REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 29 | julho | 2012

 
 

 

 

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Os comboios e os livros
– a luz, a poesia e o mistério da viagem

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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A palavra «comboio» tem em si um aspecto simplificador: dizer «comboio» é mais simples e fácil do que dizer as palavras «locomotiva» e «carruagem». Mesmo a palavra «automotora» de cinco sílabas perde a comparação para a palavra «comboio» de três sílabas apenas.

Não podemos esquecer que a própria ideia de viagem corresponde a uma metáfora da vida. Também a vida é uma viagem com início e fim, com paragens e visitas, com gente a entrar e a sair do compartimento que nos calhou. Tal como na vida, a viagem do comboio proporciona surpresa e conhecimento, mistério e encontro. Uma educação sentimental. Uma revelação. Todos temos na nossa vida uma linha, uma viagem e uma memória.

O poeta João Miguel Fernandes Jorge nasceu no Bombarral em 1943 e regista uma singular relação com os comboios da Linha do Oeste no poema 31 do livro «O regresso dos remadores» - Editorial Presença. Vejamos um excerto:

«O comboio correio das 10 da noite partia da / minha terra para Lisboa. Fui tantas vezes / com o meu pai levar as cartas. Esperávamos / na gare. Se havia chuva ouvíamos o apito / quando passava à Granja vindo de Óbidos e / depois de correr o vale de S. Mamede. / Anos depois, já de mim se dizia um homenzinho / viajei nesse comboio das 10. Partia de / Coimbra às cinco horas. / Viajava em segunda. Vinha para casa no natal».

As três classes em romano nas portas (I, II e III) levaram Bernardino Machado a afirmar um dia: «Viajo às vezes em terceira para ouvir o povo e aprender alguma coisa. Com os da primeira já não aprendo nada…» Era vulgar ouvir há 50 anos uma advertência na estação de comboio do Montijo com a ideia de perpetuar as divisões da sociedade: «Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu». Foi numa estação de comboios que mataram o presidente Sidónio Pais, um bagageiro infeliz foi morto por engano no Rossio pela guarda municipal quando esperava o comboio das Caldas da Rainha.

Noutra linha José Cardoso Pires (1925-1998) situa a viagem atribulada de um grupo de soldados a caminho do Cercal Novo em «O hóspede de Job – Editora Dom Quixote»: «Um clarim, uma igreja abraçada ao quartel, meia dúzia de casas ao correr da estrada, um delicado traço de fumo a alastrar sobre a planície». Os operários e camponeses deixam amigos, enxada e família para se entregarem à triste vida da caserna. Têm o eco do comboio e as notícias dos seus para os lembrar: «o comboio é o remorso do prisioneiro e as notícias da família são um segundo castigo para quem sofre à distância a desgraça dos outros». 

 Para José Régio (1901-1969) em «Davam grandes passeios aos Domingos…» - Editorial Inquérito, o comboio desenha o amor de Rosa Maria e Fernando: «O comboio parara finalmente na estação de Portalegre. Vêem uma rapariga só… - pensava ela com a sua psicologia de pouco afeita aos caminhos-de-ferro e aos desembaraços da mulher moderna». Depois de uma viagem longa na paisagem monótona e árida (o empregado que grita «Chança! Mata! Crato!») há na estação um encontro com o primo Fernando: «Chego tarde e ainda por cima lhe prego um susto. Desculpe!»  

Em «A noite da vergonha» de 1963 (Livraria Bertrand) Mário Ventura (1936-2006) coloca o herói de 24 anos (Ramiro) numa viagem de comboio de Lisboa para o Porto fazendo (segundo Vítor Viçoso) do trânsito simbólico do comboio «homólogo do seu percurso de autognose. O medo, a desconfiança e as precauções codificadas pela actividade clandestina, justificam a estranheza do protagonista relativamente ao universo envolvente». Ramiro quebra um dos interditos da vida clandestina e revela à companheira do comboio (Sílvia) a sua identidade.

Miguel Torga (1907-1995) em «Vindima» (Editora Dom Quixote) coloca em oposição duas faces da sociedade portuguesa: de um lado o senhor Lopes em I classe («desdobrou o jornal na poltrona de veludo») do outro lado em III classe uma gente «miserável, suja, magra, numa ânsia dolorosa de viver e de vencer») que, aos poucos, «a ombros, a pragas, a desculpas e a sorrisos» ia submergindo os direitos dos outros. Não valia a pena gritar na I classe «Não há lugar!» pois a resposta dos passageiros de III classe era sempre a mesma: «Vá lamber sabão, ora o parvo! Com licença…» O comboio pode ser a metáfora possível dum país dividido agora em três classe (I, II e III) depois de já ter sido antes dividido em Clero. Nobreza e Povo.  

 

 

 

 

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO (Portugal,1951).
Prêmio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Colaborou no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro. Poeta. Possui uma antologia da sua poesia publicada no Brasil. Jornalista, colaborou entre outros em "A Bola", "Jornal do Sporting", "Remate", "Atlantico Expresso"... Autor de "Universário", "Jogos Olímpicos", "Iniciais", "Os guarda-redes morrem ao domingo", etc., bem como de antologias como "O trabalho", "O desporto na poesia portuguesa e "As palavras em jogo", entre outras. É secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários.
Vive em Lisboa.
Contacto: jcfrancisco@mail.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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