreal, que é a realidade em todas as direcções), constituindo corpo concreto ainda que solúvel numa globalidade que por estes meios se desamarra.

   Aqui, nelas, “on ne peut évidemment s’atendre à une autre jugement sur ce symbol”, como referia Guillaume d’Auvergne citado por Justin van Lennep, “senão àquele que era comum aos alquimistas e aos sábios de antanho”.

   E é este o justíssimo intuito, a meu ver, deste autor que me habituei a estimar – entendendo nesta palavra o que de salubre e de fundamental existe numa criação visando a permanência duma proposta transfiguradora e, para tudo dizer, intemporal.

 

Casa do Atalaião de Portalegre, Setembro de 2012

Nicolau Saião

(Os textos de ns não seguem os preceitos do Acordo Ortográfico)

   
  FOTOGRAFIAS DE FLORIANO MARTINS 
 
   
A cinza antes do fogo  A memória sem tempo 
 
 
   
O efeito suspenso da efígie  A pluma interior 
 
 
   
 O intervalo da sílaba O punhal atrás da porta 
 
 
  NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTACTO: nicolau49@yahoo.com
 

 

Revista InComunidade (Porto)

 

 

 

   
   
 

© Maria Estela Guedes
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