REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | Número 27 | Maio | 2012

 
 

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA

António Pedro: A saga islenha de um poeta de caboverdianidade bissexta vista por Dionísio de Deus y Fonteana (1)

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Em homenagem a António Pedro Costa,                                                     homem-teatro, pintor e artista plástico, poeta surrealista e inventor do Diário  fundador
do modernismo poético nas nossas ilhas, para além
de criador de muitos mal entendidos na historiografia
das  geneologias literárias  caboverdianas

   
 

Tempos inaugurais certificados em modo introdutório pelo olhar ensaístico de um alter ego do cronista, de seu nome literário Tuna Furtado, tido pelo próprio como aprendiz de ensaísta e diletante da história das ilhas e, por isso, assíduo excursionista à época da escravocracia caboverdiana

   
 

Transfigurada, a memória esvai-se e queda-se nos longínquos anos de 1909.

Eram tempos finisseculares de transição para um novo século.

Eram tempos iniciais, balbuciantes de uma nova década.

Eram tempos de muita controvérsia.

Eram tempos localizados em plena situação colonial.

Todavia sem indigenato, embora os mandarins de então tentassem eternizar-se suplantando os cínicos resquícios da sociedade colonial-escravocrata e da sua inevitável estratificação em senhores, homens livres e escravos, e sua correlativa estratificação das criaturas humanas em função da pigmentação da sua epiderme em brancos, mulatos e negros, e o resto que entre eles pudesse caber, e o demais que, por força de circunstancialismos inusitados, as pudesse subverter.

E, como é sabido, Caboverde, a mais pobre das colónias portuguesas, foi sempre pródiga na produção de circunstancialismos inusitados.  Diríamos até, inusitadamente pródigos.

Por isso mesmo é que a estratificação social das ilhas nem sempre coincidia com a pirâmide racial que nela dominava e tendia a agregar os seus habitantes numa ordem desigual e profundamente injusta.

Nem mesmo na sociedade colonial-escravocrata precedente daquela que agora ofegante respirava sobre as suas ruínas e intentava soerguer-se dos seus escombros.

Singularizada pelas patentes fragilidades das bases económicas e ecológicas nas quais assentava, regularmente fustigada pelo suão, pelo cieiro e pela bruma seca, desde sempre marcada por profundas cogitações e reminiscências colonial-racistas devido à circunstância histórica de a mesma se ter fundado, desde os seus primórdios nos tempos do achamento das ilhas, em pressupostos socio-económicos irrefutavelmente assimétricos e segregacionistas, a sociedade colonial-escravocrata erigida nas ilhas ficou igualmente marcada pelos seguintes factores:

1.Um interiorizado instinto de sobrevivência colectiva em face de ameaças várias, das quais podem ser alinhadas as seguintes:

a) A carestia endémica e as fomes provocadas pelas crises das estiagens (as famigeradas secas caboverdianas).

b) As crises económicas, amiúde resultantes do cerco do poder colonial e dos grandes interesses económicos metropolitanos, os quais tinham na administração colonial o seu porta-voz e guardião mais seguro e de que, nos fins do século XVIII, a majestática e pombalina Companhia do Grão-Pará e Maranhão foi o exemplo quiçá mais sinistro e paradigmático, porque portador de mais longevas e trágicas consequências históricas.

c) Os frequentes assaltos de piratas e de corsários oriundos de várias potências marítimas europeias bem como as repetidas incursões militares de outras gentes estranhas ao arquipélago, inimigas da coroa portuguesa ou dela e do seu império marítimo transcontinental e dos seus súbditos ilhéus rivais no que respeitava ao alargamento da sua hegemonia marítima e ao controle do comércio transoceânico da altura.

Os mais célebres de entre esses corsários foram seguramente Francis Drake e Jacques Cassard, tendo este último desferido, em princípios do século XVIII, o golpe fatal e final que conduziu à irreversível decadência da Cidade da Ribeira Grande, por isso e doravante denominada Cidade Velha.

2. O pavor da desarticulação, percepcionada como sempre iminente, das periclitantes bases vitais da sociedade edificada no arquipélago, e do consequente desaparecimento da entidade cultural que emergiu da atribulada e já multissecular história do povo das ilhas, e, em conexão com isso, a premência sentida quase unanimemente no sentido da preservação daquilo que fazia com que os ilhéus caboverdianos fossem culturalmente eles próprios.

Neste contexto específico, foram por demais relevantes, por um lado, o modo de produção nela dominante e baseado na apropriação não só da terra e de outros instrumentários e meios de produção, essenciais à vida económica, como também das próprias pessoas sujeitas ao cativeiro escravocrata, e, por outro lado, o modo de povoamento tanto das ilhas mais importantes como daquelas então consideradas periféricas.

É esse modo de povoamento, aliás, conforme com a mentalidade dominante na época da expansão europeia trans-oceânica e da sua conjugação com o tráfico negreiro, que determinou que a mão-de-obra trazida para as ilhas fosse essencialmente de origem negro-africana e que o seu recrutamento se processasse mediante a utilização de meios compulsivos e o frequente recurso a métodos eivados da máxima crueldade. Deste modo, a sociedade implantada nas ilhas, de estirpe nitidamente colonial-escravocrata, como já referido, mesmo se dotada das peculiaridades ecológicas e psicossociais acima referenciadas, criou e perenizou a sua ratio maior na anatemização do africano escravizado nas ilhas e dos seus descendentes negros e, em menor medida, dos seus descendentes mulatos e mestiços, a par de reiteradas tentativas da expropriação da sua alma (isto é, da sua identidade cultural).

A expropriação da identidade cultural do negro trazido para as ilhas operou-se mediante o empreendimento de multifacéticas acções para a sua domesticação espiritual com vista ao seu desapossamento da cultura dos seus antepassados africanos, a ostracização das expressões mais típicas dessa herança afro-negra e as tentativas de extirpação dos seus sinais mais ostensivos e, por isso, tidos por mais ofensivos dos ditames da moral cristã e das normas de conduta da cultura europeia hegemónica, e, segundo a lógica então dominante, potencialmente mais perigosos para a subsistência do domínio das classes colonial-escravocratas e, mais tarde, da unidade espiritual do império colonial português no solo querido veementemente católico das ilhas.

Debalde, pois que os cativos africanos lograram, em grande medida, adaptar a sua herança cultural negro-africana à virgem ecologia da nova terra do seu desterro e às suas novas condições de vida e de trabalho e ao seu confronto com a coação da cultura e da sociedade colonial-escravocratas, ilustrada em especial, e de forma assaz profusa,  na sua catequização e ladinização forçadas.

Os seus descendentes negros e mulatos nascidos nas ilhas, por isso, delas plenamente nativos, seguiram-lhes os passos e consolidaram o processo da sua insularização e da sua crioulização, preservando sobretudo o que fosse estritamente necessário e/ou indispensável à sua sobrevivência física e espiritual e nela incorporando, por iniciativa própria e/ou por força da coacção colonial-escravocrata, o que da cultura do dominador se mostrasse indispensável e compatível com as suas necessidades de sobrevivência espiritual num novo mundo, até então deserto do ponto de vista antropológico. É o que terá ocorrido, por exemplo, com a interiorização dos valores de solidariedade com o seu semelhante dominado e de amor ao próximo subjugado ou em estado de necessidade, da resignação, da compaixão e do reconhecimento da igual dignidade de todas as criaturas de Deus, incluindo dos escravos crucificados pelo destino que lhes foi imposto pelos homens tal como Jesus Cristo, adorado como o Deus encarnado dos cristãos, também o fora. Deste modo, o exemplo humano de Jesus Cristo e outros valores humanistas bebidos na Bíblia veiculada pelos padres e por outros protagonistas oficiais da expansão da fé e do império, tiveram consequências contrárias das esperadas, muito devido à acção dos profetas populares e de outros insubmissos intérpretes da palavra do Deus dos cristãos, tendo esta muitas vezes servido de força de alento e de resistência dos oprimidos pelo sistema colonial-escravocrata e dos desventurados das muitas calamidades provocadas pela natureza madrasta.

Paradoxalmente, este novo rosto cultural nascido da violência de um parto especialmente doloroso e trágico logrou atingir uma originalidade tal que, para além de o elevar a factor de destrinça do ilhéu caboverdiano em relação a outros seres humanos, seus semelhantes, incluindo aos seus antepassados directos, negros e brancos, e aos seus contemporâneos integrantes da classe colonial radicados nas ilhas, e, concomitantemente, de auto-representação identitária, individual e colectiva, dos filhos das ilhas meso-atlânticas e peri-africanas, alcandorou-o a factor de contaminação de todos os que vieram e continuarão a vir nos tempos vindouros pelo rosto castanho da terra e do seu habitante.

Isto dantes.

Em resultado da desagregação da sociedade colonial-escravocrata (aliás, acontecida em tempo assaz precoce no arquipélago caboverdiano) e de outras ulteriores mudanças sociais então ocorridas nessa época finisssecular e que se estenderam por todo o Novo Mundo das Américas, das Caraíbas, dos arquipélagos atlânticos, de algumas faixas urbanas da Costa de África e de algumas ilhas do Índico, a que acrescia de forma visível e notória a escassez de recursos naturais tão característica das ilhas de Cabo Verde, os escravos, ainda preto-negros e mulatos, metamorfosearam-se em rendeiros, parceiros, proprietários minifundiários e pedreiros, os homens livres, ainda mulatos, brancos e preto-negros (agora denominados pretos forros), em merceeiros, jornalistas, artesãos livres, pequenos e médios terratenentes e morgados.

Os grandes senhores, esses, embora impossibilitados por força das condições climatéricas adversas de transformarem os seus latifúndios em grandes plantações fundadas na exploração do trabalho serviçal (indígena ou importado) e viradas para a produção de culturas de rendimento destinadas à exportação, à semelhança do que ocorreu em quase todas as economias escravocratas insulares na sua transição para o capitalismo nas condições propiciadas por independências políticas conduzidas pelas elites brancas crioulas ou de plena implantação de um sistema colonial clássico, continuaram donos e senhores, agora integrados nas categorias sociais dos morgados, dos grandes comerciantes e dos altos dignitários da administração colonial.

Esses mesmos grandes senhores continuavam a recrutar-se entre os reinóis (depois da queda e da extinção da monarquia portuguesa denominados metropolitanos), tanto os genuínos ou branco-alvos (como se auto-representavam os cristãos-velhos portugueses vindos da Europa) como também entre os cristãos-novos (tantas vezes meras máscaras sócio-religiosas dos cripto- judeus que continuavam a ser muito tempo depois das conversões forçadas ao cristianismo determinadas por D. Manuel I e que, por isso, se sentiam obrigados a remeter-se à clandestinidade na prática do seu culto, dos seus rituais e dos seus hábitos religiosos ancestrais).

Bastas vezes, a classe dos grandes senhores constituía-se de brancos da terra (designação abrangente na ilha do Fogo, historicamente a mais marcada pelo racismo anti-negro e, por isso, a mais segregacionista do ponto de vista racial, dos brancos crioulos (isto é, dos brancos nativos das ilhas, na maior parte dos casos, falantes também nativos do idioma caboverdiano), e nas outras ilhas, com destaque para a ilha de Santiago, dos abastados filhos da terra e diversificados em brancos, pardos e pretos-brancos (isto é, negros com estatuto social de branco devido à riqueza do seu património material acumulado, segundo sólida fundamentação da historiadora Iva Cabral) unidos em função da partilha tanto da cultura colonial dominante (ou, pelo menos, dos seus aspectos socialmente mais ostensivos e produtivos) como também da cultura nativa da terra (ou, pelo menos, de alguns dos seus traços mais característicos, com destaque para a língua da terra), das suas posses e da sua condição social de donos de terras, de servos rendeiros ou parceiros e de outras alavancas económicas ao tempo essenciais, enquanto armadores, mercadores e/ou latifundiários.

É na diversidade racial da classe dominante acima referida, concomitante com o acentuado empobrecimento de muitos descendentes brancos dos povoadores europeu, a par das especificidades do povoamento de algumas ilhas ditas periféricas, dotadas de uma, proporcionalmente, significativa componente populacional de brancos ou de mestiços brancos, que provocam profundas mutações semânticas das palavras branco e preto (ou preto-negro), doravante utilizadas não mais para a mera categorização racial, mas sobretudo e predominantemente para a caracterização do estatuto social dos indivíduos e da pertença classista das pessoas.

Mantendo o seu fundo colonial-racista, na medida em que se pressupunha que a riqueza em bens materiais (bem como o saber erudito escolar de cariz obviamente ocidental) provocava necessariamente a elevação das pessoas a um estatuto mais digno e respeitável, designadamente ao estatuto de senhor que, nos primórdios e nos tempos áureos da escravocracia, era monopolizada pelos brancos), a nova semântica de categorização socio-cultural é, a um tempo, produto e reflexo da chamada ascensão económica, social e cultural do negro e do mulato das ilhas tão do gosto dos claridosos (em particular de João Lopes e Baltasar Lopes da Silva, optando este último, o seu maior entusiasta, a mais das vezes, pela denominação aristocratização económica, social e cultural do negro e do mulato de Cabo Verde) os quais, pela primeira vez, intentaram, logo nas páginas dos números um e dois da revista Claridade, teorizar esse fenómeno característico das ilhas e emergente da impossibilidade resultante das fragilidades estruturais da grande maioria das ilhas de o branco, quer o português quer o crioulo, impor com exclusividade e de forma duradoura no período colonial pós-escravocrata a sua hegemonia económico-social e cultural. Tais condicionalismos foram muito exacerbados com a paulatina decadência e a queda definitiva no primeiro quartel do século XX do poderio dos morgadios e dos sobrados da ilha do Fogo, o derradeiro baluarte de uma dominação social e político-social fundada no poderio dos brancos da terra e na ostensiva discriminação social e na despudorada segregação racial dos negros e mulatos.

 

Tempos praianos, os antigos, de atribulada transição finissecular, e os mais recentes, de saudade, recordados por olhares vários tanto de praienses adoptivos como também de praienses de gema

 

Alheia a essa cogitações, a vida prosseguia o seu curso atribulado no “arquipélago das secas e das fomes” (ainda não eram correntes as expressões “ilhas do Sahel” ou “Sahel insular”, como também estava arredado do tráfego linguístico comum o termo “Macaronésia “- considerou à margem o sábio-mor da cidade, remetendo para mais tarde a cabal elucidação dessa questão, sobretudo dessa sua última e controversa vertente).

E, contra a fúria e os vaticínios dos metropolitanos recém-chegados e daqueles outros refastelados no aconchego burocrático do Terreiro do Paço, e em infracção das proibições exaradas nas portarias e editais dos governadores e nas posturas das câmaras municipais, falava-se o crioulo, dançava-se o torno, repicava-se a txabeta, cantava-se em tom profético a finason nos terreiros do batuco das vésperas dos casamentos, dos baptizados e das noites recolhidas na alegria das boas colheitas, afinavam-se as reminiscências de francês das palavras de comando dos passos da mazurca, bailava-se ao som do landum, tocava-se, cantava-se e dançava-se a morna nas tocatinas, nas serenatas, nos salões de baile e nas festas do fim de ano, as pessoas humildes de posses auto-organizavam-se em tabancas e confrarias de rezas e socorros mútuos, os letrados associavam-se em grémios defensores dos interesses de Cabo Verde e das suas gentes, mas também em clubes dinamizadores da leitura, do republicanismo, das músicas da terra de teor mais acentuadamente europeu, do jornalismo e da disseminação da instrução, do nativismo, da adjacência e da autonomia (“alguns precoces na rebeldia falavam já em independência, décadas depois do arcabuzamento de Gervásio, Narciso e Domingos” - interrompeu o poeta adoptivo da cidade, ex-empregado do comércio e correlativos, ex-sindicalista, ex-combatente da liberdade da pátria, vate reputado no amor e no desatino, autor de contos, de novelas e de uma peça teatral sobre a sublevação anti-escravocrata do Monte-Agarro, ainda escritor praticante, assíduo nas páginas das revistas literárias e dos livros, mesmo se envolto numa cegueira precoce, conquanto previsível. E acrescentou: “porque se vivia em sistema colonial, os reinóis ( relembro-te que assim eram denominados esses mesmos europeus que passaram a ser chamados metropolitanos depois da implantação da república em Portugal e nas suas colónias), mesmo quando de modesta condição e/ou suficientemente integrados nas expressões sociais e culturais dos autóctones, beneficiavam sempre de tratamento privilegiado em relação aos nativos, mesmo quando oriundos de categoria social similar. Tanto mais que eram portadores dos sacros odores da pia baptismal da pátria lusitana e portadores das expressões, mesmo as mais rústicas ou saloias, da cultura colonial dominante, estrangeira por definição como é sabido, ainda quando incorporada pelas classes sociais autóctones altas de forma justaposta às expressões mais elitistas da cultura nativa, numa estratégia de partilha de um mínimo cultural comum com as classes coloniais- como, aliás, sustenta um proeminente académico das novas gerações-, e de forma marginal pelas camadas populares remediadas e mais pobres reiteradamente denegridas na prática dos seus usos e costumes, em especial os de matriz rural, e constantemente sujeitas à catequização e às políticas da assimilação à cultura da metrópole colonial).

Discursava-se pela voz afectada dos letrados da terra em português-padrão rebuscadíssimo, insultava-se, chicoteava-se, proclamava-se a bem-aventurança da pátria lusitana, da saga extraordinária da nação valente, imortal, e dos seus heróis do mar, dos navegadores, dos conquistadores, dos missionários, dos governadores, dos exploradores das partes inóspitas de África e de outros disseminadores da fé cristã, da civilização ocidental e do império colonial português (“encontravam-se ainda em situação de contra-mão as eventuais congeminações sobre a comunidade lusíada de língua e de afectos que viria a ser destilada pelos teóricos do luso-tropicalismo e a sua afectação aos desígnios colonial-imperiais do Portugal uno e indivisível de Minho a Timor”- exalta-se o outro poeta dilecto da cidade, de tez escura, apesar da parcial ascendência branca, e cabelos crespos e esponjosos, brancos como o algodão de chão bom, celebrizado como convicto adepto do regresso, tanto cultural como0 político, do povo das ilhas à dimensão africana da caboverdianidade e fervoroso praticante da postulação irritada da fraternidade proclamada, vivenciada e poeticamente sedimentada por Aimé Césaire).

Já existia o plateau, todavia sem a designação francófona trazida pelos caboverdianos regressados - ou vindos pela primeira vez à terra dos antepassados ilhéus-, no período pós-independência, de Dakar, de Abidjan e de outras urbes da terra firme africana vizinha.

Já existia o plateau, dizíamos, todavia sem a apoteose onomástica de ser a parte alta da cidade da Praia de Santa Maria da Esperança e da Vitória.

Já existia pois a cidade alta do plateau. Todavia, sem alguns atributos futuros, ademais precocemente despojado de alguns signos de saber e do sagrado de uma capitalidade digna desse nome como o seu Liceu Nacional ou as pedras episcopais de uma Sé Catedral, todavia detentora do monopólio todo e inteiro de ser a cidade, a única, da Praia, a Riba-Praia, a cidade capital da colónia/província, com o seu Palácio do Governador, a sua Igreja Matriz (entretanto, a Catedral-símbolo da Diocese de Santiago de Cabo Verde ia-se definhando com as ruínas da Cidade Velha), a sua Praça Grande, os seus Paços do Concelho, o seu Quartel de Artilharia, as suas lojas, as suas repartições públicas, as residências dos altos funcionários do Estado, a sua Escola Grande, o seu Teatro Maria Pia (demolida mais tarde para dar lugar ao caixão avarandado que responde por Teatro Municipal da Praia e cujo projecto arquitectónico foi encomendado a um engenheiro metropolitano em missão na província), a sua Biblioteca/Museu Municipal, entre outros edifícios públicos mais vistosos.

Todavia amputada porque depois despojada do seu Liceu Nacional, o primeiro implantado em Cabo Verde, sonhando tão-somente com um lugar-semente, com um templo do saber que fizesse jus ao seu duradouro estatuto de cabeça, de facto ou de jure, da colónia/província ultramarina e a pudesse, assim, alcandorar a farol das ilhas, como tinha ocorrido com a imprensa escrita, a qual vira nascer, em 1877, no seu seio, o seu primeiro exemplar privado, sintomaticamente intitulado O Independente, e atingira dentro dos seus muros o seu apogeu, a sua idade de ouro. Tão destemidas e magníficas que foram as penas de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso e de uns tantos outros, capitaneados por Nho Ogénio e sustentados financeira e logisticamente por Abílio Monteiro Macedo!

Quantas agitação cidadã e coragem cívica aquelas trazidas pelos jornais A Voz de Cabo Verde e O Progresso de Cabo Verde! Como se tornaram e ficaram patentes as muitas capacidades intelectuais enterradas nessas nossas ilhas pobres e exíguas!

 

Já existiam os subúrbios, isto é, os amontoados de aldeolas e de outros aglomerados peri- e rurbanos povoados de gente pobre e remediada que, de forma mais próxima ou de modo mais distante, circundavam o plateau. Os subúrbios situavam-se, assim, e por definição, quase todos nos arrabaldes circundantes da cidade alta da Praia.

Mesmo quando localizados em achadas e achadinhas localizadas a um nível topográfico mais elevado que a cidade alta da Praia (como acontecia e ainda acontece nos casos dos planaltos da Achada Grande ou da Achada Eugénio Lima), esses aglomerados de casas e casebres eram denominados na mesma como Baxu-Praia, abaixo da praia, aliás, em perfeita conformidade com o étimo (sub-urbe) que, em crioulo fundo e castiço (suburgo), adquiria conotações quase tenebrosas, ao mesmo tempo que remetia para a denominação dos burgos franceses e germânicos. O estigma baixo-praiense (que não a designação, porque de natureza social) permanecia mesmo quando o subúrbio se situava no planalto que, literalmente, estatuía a Praia como cidade alta, alcandorada que estava ao lugar nobre situado no planalto de Santa Maria. Era o caso da Ponta-Belém, zona do plateau conhecida pela sua irrequietude social, pela sua marginalidade algo arruaceira bem como pela vizinhança da artéria principal da cidade alta, chamada Sá da Bandeira. Diga-se que essa vizinhança singularizava-se pela sua natureza a um tempo conflituosa e convivial como, aliás, era próprio de uma coexistência, também ela pacífica e amiúde com contornos de uma verdadeira guerra-fria, entre grupos sociais com diferentes historiais e idiossincrasias).

A rua Sá da Bandeira, porque a mais longa e a mais larga da pequena cidade ex-colonial pomposamente promovida a Avenida no período pós-independência, fora assim baptizada em homenagem ao político liberal português Sá da Bandeira. Homenagem merecida pois que esses governantes e herói das guerras liberais portuguesas muito contribuíu para a abolição da escravatura em Cabo Verde e nos demais territórios ultramarinos portugueses. Ademais, tendo sido o autor do decreto régio que, em 1838, transferiu formalmente a capital de Cabo Verde da Cidade Velha (antiga cidade da Ribeira Grande, há décadas em imparável decadência) para a ainda virtual cidade do Mindelo (na altura do evento nobilitante uma pobre povoação de pescadores), foi ele igualmente a personalidade política e governante que, em 1858, elevou a Vila da Praia à categoria de Cidade (a segunda da nossa história de colónia) e, assim, a capital efectiva e permanente de Cabo Verde, pondo assim fim à transumante itinerância da capitalidade administrativa por várias vilas das ilhas, como Nova Sintra, Sal-Rei, Ribeira Brava, Ribeira Grande de Santo Antão e a própria Vila da Praia de Santa Maria (“Em compensação ou como sinal vingativo, a Praia demorou-se a superar o seu estatuto de cidade-repartição, como a chama José Leitão da Graça, tendo sido os atributos de capital do ensino e da educação consignados à Vila da Ribeira Brava (por nela se ter instalado o célebre Seminário-Liceu de São Nicolau, depois de se ter transferido a Escola Principal da ilha Brava, onde fora inaugurada em 1847, para a Praia e de, nesta urbe, se ter criado e extinguido o primeiro Liceu Nacional de Cabo Verde) e tendo o Mindelo granjeado, primeiramente e graças ao seu Porto Grande, o estatuto de capital económica (“o coração do arquipélago”, ou, melhor, “o pulmão por onde respira Cabo Verde”, como asseveraram intelectuais de várias épocas, como Eugénio Tavares ou Amílcar Cabral), depois de capital cultural, e, mais tarde, de capital social de Cabo Verde”- Relembra um jovem erudito da cidade, curioso em questões relativas à história das ilhas e defensor de uma visão objectiva e imparcial na análise dessas coisas fracturantes como são aquelas relativas à capitalidade cultural, para rematar:

“A rua Sá da Bandeira já não existe ou, melhor, já não existe com esse nome. Como anteriormente aventado, depois da independência, foi promovida a avenida, tendo essa promoção sido ademais reforçada com o saneamento político-toponímico do governante liberal português Sá da Bandeira e o sequente acoplamento da sua nova condição de avenida ao nome maior da história e da luta de libertação das ilhas crioulas afro-atlânticas. Deste modo, foi a rua Sá da Bandeira re-baptizada como Avenida Amílcar Cabral (tal como, aliás, a praça central da Praia, a chamada Praça Grande dantes chamada Praça Alexandre Albuquerque), para grande desagrado dos habitantes da urbe capital que persistem, uns, em chamá-la rua Sá da Bandeira, adaptando-se outros ao seu novo estatuto de avenida e venerando-a como Avenida Sá da Bandeira, por seu lado continuando outros, maioritários e mais castiços uns, ou minoritários e mais dados à poesia surrealista os demais, ainda a utilizar a expressão Sala Bandeira, não se sabe se com intuitos subversivos de rejeição da toponímia colonial, se com intenções ainda subversivas mas de transmutação semântica, aliás, tão corrente na crioulização de termos de origem portuguesa ou outra (como, por exemplo, atesta o termo crioulo galanti, de significado tão diametralmente divergente ou oposto ao seu étimo português galante e ao seu sósia brasileiro galã). Quererão os saudosistas utilizadores da expressão Sala Bandeira significar que a antiga rua Sá da Bandeira continua a ser a rua principal da cidade da Praia (do plateau ou cidade alta, diga-se), a sua sala de visitas?”) ou, de forma assaz inesperada e talvez surpreendente, quererão deste modo exaltar o estatuto dessa avenida como porta-bandeira da inalienável capitalidade da cidade da Praia em face das  demais avenidas da capital e das urbes rivais, estatuto esse sempre ameaçado, agora com maior acuidade com a recente inauguração, nas proximidades promíscuas dos bairros baixo-praienses da Várzea e da Achadinha, da Avenida Cidade de Lisboa. Talvez fosse o facto de morarem no plateau e de co-existirem diária e umbilicalmente com aqueles que se outorgavam o estatuto de genuínos e legítimos moradores da cidade alta da Praia que criava nos habitantes de Ponta Belém uma sensação de inusitado privilégio e um sentimento de superioridade em relação aos moradores dos subúrbios de Baxu-Praia e, ainda mais, em relação aos badios de fora (expressão que designava e estigmatizava, de forma particularmente pejorativa e ofensiva, os originários do interior rural da ilha de Santiago, especialmente os mais escuros e rústicos - alerta o cosmopolita poeta crioulo branco greco-latino da cidade), aliás, muito causticados na alegada rusticidade de ressonâncias africanas dos seus hábitos, costumes e tradições, no seu léxico e na sua pronúncia funda do crioulo de Santiago.

Esses rústicos moradores do hinterland santiaguense eram amiúde vítimas de burlas por parte dos malandros da cidade e de furtos e assaltos por parte dos piratinhas de Ponta Belém, quando, chegados de fóra (expressão utilizada pelos citadinos para designar e despromover o interior da ilha, fosse ele rural, urbano ou semi-urbano, litorâneo ou não, bem como pelos habitantes de alguns portos de mar, como, por exemplo, a Ribeira da Barca no concelho de Santa Catarina ou o Chão Bom no concelho do Tarrafal, desta feita para estigmatizar os que moravam distantes dos desassossegos do mar), muitas vezes acompanhados pelos indispensáveis animais de carga ou carregados de hortícolas, das frutas da época, dos frutos dos sequeiros, de aves de capoeira e de outros produtos agro-pecuários) frequentavam a cidade para o tradicional comércio nos mercados da cidade, com destaque para aquele que se fazia no vistoso mercado municipal do plateau, para visitas aos familiares ou para tratamento de assuntos burocráticos.

Os moradores dos subúrbios provinham maioritariamente do interior da ilha de Santiago e, em muito menor medida, das ilhas, especialmente da vizinha ilha do Fogo, que tendo sido, com Santiago, uma das primeiras a ser povoada, manteve desde sempre estreitas relações com a sua irmã maior (maior, entenda-se, em idade, população e extensão). Os sampadjudos de então eram essencialmente integrados por essa gente do Fogo, em geral de tez mais clara que a grande maioria dos originários da ilha de Santiago porque constituída por mulatos e outros mestiços, filhos bastardos dos brancos crioulos das ilhas, que viam na migração para a ilha de Santiago (a par da maciça emigração para os Estados Unidos da América, a partir dos fins do século XVIII) uma forma de escape e de libertação em relação aos entraves erigidos pelos inultrapassáveis preconceitos, constrangimentos e barreiras racistas da sua explosiva ilha-mãe. Como assinala o mais profícuo escritor da ilha do vulcão maior, os mulatos e os negros do Fogo migravam para a ilha de Santiago e emigravam para a América e, nos anos de fome, certamente para as roças de S. Tomé e Príncipe e de Angola, e os brancos da mesma ilha enveredavam por carreiras (militar, judicial, administrativa) nas colónias portuguesas, na metrópole colonial, mas também na cidade da Praia e em outros centros urbanos caboverdianos. Esse facto exacerbava a percepção então dominante de uma mais extensa e lata condescendência e menores reticências na outorga de privilégios aos sampadjudos que, ainda por cima, eram (ou se consideravam) portadores de características raciais e culturais mais próximas das europeias do que a maioria dos santiaguenses, desde sempre estigmatizados como negros e africanos, ou, de forma mais condescendente, como crioulos inacabados.

Ademais, muitos originários da ilha do Fogo lograram alcançar importantes posições no comércio e no incipiente tecido empresarial da cidade da Praia e das vilas do interior de Santiago, áreas de que se ocupavam tradicionalmente. A pulso, diga-se, e à força da sagaz utilização das relações de parentesco e de compadrio, tecidas com os patrícios já radicados na grande ilha e consolidadas durante a longa história da sua permanência, não só na cidade da Praia como também nas vilas e nos vilarejos do interior da ilha. Dizia-se por isso que eram contratados com o diabo, pois que era relativamente meteórica a ascensão de alguns mais audazes de entre eles, e por isso mais bafejados pela sorte e pela fortuna, do seu inicial estatuto de vendedores ambulantes de skontra, café, maçãs, uvas e de outras frutas típicas da sua ilha natal, para além de carregadores e vendedores de palha (“são palhudos”-gozavam os mandarins da época e outros habitantes da ilha maior. Daí talvez a origem etimológica e a posterior ressemantização do termo sampadjudo. “Outras interpretações mais generosas fazem derivar o termo sampadjudo da expressão “são para ajuda”, isto é, vieram ajudar os maltratados badios (sendo neste caso o termo badio usualmente utilizado para denominar os santiaguenses mais pobres e, por isso, supunha-se necessariamente mais escuros) a governar as respectivas vidas”- atalha, na senda de um conhecido encenador e contador de histórias retornado das diásporas índicas africanas, o artista plástico mais em voga da cidade, ele próprio um sampadio, ele próprio um sampadio, isto é, um badio de parcial ou total origem sampadjuda (anote-se entre rápidos mas esclarecedores parênteses que é também legítimo o uso do termo para os naturais das as- ilhas criados, amadurecidos e maturados na ilha de Santiago), mais propriamente da muito orgulhosa ilha do Fogo, ilha de berço do seu avô materno, um celebrizado poeta versado em crioulo, colaborador da revista Claridade e autor da letra da mais conhecida canção da sua ilha natal, talvez porque hagiográfica do herói popular Prispi di Ximentu e dos seus tormentos e façanhas nas roças de S. Tomé e Príncipe).

Por deter o estatuto de capital administrativa da província/colónia, a cidade da Praia acolhia funcionários públicos e agentes administrativos das diferentes ilhas de Cabo Verde.

Esses funcionários públicos e agentes administrativos de nível mais elevado eram formados maioritariamente no Seminário de São Nicolau e, depois, no Liceu de São Vicente e, igualmente, na Metrópole, quando as famílias dispusessem de posses financeiras suficientes, o que somente acontecia com uma pequeníssima minoria privilegiada.

Todos esses circunstancialismos contribuíram sobremaneira para provocar profundas mudanças em relação à percepção que os santiaguenses de diferentes raças e estratos sociais tinham do poder, dos seus titulares e dos agentes e modos do seu exercício na ilha. De um poder exercido em grande medida por senhores e oligarcas originários da grande ilha, mesmo se maioritariamente recrutados entre os brancos da terra, e de que a Câmara da Ribeira Grande foi uma eloquente ilustração, transitou-se para uma administração colonial de feição moderna no quadro oferecido por uma economia mercantil pós-escravocrata em que as alavancas do poder eram detidas por alienígenas à ilha, tanto os provenientes das chamadas as-ilhas como as originárias do Reino (depois Metrópole) e das suas Ilhas Adjacentes. Tais circunstâncias viriam a agravar-se, mais tarde, com a implantação do único Liceu de Cabo Verde na cidade rival do Mindelo. As repercussões dessa conquista da sociedade civil sanvicentina liderada pelo salense Senador Vera-Cruz seriam, por um lado, globalmente muito positivas para a relativa democratização do ensino liceal em Cabo Verde e, a prazo, para uma maior sintonia do conjunto da sociedade caboverdiana e das suas novas elites com as novidades do mundo, postadas que estavam à beira do Porto Grande do Mindelo e no fulcro do cosmopolitismo provinciano da cidade talâssica do norte do arquipélago, mas também, e por outro lado, duradouramente desastrosas no que se refere à estigmatização do originário de Santiago, em especial do seu interior (doravante sempre sujeito ao indelével ferrete sócio-cultural de badio (termo que, agora, isto é, a partir da emergência das históricas, persistentes e aparentemente quase insanáveis rivalidades entre as cidades da Praia e do Mindelo na sua pugna pela obtenção e pela manutenção dos privilégios, prerrogativas e regalias da capitalidade provincial e da sua extensão ao conjunto da ilha de Santiago e às demais ilhas de Cabo Verde, mais reiterada e sofisticamente entendido e doutrinariamente propalado em prestigiadas revistas literárias e em outras publicações culturais dinamizadas e promovidas pelas elites letradas cabo-verdianas radicadas nas Ilhas, na Metrópole e/ou no Ultramar Português num sentido ostensivamente pejorativo porque abrangente das populações rurais e suburbanas santiaguenses suposta ou verdadeiramente portadoras de uma identidade necessariamente atrasada porque marcada pelas muito causticadas sobrevivências africanas na cultura crioula cabo-verdiana. É neste sentido pejorativo que o termo badio era também utilizado por muitos habitantes da cidade capital e de algumas vilas do interior da ilha de Santiago, em parte de ascendência sampadjuda ou, eles próprios, oriundos das outras ilhas de Cabo Verde).

 

                                       Dezembro de 1909

                                       Tempos de infância

 

António Pedro nasceu no plateau da cidade da Praia.

Se não no real, pelo menos no simbólico.

Na casa-grande plantada sobre a colina do Laranjo e a ribeira que lhe perfazia o verde e a fortuna.

Morgadio e arquitectura de Trás-os-Montes (a portuguesa metropolitana, não a tarrafalense!) viram os seus olhos semicerrarem-se face ao intenso brilho do sol caboverdiano.

A 9 de Dezembro de 1909, como sagitário.

Ó criatura de tantas promessas por cumprir!

Por ter começado por ouvir um patois anglolusodjarfogobadio, o seu signo iluminou-se, desde sempre, de uma aura de universalidade sem céus nem raízes aparentes. A tentação da total transgressão habitou-lhe então o coração, ainda infante, ao mesmo tempo que uma insondável e sempre súbita queda para as raízes pétreas. O signo de sagitário era nele premonição de um espírito em constante deambulação, entre o vale do Laranjo e o mundo, entre o primeiro patois escutado com o borbulhar do leite materno e a babel da modernidade, entre Santiago e o Império, entre a purgueira e o pinheiro.

Cresceu no plateau. Se não no real, pelo menos no simbólico.

Na sociedade colonial ensolarada de ritmo e de bulício.

Na sociedade colonial enclausurada no recato e na solidão da cidade-repartição.

Provincianamente alegre e repetidamente atónito face às romarias da justaposição e da interpenetração entre a lusitanidade e a africanidade, e os múltiplos coitos que paulatinamente geraram a crioulidade, e os muitos incestos que engendraram os filhos híbridos das nossas ilhas e moldaram as suas feições afro-latinas, sempre autênticas na plena assunção da sua bastardia biológica e cultural, a qual, aliás, ficaria depois gravada no célebre axioma “Cabo Verde não é nem Europa, nem África, Cabo Verde é Cabo Verde”.

(“Ou mera tautologia, segundo outros pontos de vista mais cáusticos- interfere um aprendiz de intelectual recém-diplomado por uma universidade obviamente estrangeira – como o sustentado pelo vate da cidade que ousou escrever e publicar, sem temor nenhum da censura e da PIDE, uma série de poemas subversivos, como “Fome” ou, mais tarde, já durante o seu exílio africano, “Eis-me aqui, África”. Curiosamente o mais subversivo desses poemas, intitulado “Quando a vida nascer”, foi publicado, pela primeira vez, no Boletim Cabo Verde, importantíssima revista cultural editada na Praia religiosamente em todos os meses do calendário entre os anos de 1949 e 1964. Relembre-se que foi também no Suplemento Cultural ao Boletim Cabo Verde que se revelou enquanto movimento literário-cultural o Grupo da Nova Largada, no qual pontificavam Manuel Duarte, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Yolanda Morazzo, Francisco Lopes da Silva, entre outros jovens intelectuais independentistas, uns revelados na revista Vértice, como Manuel Duarte com o seu famoso ensaio “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, outros na revista Claridade da segunda fase como Aguinaldo Fonseca e Gabriel Mariano (este com poemas de recriação do cancioneiro popular santiaguense), outros no próprio Boletim Cabo Verde, como no caso de Yolanda Morazzo, tendo alguns deles colaborado na revista Claridade da terceira e derradeira fase.

Quiçá tenha sido o Boletim Cabo Verde a mais importante revista cultural caboverdiana do período colonial, se levarmos em conta a riqueza e a variedade do seu conteúdo ensaístico e literário e a diversidade estética e geracional dos que nela colaboraram e que a tornavam, desse ponto de vista, reitere-se que estrita e somente desse ponto de vista, de longe superior à revista Claridade e às outras revistas e folhas culturais, como a Certeza, o Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes ou o Seló (suplemento do jornal mindelense Notícias de Cabo Verde).

 Notícias de Cabo Verde que, tendo sido o mais longevo dos jornais caboverdianos e que, tendo servido como porta-voz dos letrados da terra, foi um privilegiado instrumento de difusão da sua escrita em defesa dos interesses e das gentes de Cabo Verde.

Escrita essa que, para usar uma expressão da lavra do académico cabo-verdiano das novas gerações Gabriel Fernandes, pode ser caracterizada como “colaboracionista rebelde” porque, mesmo se inconformista e anticapitulacionista, tinha que, obviamente, se mover nas fronteiras e no quadro político-ideológicos delimitados e abalizados pelas circunstâncias histórico-políticas dessa época de emergência e de posterior consolidação do Estado Novo colonial-fascista e das suas políticas de difusão da missão civilizadora de Portugal e da unidade da nação portuguesa e do seu império colonial na sua pluri-continental extensão de Minho a Timor.

De particular importância foi a sua pugna pela re-abertura do Liceu de São Vicente, então o único existente em Cabo Verde, fundado em 1917 e encerrado em 1937 como Liceu Infante D. Henrique, reaberto ainda em 1937 com o nome de Liceu Gil Eanes. Também importantes foram a sua insistência e o seu combate pela construção do cais-acostável do Porto Grande, nos quais coadjuvou os persistentes intentos, depois coroados de sucesso, de um dos mais célebres e combativos filhos da terra de então, o Dr Adriano Duarte Silva, na altura desempenhando as funções de deputado por Cabo Verde à Assembleia Nacional do Estado Novo.

Tanto pela sua diversidade temática como também pela ideologia que subjazia à sua linha editorial assemelhavam-se o Notícias de Cabo Verde e o Boletim Cabo Verde. As suas diferenças advinham do facto de o Notícias de Cabo Verde ter sido um jornal privado virado para a discussão da actualidade económica, social, cultural e política de Cabo Verde, tendo sido, por isso, detentor de maiores potencialidades de independência e de espírito crítico em relação ao poder político então instituído, como, aliás, se pode comprovar em várias das suas peças jornalísticas, incluindo uma da autoria do seu proprietário e primeiro director em defesa da liberdade de imprensa, enquanto que o Boletim Cabo Verde, por ter sido uma revista de pendor mais virado para o pensamento ensaístico e de teor mais literário e cultural, ademais dependente da administração colonial, designadamente da direcção da Imprensa Nacional de Cabo Verde, na qual estava financeira, funcional e editorialmente inserida, estaria mais alinhado com os desígnios políticos do podere instituído, mormente nos artigos de teor oficioso que era obrigado a publicar.

Relevante é o facto de os referidos Directores das publicações a que se fazendo referência terem sido figuras de relevo da sociedade colonial de então, tendo ambos desempenhado importantes funções no quadro do sistema colonial-fascista, um como Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente e de Presidente da Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Barlavento, e o outro como deputado por Cabo Verde à Assembleia Nacional do Estado Novo.

No mais, isto é, para além de terem sido ambos prestigiadas personalidades das elites locais e poderosas figuras do meio provinciano arquipelágico, muitas eram as diferenças entre os Directores dos dois importantes órgãos da imprensa escrita caboverdiana da época colonial-fascista: um, o Director do Notícias de Cabo Verde, importante comerciante da praça de S. Vicente e também importante industrial proprietário das fábricas de sabões e de tabacos, era um indefectível defensor de uma capitalidade económica, social e cultural sedeada no Mindelo, nisso não se distinguindo ou pouco se diferenciando nem de outros ilustres mindelenses, como Francisco Xavier da Cruz (o célebre B. Lèza, conhecido e imortalizado como um dos maiores compositores de mornas de todos os tempos), nem de outros insignes caboverdianos, como Loff de Vasconcelos e Eugénio Tavares. Todos eles com convictos sucessores até aos dias de hoje.

Relembre-se que esse cronista e empresário, tal como aliás Loff de Vasconcelos, chegou a defender a divisão de Cabo Verde em dois distritos autónomos, um de Barlavento com sede em São Vicente, e outro de Sotavento com sede na Praia, administrados por governadores próprios, directamente dependentes da Metrópole. Anote-se as semelhanças, salvo as devidas proporções com o diferente estatuto político actual de Cabo Verde, com as teses dos actuais propugnadores da regionalização política e da federalização de Cabo Verde, já não para extirpar a alegada parasitação da cidade capital da província sobre as receitas do Porto Grande, mas para obviar ao peso demográfico e socio-económico da ilhas de Santiago e à actual capitalidade não só política como também social, económica e cultural da cidade da Praia.

Por sua vez, jurista, muitas vezes desempenhando as funções de juiz-substituto na sua cidade natal e uma das figuras mais notáveis do Cabo Verde tardo-colonial, o director do Boletim Cabo Verde (por inerência das suas funções como Director da Imprensa Nacional de Cabo Verde, sedeada na cidade da Praia, era um nado e criado nesta última cidade que muito prezava e exaltava em razão da impecável organização urbanística do seu perímetro citadino então restrito ao plateau, da limpeza das suas ruas e da pacatez e civilidade das suas gentes, em comparação com a suposta frivolidade das gentes e com a então patente e muito causticada sujeira das ruas da cidade nortenha, minuciosamente descrita numas notas do seu canhenho publicadas no Boletim Cabo Verde.

De outra índole foram o perfil e o papel da revista Claridade e das folhas culturais publicadas durante o período colonial-fascista. De feição exclusivamente literária e cultural, aglutinador de quase todas as estirpes literárias modernistas pós-hesperitanas, a revista Claridade singulariza-se por ter sido o órgão colectivo de toda uma geração que, pretendendo fincar os pés no chão escalavrado da nossa terra mediante a comunhão com os problemas e com a linguagem chã e metafórica do povo anónimo, simples e humilde, procedeu a uma autêntica revolução estético-literária em Cabo Verde.

Muito intermitente na sua periodicidade e apesar de ir agregando ao seu elenco de colaboradores os poetas e ficcionistas modernistas e teluricistas que se iam revelando, a revista não podia dar vazão a toda, ou sequer à quantitativamente mais importante, produção poética e literária dispersa dos claridosos, os quais se viram assim obrigados a disseminar os seus escritos por outras publicações mais consistentes e regulares na sua periodicidade, com destaque justamente para o Boletim Cabo Verde. A partir da sua segunda fase, inaugurada em 1947, com o seu número 4, a revista Claridade passou a acolher os modernistas entretanto revelados, sobretudo na folha cultural Certeza, para, na terceira fase, iniciada em 1958, dar guarida a importantes poetas da geração que quis ser entendida e se autoproclamou como a geração que não vai para pasárgada, com destaque para Ovídio Martins, Onésimo Silveira ou Corsino Fortes.

Interessante é que a revista Claridade nunca publicou absolutamente nada dos literatos que a precederam ou sequer fez menção à sua obra. O ecletismo e o pluralismo estético com correntes não modernistas ou telúricas eram-lhe, por isso, absolutamente avessos, e nisso residiria a sua maior singularidade histórica e estético-literária. No demais, nas profissões de fé culturalistas a favor de uma caboverdianidade pejada de um teor identitário crioulista mais voltado para a co-matriz europeia dominante, não se diferencia dos seus antecessores e contemporâneos da sua geração, todos muito marcados pelo adjacentismo político e cultural, depois veementemente negado pelos integrantes das gerações nacionalistas de cinquenta e sessenta, muitos deles, aliás, paradoxalmente revelados e publicados no oficioso, muito eclético e multigeracional Boletim Cabo Verde, revista também caracterizada pela sua sujeição à tutela e à censura directas do governo colonial enquanto propriedade da administração da província e porta-voz da ideologia colonial então dominante. Tanto mais que as suas primeiras páginas eram reservadas aos discursos e às obras do governador e às chamadas políticas coloniais de fomento, para além da ininterrupta idolatria do salazarento chefe máximo do Estado Novo colonial-fascista e do culto de uma certa histeria patriótico-imperial, como aquela que se verificou nos centros urbanos de Cabo Verde aquando da invasão do chamado Estado português da Índia (formado por Goa, Damão e Diu) pela União Indiana de Nehru. Nessa óptica e nesta vertente, o Boletim Cabo Verde funcionava como uma espécie de jornal oficioso do Governo da província/colónia. Deve ter sido por esta razão que o inrevelado autor do libelo acusatório anti-claridoso Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana (consabidamente publicado sob um nome emprestado a um avassalado poeta e versejador contra esses tempos de bloqueio e forçado silêncio, e, em tempos, renomado autor de alguns dos poemas diferentes na carga político-ideológica e no teor assumidamente subversivos, por isso, tidos, no período do cantalutismo, por dos mais emblemáticos da nova largada político-cultural), tenha preferido manter na mais estrita clandestinidade o excelente ensaio-panfleto político de denúncia total do sistema colonial-racista vigente em Cabo Verde e de desmascaramento das políticas de reforma colonial empreendidas pelo ministro do ultramar da altura, Adriano Moreira, intitulando-o “Cabo Verde e a Revolução Africana” e assinando-o com o pseudónimo castiçamente crioulo badio A. Punói”.

Talvez tenha sido por essa razão, pela sua umbilical ligação ao governo da província/colónia que o rosto e a voz mais importante da poesia anti-evasionista e anti-pasdargadista da geração de cinquenta nunca tenha colaborado no Boletim Cabo Verde, mesmo se partícipe da Claridade da última fase”- cogitou em voz alta o poeta-jurista da cidade acariciando longo bigode negro retorcido e lançando olhares melancólicos alternados ao rosto pálido e pensativo do poeta surdo da cidade ~, o qual se entretinha a comunicar-se com os circunstantes, seus indefectíveis admiradores, em papelinhos redigidos em caligrafia de letra miudinha e bem legível, e à jovem jornalista e poetisa recèm-chegada à cidade para a concretização do intento da comunhão da sua tez branca inundada de festa e das promessas revolucionárias de Abril com o corpo telúrico e febril da terra natal embrenhada na saga da reconstrução nacional.

“ Não obstante os constrangimentos acima referidos, o Boletim Cabo Verde marcou toda uma época. Basta dizer que a maior parte da poesia de Jorge Barbosa, incluindo a de teor mais contestatário (como o paradigmático “Panfletário”), mas excluindo outros de quase inequívoca ruptura política (como “Meio-Milénio”, Relato da Nau” (a negreira, não a das cantadas descobertas do caminho marítimo para a Índia e para outras terras conquistadas) ou “Memorial de São Tomé” e outros poemas integrantes de livros que tentou dar à estampa durante a primavera marcelista, quando se deslocou à metrópole para se submeter a tratamento médico, vindo a falecer longe das suas ilhas), e quase toda a obra cronística e ficcional de Maria Helena Spencer, a primeira escritora moderna caboverdiana, foram dadas a conhecer no Boletim Cabo Verde. Oficioso em parte, sim senhor!, mas nada que se comparasse com o seu sucessor, o famigerado semanário Arquipélago, de conotação abertamente colonial-fascista, avesso à literatura e à cultura e implacável defensor do status quo situacionista ditatorial, numa época em que já proliferavam os movimentos político-militares de libertação nacional e eram mais do que evidentes os sinais da queda próxima do império colonial português”- esclarece bem-humorado o poeta existencialista da cidade, também ele estreante no Boletim Cabo Verde, no qual, aliás, comprovou na sua própria pele a veracidade do axioma “pior a emenda que o soneto”, quando um poema seu dado à estampa no mesmo Boletim Cabo Verde, foi sujeito ao crivo estético do juiz metropolitano da comarca de sotavento (anote-se em roda-pé, que nas horas vagas esse austero magistrado se ocupava com as letras, deste modo pretendendo participar na vida cultural da pequena cidade colonial e aí deixar a sua inconfundível marca, outorgando-se o papel de mentor e mestre das novas gerações caboverdianas, mesmo se à revelia das mesmas. Até que o conseguiu ao se meter com a promessa de poeta que era então um dos mais importantes literatos lusógrafos da actualidade” ”-riu-se um conhecido cortesão do poeta predilecto da cidade). Sublinhe-se que o Machado (assim se chamava o magistrado inquisidor da jovem poesia islenha que, segundo sei, nada tem a ver em termos de laços de parentesco com o famigerado sargento Machado, sim, esse mesmo em cuja boca mijou Nhanha Bonbolon, o nominho de Ana da Veiga, a líder da revolta de Ribeirão Manuel, aquela de que se faz menção num poema em crioulo de Gabriel Mariano que a transformou no macho Nhonhô di Mangolom), em vez de optar pela censura pura, ainda que fundada em critérios alegadamente estéticos, de um poeta neófito (“ como diz de modo autocrítico o poeta maior da nossa Macaronésia, referindo-se ao seu próprio caso, aliás, idêntico aos casos de tantos outros jovens principiantes nas lides literárias que, na altura referenciada, tentavam dar nas vistas”-faz questão de sublinhar o poeta galardoado que era o principiante na poesia da altura) preferiu re-escrever os poemas do mesmo principiante e mostrar em praça pública (isto é, nas páginas do Boletim Cabo Verde) como é que o poema do estreante em literatura deveria ter sido escrito).

Acrescente-se ainda um pequeno parêntesis aposto não se sabe se por um defensor confesso - não do axioma literário acima referido, mas do axioma identitário também anteriormente referenciado-, ou se por um desses críticos mais cáusticos da mesma expressão tautológica (“não sendo nem cabo, nem verde (pelo menos na maior parte do ano no que se refere aos terrenos de sequeiro nas chamadas ilhas agrícolas, para não falar de algumas ilhas francamente áridas e escassamente dotadas de ridículas manchas de regadio ou de bosquejos de florestas), optou Gabriel Mariano por grafar Caboverde (numa única palavra e sem hífen), a um tempo continente e arquipélago culturais, pondo assim termo a eventuais paradoxos identitários e sentimentos de orfandade continental, desde sempre muito comuns entre os ilhéus caboverdianos).

(“Neste caso mais propensos à busca do pai, ou do seu rosto abstracto e severo, do que da mãe (ou do afago afectuoso do seu ventre irrenunciável), por razões aliás mais do que compreensíveis, como seja a herança de bens simbólicos de grande relevância, como os apelidos que realmente contam porque se perpetuam nos nomes dos filhos machos e nos dos seus descendentes varões, e de parte da riqueza e das vivências acumuladas como património material e imaterial”- acrescenta o poeta predilecto da cidade, aliás, de tez branca, cor que lhe foi legada pelo pais, luso-descendentes, se bem que caboverdianos de gema, permanecendo a seguir em súbito silêncio ante o refluir da imaginada infância islenha do seu irmão de raça, de cidade e de ofício, também ela inundada de sol, de alguma bruma e de muitos vagidos crioulos, como todas as infâncias passadas na ilha, como a primeira infância de António Pedro).

Agora que devidamente circunstanciados e dilucidados os tempos e os temporais vários que assolaram as diferentes conjunturas da sua cidade natal, Retrocedamos pois aos tempos primevos de António Pedro.

E dizíamos, e dissemos:

António Pedro nasceu no plateau da cidade da Praia.

Se não no real, pelo menos no simbólico.

Na casa-grande plantada sobre a colina do Laranjo e a ribeira que lhe perfazia o verde e a fortuna.

Depois, criança ainda, alheio a todas as conjecturas e a eventuais angústias existenciais, ignorante de todas as conjunturas políticas e das respectivas vestes coloniais, e das respectivas iniquidades sociais, mas habitado pelo wanderlust que lhe foi precocemente inoculado pelo signo com que nasceu, e prosseguindo a já longínqua itinerânca familiar, António Pedro saiu pelo mundo.

 

1929-1938

Tempos de regresso

 

Tempo de saudade.

Saudade ou sodádi? Mas existirão essenciais diferenças entre as duas curiosas melancolias em face da ausência e da perda da árvore da infância?

Chamamento da infância ou da paternidade?

Talvez da maternidade?

Talvez de um qualquer Pik’ lion, ainda desconhecido?

Certamente do Laranjo.

António Pedro regressa ao plateau.

E ainda do mar espanta-se: “Bé, o pó da ventania sufoca! /...lá na baía ou doca/…parece melhor/ embora fosse careca/a terra seca e adormentasse já» (novo parêntesis desta vez aposto por um indefectível defensor do passado verdejante da cidade da Praia (aliás, profusamente atestado nos antigos postais ilustrando a sépia os coqueirais da sua orla marítima, a sua floresta da Achadinha, os seus mangais do Taiti, as suas hortas do Palmarejo), para além de irrepreensível adversário das teses propugnadoras da muito propalada inabitabilidade passada da cidade capital, alegadamente devido à natureza supostamente pantanosa dos vales que a circundavam, e, por isso, muito propiciadoras da propagação do paludismo, da cólera e de outras doenças infecciosas, particularmente mortíferas para os europeus recém-arribados: presume-se, por isso, que Março foi o mês da chegada de António Pedro à sua cidade natal, dada a ventania que então por aí grassava. Ventania essa, que, todavia, não pode ser confundida com a bruma seca dos dias de hoje, bruma seca essa recentemente importada de outras paragens sahelianas, ou, dizem as más línguas, trazida por aqueles que, há poucas décadas arribados à ilha maior, não prescindem da regularidade do seu pé de vento pois que se maravilham com um fenómeno que consideram integrante da sua personalidade e da sua identidade colectivas e, por isso, muito se vêm extasiando em dançar ao vento…).

Envolto pela poeira, António Pedro atravessou o cais (“sim! O cais de São Januário! Aquele que as bestas obtusas da Câmara Municipal mandaram demolir para acharem um traçado mais consentâneo e mais barato para a nova marginal. Ou quase demolir, pois que uma parte do emblemático cais foi poupada, ficando todavia escondida do olhar dos transeuntes pelo perfil altaneiro da nova marginal”- Exasperou-se, afagando o bigode negro retorcido à salvador dali, o poeta-jurista da cidade, conhecido defensor dos direitos humanos, amante de jazz, de boa conversa e de whisky velho, e autor do primeiro manifesto que, nas páginas da revista Raízes (a primeira publicação literária e cultural de grande porte do pós-independência, fundada em 1977 na cidade da Praia, questionou as políticas culturais prosseguidas (ou omitidas) pelo regime de partido único, então recém-instituído. Entretanto, enquanto os ânimos se exaltavam à volta do martírio a que a cidade vem sendo sujeita por diferentes gerações de políticos, de técnicos e de funcionários públicos, todos eles detentores de muito pouco afecto e de escassíssima empatia pela cidade, com a cumplicidade ou, pelo menos, com a silenciosa indiferença da população, martírio esse, aliás, profusamente ilustrado na cada vez maior descaracterização da cidade e no crescente e cada vez mais indomável caos urbanístico que, com o seu visível e acinzentado crescimento selvático, nela reina, António Pedro), lançou um olhar curioso e alongado pelos botes varados ao longo da Praia Grande de Chã de Areia e pela vizinhança emaranhada de coqueirais (sempre exóticos aos olhos de quem esteve, durante anos a fio, longe dos trópicos) que se estendia pelo Taiti e pela Várzea da Companhia, passou pelos antiquíssimos edifícios administrativos e pelos armazéns das alfândegas, observou demoradamente o então intacto cais de S. Januário, subiu a rampa homónima, atravessou o coração da cidade alta e foi à busca do mistério dos rochedos de cá, encastelados nas penedias do cruzeiro, nas encostas do hospital provincial e do edifício da fazenda, ou refastelados sobre o vale do Laranjo e de outras ribeiras da freguesia de Nossa Senhora da Graça.

Adolescente luso, jovem luso-caboverdiano (“isso não, a expressão ainda não existia, nós os islenhos éramos todos portugueses e caboverdianos ou, melhor, éramos oficialmente considerados como portugueses de Cabo Verde! Também não existia ainda a possibilidade da dupla nacionalidade. Afinal éramos uma simples colónia ultramarina, ademais uma insignificante, mísera e famélica terra de Portugal de aquém e além mar, em consequência não dispúnhamos de nacionalidade própria. Por isso, maravilham-se agora todos com a canção do Orlando Pereira na voz do Ildo Lobo: nasionalidadi dja nu ten dja! Melhor seria dizer branco português de Cabo Verde crescido na metrópole?”-interroga-se o poeta predilecto da cidade) ou teen-ager santiaguense (“curioso”, acrescenta o vate mais celebrizado da cidade, “cai bem o termo teen-ager devido às ascendências inglesas do gajo, mesmo se, por alturas do seu regresso à sua cidade natal, ele já não fosse propriamente um teen-ager, mas um jovem adulto!”)?

Dicotomia cultural, estalagmites de lusitanidade ou penedos de caboverdianidade no imenso oceano das solicitações culturalistas cosmopolitas e das auto-sugestões identitárias, confluência dos afluentes das origens todas de tantas heranças nas águas da universalidade cuja foz seria a cidade da Praia, postada melancólica defronte do seu rio imaginário?

Enfim, português, português ultramarino, luso-africano, branco afro-lusitano, europeu meso-atlântico, minhoto retornado ou badio branco irreversivelmente postado no miradouro da sempre atraente e inapagável civilização europeia?

“Irreverente modernista era o que ele era, o António Pedro, de tantas e múltiplas ascendências, de tantas e diversas andanças!”-sufragou, com voz cristalina, se bem que póstuma, o único e convicto companheiro das lides plásticas e das tertúlias literárias que encontrou no provincianismo beato e caseiro da sua cidade natal.

E continuava o caldeamento cultural e todos, ainda que a contragosto, imaginavam-se nadando no caldo pagão da miscigenação.

(“Embora a contragosto dos cronistas oficiosos e dos pensadores mais eurocêntricos e concêntricos na preservação, a todo o custo, da chamada missão civilizadora de Portugal em África e de que Cabo Verde seria, a um tempo, a ilustração mais eloquente e um agente privilegiado, e, por isso, mais renitentes à aceitação dos benefícios da mestiçagem cultural e dos efeitos positivos resultantes do diálogo civilizacional e da interpenetração de raças e culturas, de que Cabo Verde é uma pequena, mas bela ilustração”- iludia-se, anos mais tarde, um passante da cidade a propósito do caldeirão de ensaio da mestiçagem que, segundo esse escritor metropolitano tornado caboverdiano adoptivo, seguramente no plano da maioritária escrita ficcional, e adepto convicto e divulgador prolífero das teses então em voga nos círculos intelectuais dominantes no arquipélago, terá sido e continuaria a ser Cabo Verde até à completa crioulização da ilha de Santiago mediante a extirpação dos resquícios de Àfrica (como a tabanca, o batuque, a magia negra, a renitência messiânica dos rabelados) que, lamentava-se em desencontrados sentimentos de desprezo, respeito e despeito, ainda sobreviviam nessa ilha meridional de Cabo Verde e teimavam em marcar o rosto mais visível da sua cultura ou, melhor, a face mais típica da ilha sociológica, outra, que é o seu hinterland, a qual se encontraria num estádio de evolução cultural (isto é, de assimilação à cultura europeia dominante) muito desconforme do estádio de aceitação (o mais avançado, como é sabido, no processo de aculturação à civilização europeia) a que chegaram as nossas restantes ilhas, com destaque para as de barlavento (e aqui entravam as muitas citações dos mestres claridosos, com excepção de Jorge Barbosa que, sendo natural e profundo conhecedor da ilha de Santiago, não alinhava nestes modos de ostracização mediante a negro-africanização das suas expressões culturais afro-crioulas mais distintas, isto é, mais castiças).

Com a topografia da sua pequena cidade natal soterrada na mais recôndita loca da memória, António Pedro vivia com íntima ansiedade o seu regresso, que sabia ser fugaz, à terra natal e o reencontro com a sua vida quotidiana, com as suas pulsões, com as suas expressões idiossincráticas, com as suas manifestações culturais mais típicas. E era firme a sua convicção, funda a sua intenção e inabalável a sua vontade de penetrar-lhes o âmago, de dissecar-lhes o espírito, de entender-lhes o sentido, de neles se envolver para melhor se envolver com as gentes das ilhas, seguramente futuras personagens que teriam que desfilar e transfigurar-se na sua escrita, na sua pintura, no seu teatro, nas suas mãos inventivas. Imensa era a força que o propulsava na contínua superação das barreiras que se iam erigindo na atmosfera elitista e centrípeta que então dominava e sufocava a cidade-repartição, em cujas verdejantes imediações tinha nascido e passado a primeira infância. Tantas as suspeições inoculadas pelos preconceitos eurocêntricos dominantes, tantas as barreiras engendradas pelo desconhecimento do meio e por tantos anos de ausência!

Aproximou-se, pois, da ilha e dos seus moradores, a mente inundada de dúvidas, embora com o firme propósito de não se diluir nos usos e costumes das populações das ilhas, mesmo daquelas dos estratos sociais mais ilustrados e embrenhados nas coisas da cultura moderna ou das fontes clássicas da civilização europeia. Convinha-lhe preservar a sua actual personalidade moldada em tempos e espaços vários da Europa, nos quais, aliás, se tinha sentido completamente em casa, depois de um breve período de sensação de vazio e espanto adveniente da falta do sol e da poeira que agora o circundam e quase o sufocam. O papel que se reservara era o de tornar-se cúmplice das gentes das ilhas. Um cúmplice obviamente aberto a todas as dimensões do seu ser ou, pelo menos, àquelas dimensões que lograsse perscrutar. Com o distanciamento necessário à sua melhor compreensão, com o distanciamento que, de todo o modo, lhe foi outorgado e legitimado pela longa ausência e, para sermos claros, com o distanciamento que se esperaria de um branco (algo mestiçado, embora), descendente de famílias possidentes e que, embora ainda moço, se foi dotando de invulgares conhecimentos do mundo e das suas mais recentes revoluções estéticas, mormente nos domínios das artes plásticas, literárias e dramatúrgicas modernas, ainda quase inteiramente desconhecidas nessas ilhas perdidas e abandonadas. Pretendia, pois, envolver-se com a ambiência parda e a atmosfera luminescente que dele se aproximavam pachorrentamente e transportar a ilha e a cidade, e com elas as suas gentes, e os seus rostos, e as suas almas, para as insondáveis dimensões das saudades futuras que se haveriam de alimentar das imagens que agora se petrificavam na arte que, ainda tímida, se escondia na sua retina.

E, sôfrego, lançou-se todo e inteiro às novas sensações.

Sem falsos temores, sem fingimentos, sem ressentimentos, sem pruridos, sem outras congeminações que não as de traduzir em arte o que os olhos viam, o corpo sentia, a mente dissecava, a alma aplaudia, rejeitava ou condenava à indiferença de coisa outra, dos outros, sem outro vínculo com ele, se não o de se apresentar como matéria de reflexão artística.

No Diário: Vi um batuque/ baque bacanal/-pobres selvagens/e a morna/ morna/bole mole/ já velha …”.

Ironia versilibrista.

Modernismo jorrando, lívido, estrangeirado e cara-pálida, todavia irreverente e livre, liberto das babas do ultra-romantismo e da grandiloquência camoniana estranhamente acasalados nas hespérides (essas perdidas ilhas arsinárias, nossas, da nossa pele e da nossa alma de negros, pardos e loiros greco-latinos do arquipélago da fome de reputação e de alta e nobre geneologia cultural euro-ocidental!) com os restos do fim do mundo!

Ó desenvolvimento separado na separata que é o puro sonho ou pesadelo automático!

Entrementes, escrevia um nativista: “o badio porque o mais africano e negro dos caboverdianos é o culturalmente mais atrasado e, obviamente, o menos civilizado de todos eles”. Curiosamente, esse nativista, também ele convicto hesperitano de verve camoniana, tinha-se envolvido numa das mais importantes polémicas estéticas que tiveram lugar em Cabo Verde, quando nos inícios dos anos trinta do século se posicionara contra a titubeante irrupção do modernismo literário em Cabo Verde, argumentando que o verso devidamente cingido na rima, na métrica e em outras formas fixas, e em outros modelos clássicos, era a única indumentária adequada à poesia, e desqualificando os cultores modernos do versilibrismo como perigosos bolchevistas literários. Assinale-se que, nesta expressão acusatória (“bolchevistas literários”) se sintetizam todos os paradoxos e ambivalências nos quais navegava a geração dele contemporânea. Nesta óptica, ele terá sido o exemplo mais acabado das contradições e das ambiguidades que perpassavam os literatos e demais letrados do nativismo político, como atestam as suas profundas convicções de homem republicano de esquerda e progressista admirador de Marx, o mestre venerando, e membro encartado do Partido Socialista Português, e as suas celebradas capacidades de exímio émulo neo-clássico do autor de Os Lusíadas – se bem que um tanto serôdio - da poesia camoniana e de intrépido cultor e defensor do idioma caboverdiano, se bem que nas margens delimitadas pela sua filiação neo-latina. É, igualmente, assim que ele se evidenciou como co-precursor tanto do culto da Atlântida (transmutada, por vezes em labor simultâneo com José Lopes, em Hespérides, Jardim das Hespérides ou ilhas arsinárias) e da esquizofrenia cultural crioula, oscilante entre o amor da mátria natal e a veneração da pátria imperial e monumental dos descobridores, missionários, letrados e, mais de que tudo, de Camões, o seu símbolo, o seu canto, como também da África mediterrânica, faraónica e esfíngica, todavia sempre venerada como berço da civilização ocidental, e, a contrario, por exemplo, da démarche mais tarde empreendida por Cheikh Anta Diop, em contraponto à África negra, tida por pagã, animista e selvagem, habitada por criaturas tisnadas, abandonadas às trevas da ignorância e, por isso, necessitadas das luzes da civilização cristã e ocidental, quiçá somente passíveis de serem alcançadas mediante a obra do colonizador europeu e seu mais proficiente cultor, o colonizador português, como consideravam e advogavam em altos e, por vezes, impacientes brados os filhos islenhos da mãe-pátria lusitana, nossos mui respeitados ancestrais e compatriotas.

Oh! Tempos de múltiplos pressentimentos e de não poucos ressentimentos!

Tempos de todas as exaltações! Tempos de veneração do vulcão da ilha das lavas cuspindo orgulho e rectidão na língua materna! Tempos da louvação da altivez das criaturas e da sua limpa emersão das lendas, das frutas douradas, dos tempos antiquíssimos das batalhas memoráveis e dos monstros vencidos!

Tempos de culto da língua pátria dos poetas da expansão lusa!

Tempos de ressurreição da pele negra insurrecta do marechal tricolor das Antilhas e de outros lugares de liberdade dos irmãos de raça e de desgraça!

Tempos de subjugação ao abecedário da vassalagem e aos labirintos da sua decifração, com o corpo escuro circunscrito à amnésia e à quotidiana sublimação do cárcere e da carestia em moradas outras, dos deuses antigos, dos deuses nossos contemporâneos, estranhos, estratificados.

Para, alguns anos depois, arrematar um outro génio da insularidade, sedentário da província do meio do mar, do lar insular alegadamente modelar do nosso processo supostamente acelerado e exemplar de aristocratização cultural e, em vida, sedento das raízes da árvore da infância plantadas e enterradas, como é norma, no seu torrão natal, e das outras, recém-adquiridas e devidamente transladadas para o sopé do monte verde e aí para sempre sepultadas com os seus futuros restos mortais com vista privilegiada para o Porto Grande e para os navios demandando o norte e/ou o nor/noroeste dos mares do Atlântico. “Precisamente a ilha de Cabo Verde (Santiago) que se encontra numa fase mais atrasada de evolução aculturativa, está mais avançada linguisticamente do que as outras, embora apenas no aspecto fonético”.

Oh! Tempos de busca e de auto-diluição! Tempos de auto-mutilação!

Oh! Tempos da caboverdianidade espartilhada entre a lusitanidade, a luso-crioulidade, a afro-crioulidade e a negro-africanidade!

Oh! Tempos de muita inflexão e de pouca penitência!

A terra jazia, entretanto, inerte no seu diálogo silencioso com os parceiros, mas também com os morgados, com os comerciantes, com os seminaristas, com os professores primários.

Inadaptado e louco modernista era o que era o António Pedro.

“Louco e bendito modernista é o que ele é", corroborou, ainda em tempo útil, Jaime de Figueiredo, comovido e entusiasmado, a Jorge Barbosa, discípulo hesperitano, então muito dado aos odores emanando dos jardins de Diana e a outras brumas da antiguidade greco-latina devidamente envoltas em rima e métrica clássica.

“Oh azuis, por demais azuis céus que me ofuscam o brilho castanho e o pardo verde da terra! Oh céus sem pátria!”.

As palavras continuavam a crepitar incongruentes, espartilhadas entre o plateau e os subúrbios, entre a saga aventurosa dos sonhos loiros libidinosos e os ventres proeminentes, infestados de lombrigas, das crianças em tempos de miséria e de muita fome, sideradas ante o casebre abandonado, o arco de ferro do menino enferrujando-se com as brincadeiras desvanecidas pelas estiagens e o desassossego do mar sempre, sempre dentro dele e dos caboverdianos anónimos, humildes, seus irmãos.

“Este homem é um Nero e pretende atear fogo à cidadela das nossas tradições mais civilizadas”- clamaram os estudantes radicados do outro lado de onde sopra o vento, secundados por outros neuróticos moradores da beira-mar onde, com estonteante regularidade, por sua vez, baila o vento.

“E traz à praça pública as nossas chagas, pois que de chagas se trata quando se nomeia o batuque, e a terra seca, e a preta. Oh! Vergonha do mondrongo-badio insultando herético o nosso fado que é a morna! Oh! Nefasto agente das artes degeneradas!”.

E, destemperados, congregaram-se em torno da raiva e do ódio, embevecidos com o auto-da-fé que acabavam de efectuar, e com as cinzas das primeiras letras pós-hesperitanas escritas e impressas em terras de Cabo Verde com o selo tipográfico da Imprensa Nacional de Cabo Verde, sedeada na cidade da Praia.

“Bendito modernista é o que ele é, esse cultor da liberdade poética e da sátira versilibrista, mesmo se um tanto desfasado da nossa idiossincrasia e dos pequenos-grandes dramas da nossa terra!” - exclamou Jorge Barbosa e pôs-se febrilmente a escrever versos libertos da serôdia coacção da rima e da métrica e a debitar poemas sobre os mares caseiros da Praia negra e da Saragaça, os cutelos dos Picos após a chuva, as negras e mulatas e respectivas ancas sensuais e dançarinas no pilar do milho, a estiagem, as meninas portuárias de S. Vicente, a ambiência neurasténica da ilha do Sal, os quinhentos anos de desventura e abandono do balanço final da lusitanidade colonial, e, impaciente com os tempos da maturação do tempo, pôs-se a congeminar destemidos versos panfletários destinados à memória futura das novas gerações contestatárias e nacionalistas. Versos esses que, embora clandestinos, eram recitados de forma sorrateira em muito restritos círculos de confrades, amigos e admiradores.

Entretanto, o pilão continuava retinindo nos quintais, e nos terreiros sagravam-se os ritos funerários e mandavam-se recados aos finados e ao senhor da chuva e, assim, prosseguia a trágica edificação da identidade do povo da ilha, do arquipélago do verde renitente e do diário milagre da sobrevivência.

Alguns anos mais tarde, um outro poeta, também ele branco nascido sob o signo de sagitário no plateau da cidade da Praia, mas nele efectivamente criado até à idade adulta, sentado num café de Lisboa, assediado pela doença, pela saudade e pelo inverno, dessedentava-se nos sequeiros de Mato Engenho e de Dàcabalaio e sonhava um outro amanhã para as suas distantes e amadas ilhas, e as suas levadas enormes, e os seus trapiches pilando, e o seu cheiro de melaço vivificando as ânsias de felicidade na terra finalmente nossa, do povo das ilhas (“estás a atribuir-lhe de forma abusiva essa última expressão, consabidamente da lavra clandestina de Manuel Duarte. O António Nunes era simplesmente um poeta neo-realista que transitou do ultra-romantismo para o cânone claridoso salpicando-o dos ritmos de pilão e de outros sinais afro-crioulistas por influência de Teixeira de Sousa e da poesia negritudinista do mulato santomense crescido na diáspora portuguesa da capital do império, Francisco José Tenreiro de seus nomes civil e poético completos. As leiras de terra que serão nossas inserem-se mais num projecto de reforma agrária de teor socialista, ou, melhor, democrático-popular, como propugnavam os comunistas portugueses, companheiros de jornada de Teixeira de Sousa que, aliás, introduziu António Nunes nas tertúlias neo-realistas do Café Gelo de Lisboa, do que numa visão independentista, como, aliás, se viria a verificar com a postura titubeante do romancista foguense quanto a esta última questão, não obstante o seu entranhado anti-fascismo e o seu inquestionável progressismo político-social, primeiramente de cariz mais comunista e revolucionário, depois de teor mais socialista e reformista ”- interpelou-me, visivelmente incomodado, o poeta-mor, ex-preso político e combatente da liberdade da pátria. Aliás, não te esqueças desse outro poeta caboverdiano radicado na Metrópole e muito ligado aos círculos neo-realistas da poesia do (anti) bloqueio. Na verdade, nascido na ilha da Boavista, foi levado para Lisboa ainda de tenra idade, tendo aí crescido e morrido, feito homem e poeta navegante entre o seio familiar crioulo caboverdiano e a ambiência circundante europeia, tornando-se, por isso, cultor de duas poéticas, complementares nas temáticas e nas sensibilidades trazidas à cena. São dele A Ilha e a Solidão e Missiva, de incidência e temática caboverdianas, mas também os muito celebrizados Pátria, Lugar de Exílio e A Invenção do Amor, de temática predominantemente portuguesa e/ou universalista, mas sempre de altíssimo teor libertário e anti-fascista. No progressivismo residirão os seus pontos de encontro com o poeta sagitário, saudoso da cidade natal, longínqua e pequena).

Porque sagitário, morreu o demiurgo do poema de amanhã esquizofrénico num hospício da pátria monumental da miséria desvalida do povo, enclausurado no coração do império.

Santiago continuava especado entre o mar e o pilão, entre o sul e a estiagem, aguardando pacientemente, meses atrás dos meses, anos atrás dos anos, a estação das águas, das sementeiras, das mondas, das remondas, das trismondas, das colheitas dos risos, dos frutos, da alegria,

Os cavalos relinchavam continuamente em Santa Catarina, as folhas dos poilões rumorejavam entre Setembro e Março, o azul entranhava-se à distância e aos ecos ressoando entre as colinas sob o profético deambular de Nhu Naxu.

 

1938-1966

Tempos de outros regressos e de outras partidas

 

Veio o António Pedro na sombra do nacional-sindicalismo, do surrealismo, do periodismo e do Marechal Carmona (então presidente da pseudo - república portuguesa do Estado Novo em exercício de soberania por terras ultramarinas), viu a claridade e sorriu satisfeito.

O arquipélago tornou-se com o império a retaguarda do mundo. Tudo cheirava a pólvora e holocausto. Crioulos caboverdianos nascidos afro-americanos ou latinos do Mississipi desembarcavam nas costas de Dunquerque. Judeus de Cabo Vede agarravam-se ao Sião de Achada Riba, enquanto António Pedro proferia convincentes ditongos de liberdade entre o nevoeiro de Londres.

O arquipélago tornou-se, contra o império, a retaguarda da voz. E os corpos islenhos calcinados entre os oboés, descobriam-se escuros, castanhos e libertários.

António Pedro habitava ainda as muitas moradas das diásporas.

 

                                 De 1966 até à eternidade

 

Morreu o pai minhoto, escriba assíduo na revista maior da província/colónia dos seus tempos praianos, veio e viu como a terra ainda era seca, de um continuado odor castanho salpicado de verde.  

Foi-se e nunca mais voltou, o Sagitário de tantas promessas não cumpridas, o Homem-Teatro de tantas máscaras assumidas quiçá para melhor perscrutar as diversas tonalidades da dor e as diversas matizes da paixão, o artista plástico e o poeta surrealista que, desprevenido, também se embebedou da terra nua e árida e das suas imponentes colinas azuis, e se fez eco dos rochedos de Laranjo e da Serra da Arga, ao som improvável da morna, que, serenada em serenata, teimava em arrebatá-lo para o transe de uns desajeitados passos de maxixe.

 

Praia, 21 de Julho de 1987 (versão original publicada na revista Fragmentos, de 1987)

Revisto e refundido em Lisboa, aos 16, 17, 20 e 21 de Dezembro de 2010, aos 30 de Janeiro, aos 1, 6 e 9 de Fevereiro, a 16 de Outubro de 2011 e em Abril de 2012.

 

 

(1) Dionísio de Deus y Fonteana é o nome literário utilizado por JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA para a escrita de crónicas literárias e de outros textos em prosa de ficção

 

 

(1) Dionísio de Deus y Fonteana é o nome literária para a escrita da crónica literária e da prosa de ficção do escritor caboverdiano José Luís Hopffer C. Almada (é também jurista, ensaísta, poeta e comentador radiofónico da actualidade caboverdiana e africana, com cinco livros de poesia publicados e vasta colaboração em jornais, revistas, blogues, sites, colectâneas de ensaios e antologias de poesia. Utiliza ainda os nomes literários Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada e Nzé di Sant´y Águ (para a poesia em português), Zé di Sant´y Águ (para a poesia em língua caboverdiana), Tuna  Furtado (para a escrita de artigos de opinião e ensaios).

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA (CABO VERDE).
Jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa. Desempenhou as funções de técnico superior em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo. Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique; colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias, A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias poéticas estrangeiras. Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008).
Publicou: À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007), e Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009). Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).

 

 

© Maria Estela Guedes
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