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Pergunta frequente, feita a portugueses no Brasil, é a de saber se existem diferenças significativas
entre a poesia portuguesa e a brasileira, e quais. Hipótese: será a
portuguesa mais metafísica, e mais voltada para a vida corrente a
brasileira?
Não gosto de comparar grupos, embora me interesse
muito a literatura comparada. Comparar grupos humanos ou as suas
produções exige passar por
campos tradicionalmente minados pelo preconceito, além de que nós só
achamos as similitudes e as diferenças mais convenientes à manutenção de
soberanias. Comparações dessas estabelecem sempre uma relação de forças,
uma competição, relacionando-se por isso muito mais com posicionamentos
ideológicos do que estéticos. A arte não é como o desporto, em que vence o
melhor de certo número de iguais. Em princípio, o que mais importa na
arte é a diferença, e entre diferentes não é viável a competição. Só nas
fábulas vemos corridas entre lebres e tartarugas, na vida real as
tartarugas correm com tartarugas e as lebres correm com lebres ou à
frente dos caçadores. Quando no mundo físico, fora do âmbito desportivo,
vemos uns homens a correr à frente de outros homens, o mais certo é os
de trás terem na mão um chicote.
Já foi tempo em que a ciência distinguia os grupos humanos pela
cor da pele, dos olhos e dos cabelos, e desgraçadamente o preconceito da
superioridade de umas raças sobre outras permanece nas maiorias mais tacanhas das
populações; também se distinguiam e separavam
pela forma do crânio, e não nos esqueçamos de um desses atrozes modelos
de comparação, criado por Lombroso, que levou avante a crença de que a forma e volume da
caixa craniana definiam a presença de criminosos e de génios. Hoje, vencem
outros traços iguais e distintivos, baseados no ADN, que daqui a décadas valerão provavelmente
tanto como o modelo de Lombroso, quando a ciência descobrir novos traços
distintivos, baseando neles novos modelos antropológicos. Nós comparamos aquilo que
convém aos poderes instituídos, e não necessariamente o que de facto distingue, se algo de deveras
importante separa os muitos grupos humanos e suas obras.
Entre comparar grupos e correlatas produções
culturais e comparar autores, entendo que é muito mais proveitoso
comparar o que pertence ao domínio do individual. Entre dois autores do
mesmo país, e por conseguinte falantes da mesma língua, podem existir
diferenças mais abissais do que entre grupos humanos. É o caso de dois
poetas pernambucanos de que apresento textos, Cida Pedrosa e
Wellington de Melo. Por muito que usem a mesma língua, tenham a mesma
nacionalidade e vivam na mesma região, as diferenças entre ambos são
mais significativas do que as suas semelhanças. Nada obstando entretanto
a que a situação se invertesse, caso os comparássemos com poetas
portugueses da mesma geração. A diferença entre poetas portugueses e
brasileiros é menos marcante que a diferença entre poetas que escrevem
em português e poetas que escrevem em mirandês, a segunda língua oficial
portuguesa - ou entre os que escrevem em guarani e os que escrevem em
português -, o que nos permite passar à frente do que já todos sabemos: a
língua é o maior traço de união entre os escritores que a partilham, e por
consequência o maior traço distintivo entre esses e utentes de outras
línguas.
Semelhanças entre Cida Pedrosa e Wellington de Melo,
além das já expostas, são a junção de texto a imagem. Ambos os livros
são obras de arte gráfica, abundantemente iluminados, no caso de Cida
por Teresa Costa Rego (Jaíne Cintra assina o design), e no caso de
Wellington de Melo por Raoni Assis.
Também será caso para referir uma comum aspiração ao
conhecimento e denúncia de problemas que cada vez mais ultrapassam as
fronteiras pessoais, étnicas e nacionais, para tocarem naqueles que
atingem toda a Terra. O modo como o fazem é diverso, pois os discursos
também o são: mais direto o discurso de Cida Pedrosa, mais labiríntico o
de Wellington de Melo.
Cida Pedrosa apresenta o livro «As filhas de Lilith»,
um abcedário de retratos de mulheres. De Angélica a Zenaide, temos assim
mais de duas dezenas de poemas projetados para o exterior, ou seja,
anti-líricos, sem presença visível de um sujeito poético. Embora em «O
peso do medo - 30 poemas em fúria», de Wellington de Melo, também
encontremos poemas intitulados com o nome de pessoas, ou que sem essa
identificação as retratam, não é muito frutuosa a comparação entre ambos
desse ponto de vista.
Entre diferenças mínimas que surtem efeito maior,
chama a atenção o modo como em Wellington de Melo aparece a grafia dos
nomes próprios: sem vogais, apenas com o espaço competente a marcar a
sua falta. Esta singularidade, ao assinalar deveras uma falta, traz à
percepção do leitor a ideia de uma identidade mutilada, que o autor do
posfácio, Bruno Piffardini, informa tratar-se de transposição para a
língua portuguesa de uma característica do hebraico, a da inexistência
de vogais. Aliás corrijo, tal informação é dada por João B. Martins de
Morais, prefaciador, que também refere o poema dedicado a Aleph, filho
do poeta. «Aleph», além de título de uma coletânea de contos de Jorge
Luís Borges, é a primeira letra do alfabeto semita, equivalente a alfa.
O medo patente nos 30 poemas do livro dirá então
respeito a um peso que impenda ainda sobre os judeus, vindo desde
há séculos de perseguição religiosa e étnica? A minha leitura detetou essas
referências, embora, nos poemas, não sejam óbvias. O medo exprime-se no
singular por ser muito abrangente, tocar em todos os medos que atingem a
humanidade e que de forma particular sofre o sujeito.
A subjetividade leva então a considerar a outra diferença
notória e muito
extensa entre as obras dos dois poetas: se os textos de Cida Pedrosa se
voltam para o exterior, comentando com objetividade figuras que assumem o contorno de
tipos sociais, já os de Wellington de Melo se voltam para a
interioridade do sujeito, com traços fortes de uma autobiografia mental.
Ela começa logo no primeiro poema, «wellington de melo»: não não não
não serás grande poeta porque letra não se faz com afago [...] .
Como se nota, o poeta fala de si mesmo na segunda pessoa, o que parece
pôr de parte a centralidade do sujeito, mas trata-se de um recurso
estilístico que ainda valoriza mais a tradicional densidade dos afetos
própria da lírica romântica.
É interessante saber que os poemas de Cida Pedrosa,
esse alfabeto de mulheres dos nossos tempos, ou das soluções que a vida,
o trabalho e as técnicas médicas (cirurgia estética, de reconstrução orgânica com
fins de mudança de sexo, etc.) oferecem à mulher, foi adaptado a espetáculo. Diversos tipos de mulher se apresentam, num discurso
desataviado, limpo de retórica e artifício, por vezes com léxico
sexualmente forte, num saldo realista de mais tragédia e infelicidade do
que de sucesso. Imaginamos que o desfile dos textos/mulheres, pela sua
energia, capacidade de síntese e acutilância descritiva, surtam
realmente bom efeito teatral num palco ou num écran. |
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de
Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011;
"Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |