REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 31 | setembro | 2012

 
 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

Bichos e outros temas
a propósito de

C. Ronald

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Encontramos algumas cabras, alguns porquinhos da índia, canários, insectos, cães e gatos na obra de C. Ronald intitulada «Bichos procuram buracos em paredes brancas». Porém a sua função é menos determinante que a de adereços numa peça de teatro. A menos que, à luz do microscópio, afundemos a zoologia no espaço viral, e aí, sim, justificar-se-ia falar de animais, pois dois dos temas mais recorrentes na obra deste poeta brasileiro são a doença e a morte. Doença, morte, genocídio, sexualidade, gravidez, maternidade, enfim, tudo o que diz respeito ao corpo (à moral e à ética), numa dimensão biológica e política.

Em «Retratos de mortos ou Frau Aids», uma das peças de teatro incluídas no livro, uma geneticista altera um vírus que é usado pelos alemães, no tempo de Hitler, para eliminar (judeus? - personagem em risco é um jovem judeu) homossexuais. Acontece que o vírus se torna contagioso e funciona ao contrário do que se pretendia. A avaliar pelo título da peça, os alemães ficam contagiados com o vírus da SIDA (AIDS), o que exibe o humor negro do poeta. No interior da peça, esta leitura é menos óbvia, até porque a Frau se chama Gertrude e não vi referência à SIDA.

Humor negro e absurdo atravessam também a outra peça contida no volume, «A urna», em que se confronta o leitor com a situação insólita de uma funerária insistir em deixar um caixão em casa de uma família em que o futuro defunto ainda não morreu. Espero que ambas tenham sido levadas à cena, são muito boas.

Voltando aos vírus, passa-me pela mente a dúvida de que ainda sejam animais... Problemas lineanos do ser ou não ser, os sistematas confundem a nossa categorização, os nomes que damos aos grupos vegetais ou animais, com essências - os polvos, v.g., não são animais a que damos o nome de Mollusca, eles são e sempre foram moluscos, apesar de já terem recebido outras designações. Ora a classificação dos vírus sempre levantou problemas aos biólogos. Outrora, os zoólogos empurravam-nos para os botânicos, considerando-os Plantae, como as bactérias, e os botânicos empurravam-nos para os zoólogos, considerando-os Animalia. Nada como a Wikipédia para a devida atualização (1). E não, os sistematas optam agora por os considerar um ramo independente da árvore da vida. Nem animais nem vegetais, e nem sequer minerais, sim «I–VII». Os grupos inferiores também se designam por números, de modo que voltamos rapidamente às Letras.

Para recomeçarmos com naturalidade, a presença dos animais na obra de C. Ronald é de mínima importância, apesar do relevo que assumem no título. Os únicos bichos importantes, que procuram buracos nas paredes brancas, decerto para se esconderem, por medo ou vergonha, somos nós, Homo sapiens.

A obra é constituída por 448 páginas de poesia, contos, teatro, prefácio de Renato Suttana, uma carta de Ernesto Giusti em modo de posfácio e badanas de Nicolau Saião e Ledo Ivo. Contém ainda um ensaio de C. Ronald sobre poesia, decerto visando os que o consideram difícil de comentar. É de facto um poeta difícil, de escrita inclinada para o silêncio, como escreve Renato Suttana no prefácio, aliás em linha no Triplov (2). Embora a obra revele uma personalidade que se mantém em todos os registos - poesia, ensaio, ficção e teatro -, esse silêncio é muito mais forte na poesia e quase desaparece nas peças. Dada a abertura destas, porém, é possível a assimilação retrospetiva da poesia. C. Ronald é difícil mas não é um poeta obscuro.
O que se passa é que C. Ronald é um autor minimalista, de tendências contrárias ao que se diz serem as mais comuns nos brasileiros, as gongóricas. Anti-barroco, mostra-se extremamente elíptico, sintético, metonímico, despojado de elementos ornamentais, o que naturalmente cria dificuldades à crítica, que precisa de temas recorrentes, referências a um mundo de experiências comuns, etc., para achar assunto que lhe permita comentar as obras. Nada do que enumerei se patenteia à primeira vista na parte de poesia do livro, o que nos remete para o silêncio, mas não para o tédio ou recusa da leitura. Já se revela muito mais rico para comentários o campo da técnica, pois aí há matéria muito interessante e objetiva. Simplesmente, esse campo é mais próprio para ensaios académicos. Na maior parte são sonetos, assentes na estrutura clássica, mas ela é transmutada de alto a baixo, sobrando textos de uma enorme modernidade. E aqui, sim, encontramos repetições, mas não de assuntos. Vejamos um curioso exemplo que por sinal nos leva para o campo do jogo infantil e ao mesmo tempo da censura, e um segundo que revela uma das tendências da modernidade, aliás sempre presente em C. Ronald, desde a poesia ao teatro, a reflexão sobre a arte no interior dela:

   
 

SEM TÍTULO

Como se tudo fosse oco e fingido

tivesse o plau atrás e o clu na frente,

mundo normal seria e constrangido

o Ser balbuciaria: quem me sente?

 

Quase o triásico estranho no seu mundo,

aquele que rejeita. Um baton preto

nos lábios da demência. Ah!, seu imundo,

seu poeta de uma medla, mais completo

 

na bosta com a moleza mais banal

se te visse de cócoras nas letras

colocarias furos no teu mal.

 

Conselho com bravatas e gravatas

versos de muitas coisas onde penetras

como se um squash saísse de outras patas.

C. Ronald, pág. 121

 

 

AOS FALSOS POETAS

Acaba-se o meu tempo na palavra

que deixo. Já não sofro a indiferença

de todos que vivem minha presença.

Sustento o mundo murcho onde se lavra

 

o sentido da sobra quando é feita.

No canteiro dos outros só demônios,

perdidos os vegetais em manicômios

e a arte no fim é quem seca a colheita.

 

O inverno vem sentado e está restrito

ao seu mundo de loucos e uns se atrasam

nos legumes sem cores ou no mito

 

dos que fritam palavras, gilvaz sério

na temporada eterna dos que arrasam

as criaturas que vivem do mistério.

C. Ronald, pág. 123

   
 

A língua não é um meio de comunicação absolutamente comum entre portugueses e brasileiros, tal como não o é absolutamente entre um português com curso superior  e um analfabeto, porque a linguagem não é unidimensional, feita só de palavras e frases. Ela engloba experiências, mundos referenciados, emoções, conhecimentos e visões que diferem de um grupo para outro e de indivíduo para indivíduo. Daí que a biografia pudesse ser escada de acesso a uma partilha mais completa dos textos. De C. Ronald, nada sei, e pouco dele está disponível na Internet. Nada que levante obstáculos a uma leitura que nos gratifica por todos os motivos intrínsecos à obra, e também pela circunstância de a sua originalidade lhe conceder um lugar à parte, não só no Brasil, como nos países de língua portuguesa. Razão têm os autores que o cumprimentam neste livro pela sua poesia, Ledo Ivo ao falar de «poesia misteriosa, distanciada dos lirismos correntes», Renato Suttana ao comentar que «esse modo reservado de ser aponta para alguma instância que nela surge de fundamental» (e realmente, quando começamos a entrar nos textos, eles fazem-nos descer progressivamente ao abismo dos problemas mais profundos do ser humano), e Nicolau Saião, ao declarar que «C. Ronald é hoje por hoje um dos poetas que verdadeiramente contam a nível mundial».

Trata-se, sim, de um grande poeta, mas não esqueçamos a prosa, e sobretudo o teatro. Se as peças são generosamente cristalinas, já a poesia é mais para fruir como beleza pura, não para comentar, como de resto o próprio C. Ronald assinala em «Saber ler poesia». Mas tudo vai do começar, a uma segunda e terceira leitura, os poemas vão-se entregando ao conhecimento que enriquece a fruição.

 

Casa dos Banhos, 27 de agosto de 2012

 

   
   
 

(1) http://en.wikipedia.org/wiki/Virus

(2) Renato Suttana, C. Ronald - Para além do silêncio. Revista Triplov, nº 17, 2011

   
 

 

C. RONALD
Bichos procuram buracos em paredes brancas
Florianópolis, 2011, 448 pp.

 

 

Revista InComunidade (Porto)

 

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Trabalhos da Maçonaria Florestal Carbonária", Lisboa, Apenas Livros, 2012.
TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.

 

 

© Maria Estela Guedes
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