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O amadurecimento de um sistema literário nacional
configura-se na autorreferenciação. Ele se dá a partir do momento que
seus escritores privilegiam o passado sedimentado pelo chão das letras
de um determinado país até atingir a contemporaneidade. Convém salientar
que esse processo não foi conquistado com simplicidade entre os países
colonizados, que sofreram com a assimilação e todas as formas de
repressão às manifestações autóctones.
Moçambique vivenciou a terrível noite colonial até a
independência em 1975. Embora com toda a violência da ditadura
salazarista e a indefectível mentira do império ultramarino, seus poetas
procuraram desconstruir os cânones impostos pelo colonizador europeu
enaltecendo, por meio do verbo poético, o chão moçambicano e a
pluralidade étnica. Logo, são longevas as posturas literárias contrárias
ao referencial português em nomes, somente para citar alguns, como os de
Rui Knopfli, Noemia de Sousa, José Craveirinha, Virgílio de Lemos,
Fernando Couto e, nos primórdios, no século XIX, Campos Oliveira.
A partir de um Índico hibridizado, confluente
oriente/ocidente, denota-se a busca identitária. Recorremos à Ana
Mafalda Leite, com a lucidez peculiar, a inferir sobre esta mistura:
“Ser moçambicano (...) equivale a partilhar culturas e origens
diversificadas, que confluem no Índico, e em terra moçambicana se
entroncam, renascidos, bantuizados, travejados de uma memória, que a
viagem e a história refundem, em iniciático baptismo, na nova nação”
(LEITE, 2003, p. 155). A palavra poética em fruição erótica, metafórica
e, às vezes, surrealizante, atuava como força motriz para apaziguar o
dilaceramento acarretado pelos sonhos suprimidos e as injustiças
cometidas no cotidiano.
Esses escritores valeram-se de um profundo lirismo e de
poemas com exacerbado cariz existencial para confrontar o absurdo da
perversidade colonial, fazendo da Ilha de Moçambique e do mar,
precisamente sua porção índica, o lugar de reconfiguração dos sentidos e
- por que não? - da História, elaborando uma mítica memória da qual a
literatura se apropria, e que seria retomada pela geração surgida nos
anos 1980. Para Ana Mafalda Leite,
“o processo de mitificação
literário da Ilha de Moçambique, tem vindo a ser actualizado, e
amplificado, nos últimos anos, com maior insistência na obra de vários
autores, concretizando percursos alternativos a uma poética militante, e
de cariz ideológico, conferindo uma outra amplitude aos imaginários
poéticos, e actualizando uma ‘herança’ e tradição literárias, muito
antigas.” (LEITE, 2003, p. 137)
Entretanto, na trajetória literária moçambicana houve
um hiato dessa vertente, explicado pela urgência do momento histórico
dos anos 1960/1970 imposto pela guerra colonial e do posterior
“cantalutismo” para a nação independente, época que presenciou a
participação ativa dos escritores com seus poemas unindo e convocando os
moçambicanos para a luta, e, em seguida, cantar as loas que a revolução
traria para o país em construção.
Essa temática engessada e a rara diversidade estética e
formal vivenciariam o seu ocaso já no raiar dos anos 1980 com Luís
Carlos Patraquim e Mia Couto, que recuperavam o lirismo em um profundo
existencialismo nas obras “Monção” (1982) e “Raiz de Orvalho” (1983),
respectivamente. Isso seria solidificado com a estreia de Eduardo White
e o seu “Amar sobre o Índico” (1984), além da publicação da revista
“Charrua” (1984) e do surgimento de nomes como Nelson Saúte e Armando
Artur. Desde então, a navegação lírica pelos mares do Índico fez-se
constante, e a geração da década de 1980 se tornou referência para os
jovens escritores surgidos no decênio inicial do século XXI.
Assim, chegamos a Sangare Okapi e ao seu livro “Mesmos
Barcos ou poemas de revisitação do corpo” (Maputo: Associação dos
Escritores Moçambicanos, 2007), que assume esse legado e participa desse
“palimpsesto literário” (expressão alcunhada por Ana Mafalda Leite) com
o uso de dedicatórias, recriações de títulos, transcrições de versos
etc. Tudo na mais pura tradição poética do seu país. Ressalta-se a capa
do livro com uma bela pintura do celebrado Malangatana Valente,
intitulada "Olhar Erótico".
Sangare Okapi é bacharel em Ensino de Português, membro
efetivo e da direção da AEMO – Associação de Escritores Moçambicanos.
Publicou, em 2005, “Inventário de Angústias ou Apoetose do Nada”. Está
representado na revista brasileira “Poesia Sempre” (2007). Co-produziu e
encenou a peça “Pereto de Onti”, distinguida com mérito no Festival
Regional de Teatro Amador Zona Sul, organizado pela Casa da Cultura do
Alto-Maé (1996). Em 2007, participou, em representação de Moçambique, no
XII Festival de Poesia de Havana, dedicado a África e Caraíbas. Prêmio
Revelação de Poesia AEMO/ICA (2004) e Menção Honrosa do Prémio Revelação
Rui de Noronha/FUNDAC (2002). (1)
Temos um livro conduzido pelas vagas metapoéticas de
Okapi, que segue e procura reformular as “indicidades” surgidas na
poesia de seus antecessores. No alargamento dos sentidos referentes à
Ilha de Moçambique, lugar matricial, e no aprofundamento metafórico do
Índico múltiplo cultural e erotizado.
O livro é dividido por três cadernos. O primeiro
apresenta o maior número de poemas, alguma variedade formal, em tímido
referencial concretista, grande quantidade de citações de autores
moçambicanos, mas que ainda encontra espaço para homenagear o português
de nascimento, cabo-verdiano por opção, Manuel Ferreira, em que o
sujeito lírico apropria-se de temas caros à literatura do arquipélago
como a angústia em relação ao mar, “livrai-me desta solidão / do mar”
(p. 23). O sujeito lírico apresenta o dilema do ilhéu e intertextualiza
o poema ao prestar uma justa homenagem ao clássico romance “Flagelados
do Vento Leste” de Manuel Lopes, que são reconstruídos com delicadeza:
“oh sem ser / flagelado de algum vento leste / vontade de partir /
partir de vontade” (p. 23).
Dessas dedicatórias, há um poeta que não poderia deixar
de constar quando se versa sobre o Índico e a Ilha de Moçambique. O nome
de Rui Knopfli, nesse caso, impõe-se naturalmente. O seu livro “A Ilha
de Próspero”, segundo Leite, é o que “se faz primeira, e mais
consistente revisitação, do espaço ilhéu, em termos literários e
artísticos, enquanto percurso de indagação de uma memória histórica e
cultural” (LEITE, p. 139). O final do poema “Mossuril” de Okapi
remetem-nos à “Ilha Dourada” de Knopfli que seguem abaixo,
respectivamente:
fechada
toda de agrura
alguma
amargura
em si trancada
todo o amor
e mar
é sal e lágrima
no poema. (OKAPI, p. 24)
A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.
Tudo mais são ruas
prisioneiras
e casas velhas a mirar o
tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de
lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na
distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento. (SECCO,
p. 91)
Um profundo lirismo existencial revela-se no poema
“Língua: ilha ou corpo?”, dedicado àquele que contribuiu da melhor
maneira à relação com o mar, Virgílio de Lemos. Neste, a metapoética a
favor da ressignificação dos sentimentos em imagens que se diluem entre
a geografia física e do corpo em eruptiva criação poética:
A língua
é o pão que fermento
os dias todos.
Com ela (re)invento,
meço outros ângulos
do sentimento.
(...)
Eis o que sou: ilha
ou corpo cercado
de gente
por todos os lados. (p. 20)
A nova geração da literatura moçambicana também é
representada no poema “Insular”, valorizador da presença feminina. As
escritoras Maria João Hunguana e Sandra Salete são reverenciadas em um
poema carregado de erotismo, não só do corpo mas do próprio verbo
poético transitante entre o corpo, o mar em direção ao oriente e a
poesia: “(...) Mar azul / branco é o papel / sem a margem / do teu busto
// Lanço as redes, que são as letras // no arremesso / do papel a
cabeceira / começo. // Transporto outro poema / para o oriente do
corpo.” (p. 18)
Embora as dedicatórias sucedam-se e outros poetas são
celebrados nos poemas de Okapi, tais como Heliodoro Baptista, Guita Jr.,
Gulamo Khan, Eugénio Lisboa etc., o maior tributo se dá no poema “Patraquimmiana”,
no qual Sangare homenageia dois nomes consagrados da poesia moçambicana:
Luís Carlos Patraquim, que é citado no título, enquanto o corpo do poema
direciona-se ao poeta maior do país, o Velho Cravo, José Craveirinha
Para J. C.
Não sei com que estranha
miragem. Confesso.
Meu lírico cartomante das
noitadas pela Mafalala!
Sim, agora que o medo já
não puxa lustro na cidade. Velho Zé,
Livre e limpo da morte,
regressas pelos carris da memória,
mãos aninhadas nos bolsos
rotos. A mesma cartola preta,
Amarrada ao vento e um
pássaro que já não cabe no verso
Preso no lembo da língua,
desmentem o teu estatuto
De cidadão do futuro e
regressas, velho Zé!
Nenhuma epopeia trazida dos
escombros se levanta do rosto,
Nenhuma elegia brota do
coração, nenhuma!
E regressas, velho Zé,
poeta em todas as latitudes!... (p. 39)
Seguindo o palimpsesto literário moçambicano, este
poema de Okapi inspira-se no “Drummondiana” de Patraquim, publicado no
livro “Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora”. Patraquim
presta tributo ao poeta referencial Carlos Drummond de Andrade e o
dedica a um conterrâneo, Gulamo Khan. Já Okapi no seu projeto de
revisitar a literatura de Moçambique em seu livro, não recorre a
referenciais brasileiros como fez o seu inspirador, pois o jovem poeta é
de um tempo em que a literatura de seu país já sedimentou seu caminho e
criou suas próprias referências metapoéticas, assim sendo, os escritores
estrangeiros deixaram de ser uma necessidade primeira, o que não
queremos dizer que seja uma forma de menosprezar toda uma tradição
literária universal, mas, sim, o amadurecimento literário de um jovem
país.
O conjunto de poemas reunidos na segunda parte do
livro, intitulada “Mesmos barcos”, que se explicita a referência a
Patraquim e aos poemas integrantes de “Barcos elementares” do livro
supracitado. Também podemos, de certa maneira pelo forte intimismo
presente em Okapi, estender a referência a Eduardo White. Priorizando
poemas em prosa, o sujeito lírico de Sangare Okapi utiliza metáforas
dissonantes e imagens insólitas que confundem os sentidos do leitor para
descrever a linha tênue erotizante entre mulher, corpo e poesia:
Por isso, reinvento-te no
meu poema como em Gizé, o antílope na argila. E não me canso. Repito,
apenas: esquece o tempo. O tempo. A razão. Apaga a cicatriz na epiderme
e um escorpião com os dentes esmaga. Leva na boca, ensanguentada, uma
alga verde, verde o sonho da criança que não sonhou para viver. Como um
barco, sem porto, eriça a sensível vela do corpo e, frágil, o coração
nos sirva de bússola:
os remos dispensa,
temos as mãos
para a navegação. (p. 43)
A navegação se faz pela magia ilimitada da palavra
poética. As imagens viscerais, “escorpião com os dentes esmaga”, são
entrecruzadas por uma escrita pausada a buscar o amor e a trilhar a
mesma “ponte antiga” entre os seus antecessores literários: “Se entre
mim e ti há uma ponte antiga que nos deflaga o desejo, a irreprimível
geografia do afecto” (p. 44). O existencialismo é acompanhado, assim
como na poesia de Patraquim e Eduardo White, pelo olhar sensível de
Okapi que se revela atento às incertezas do seu país: “há um pequeno
país / no meu país: / chama-se angústia” (p. 44).
A erotização desenfreada dos sentidos revela-se no
corpo do poema e no corpo feminino vinculado à Ilha e ao índico
hibridizado, em “urni e sarris”:
Hoje, quase que instintiva
e furtivamente, revisito-te. Exposta silhueta de mulher, na textura
índica, esperando o tempo. Em Mossuril, preso o marisco na rede. Posso,
agora, sem receio algum, vociferar no poema: amo-te! Amo-te as curvas,
não sei que perigo ou mistério, a serena música das dunas no peito,
romaria em alguma boca explodindo, ou então, a alga na bexiga se
multiplicando. Olha a água, agora à nossa volta! A vertigem!?! Em ti,
barco sem destino, nu me acoito inteiro e,
se remar-te é engano,
provável é agora
rimarmo-nos. (p. 45)
Assim, valendo-se da retomada lírica dos poetas
moçambicanos a recuperar a Ilha de Moçambique como lugar matricial e de
entrocamento de culturas diversas, tendo em Luís Carlos Patraquim e
Eduardo White alguns dos maiores expoentes dessa vertente, destacamos
excertos desses escritores os quais são, em nosso entendimento,
inspiradores para a escrita de Sangare Okapi e, com isso, ter seu nome
incluído no palimpsesto literário moçambicano aqui proposto:
Ilha, corpo, mulher. Ilha,
encantamento. Primeiro tema para cantar. Primeira aproximação para
ver-te, na carne cansada da fortaleza ida, na rugosidade hirta do
casario decrépito, a pensar memórias, escravos, coral e açafrão. Minha
ilha/vulva de fogo e pedra no Índico esquecida. Circum-navego-te, dos
crespos cabelos da rocha ao ventre arfante e esculturo-te de azul e sol.
Tu, solto colmo o oriente, para sempre de ti exilada.
Foste uma vez a
sumptuosidade mercantil, cortesão impossível roçagando-se nas paredes
altas dos palácios. Sobre a flor árabe e excisão esboçada com nomes de
longe. São Paulo. Fadário quinhentista de “armas e varões assinalados”.
São Paulo e rastilho do evangelho nas bombardas dos galeões. São Paulo
rosa, ébano, sangue, tinir de cristais, gibões e espadas, arfar de vozes
nas alcovas efémeras. Nas ranhuras deste empedrado com torre a escandir
lamentos dormirão os fantasmas? Almas minhas de panos e missangas
gentis, quem vos partiu o parto em tijolo ficado e envelhecido?
Ilha, capulana estampada de
soldados e morte. Ilha elegíaca nos monumentos. Porta-aviões de
agoirentos corvos na encruzilhada das monções. De oriente a oriente
flagelaste o interior da terra. De Callicut a Lisboa a lança que o vento
lascivo trilhou em nocturnos, espamódicos duelos e a dúvida
retraduzindo-se agora entre campanário e minarete. Muezzin alcandorado,
inconquistável.
Porque ao princípio era o
mar e a ilha. Sinbas e Ulisses. Xerazzade e Penélope. Nomes sobre nomes.
Língua de línguas em Macua matriciadas. (PATRAQUIM. p. 41-42)
Sou ao Norte a minha Ilha,
os sinais e as sedas que ali se trocaram e nessa beleza busco-te e para
mim algum percurso, alguma linguagem submarina e pulsional, busco-te por
entre as negras enroladas em suas capulanas arrepiadas, altas, magras,
frágeis e belas como as missangas e vejo-te pelos seus absurdos olhos
azuis. Que viagens eu viajo, meu amor, para tocar-te esses búzios, esses
peixes vulneráveis que são as tuas mãos e também como me sonho de
turbantes e filigranas e uma navalha que arredondada já não mata, e
minhas oferendas de Java ouros e frutos incensos e volúpia.
Quero chegar à tua praia
diáfano como um deus, com a música rude e nua do corno de uma palave, um
séquito ajawa, um curandeiro macua, uma mulher que dance uma Índia tão
distante, e um monge birmanês, clandestino no tempo, que sobre nós se
sente e pense. Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta
Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste
pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado. Em tudo
habita ainda a tua imagem, o m’shiro purificado da tua beleza e das tuas
sedes, a rosa dos ventos, o sextante dos tempos, em tudo acordas de
repente como se ardesse naus, garças, águas, ouros, pratas, vagas,
escravos ausentes, tudo o que esta Ilha que sou ao Norte nos pode
lembrar. Deito-me, assim, sobre o Sol com a praia funda em meu
pensamento. (WHITE, p. 24-27)
O derradeiro poema de “Mesmos Barcos ou poemas de
revisitação do corpo” presta uma justa homenagem ao poeta primeiro de
Moçambique, pioneiro no versejar da Ilha, o oitocentista Campos
Oliveira. Neste poema, “O Barco Encalhado”, único na última parte, o
sujeito lírico demonstra as culturas sobrepostas que aportaram no
decorrer dos séculos na Ilha de Moçambique, idealizando uma nova cultura
hibridizada. Além disso, há a crítica ferrenha à triste pilhagem
realizada pelos portugueses:
(...) Resgatasse o Índico o
que do oriente com o tempo soube sufragar.
Os barcos todos com as
velas hirtas e as gentes.
Suas as pérolas mais os
rubis. O aljôfar. Luzindo no ar.
Minha fracturada chávena
árabe persa na cal
ou resplandecente a
missanga cravada no ventre d’água,
qual sinal dos que de além
mar chegaram
e partiram com baús
fartos...
Fobia dos que ficamos. Mas
herdeiros. (p. 49)
Ao retomar de forma criativa a metapoética inspiração
índica e da Ilha de Moçambique em seu livro, Sangare Okapi mostra o
quanto ainda é ilimitado versar a partir desses referenciais, e
insere-se com louvor na tradição literária do seu país, mostrando o
vigor da novíssima geração. Inferimos que a vocação palimpséstica de
“Mesmos Barcos ou poemas de revisitação do corpo” manifesta a maturidade
da literatura moçambicana ao revisitar o seu corpo ainda jovem, com um
vasto caminho a ser sedimentado pelos poetas. E Sangare Okapi fará parte
dessa trajetória e dessa história. É um nome que veio para ficar.
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