I
Foi com um gesto de desânimo
que
Deus expulsou Adão do paraíso
anatemizou Caim com a eternidade da sua cólera
e
nos ensinou a penitência do sofrimento
II
Foi fascinado com o pecado
e
com a imprevisibilidade da vergonha
que
Deus inundou com o estigma da dor
as faíscas de doçura
que
incandesceram
os corpos primordiais
do amor e da paixão
instituiu a culpa
no inescrutável coração da mágoa
e
se prostrou em expiação
ante
a impiedosa sensualidade da mulher
III
Depois
de se ter feito
solilóquio e reverberação do verbo
e
de ter criado Adão
de uma pedra de basalto
entumescida
em terra de massa-pé
e do sopro fugaz do mistério
a que se chama vida
criou Deus a mulher
a Eva das nocturnas fantasias de Adão
esculpindo-a
em corpo e melenas de paraíso
à imagem e semelhança
da sua incorrompida beleza
IV
Foi num assomo
de tédio cansaço e tensão erótica
que
Deus fez de Eva a sua diva
e de Adão o serviçal
dos seus momentos ociosos e libertinos
V
Perpassava a bruma
sem cansaço sem tempo e sem espaço
entre as ervas
estavam Eva e a serpente
lânguidas e perversas
e
cientes do amor e do conhecimento
sob uma mangueira estiradas
num leito entrançado
de folhas de coqueiro e de bananeira
VI
Perpassava o tempo
tenuemente exausto e ausente da memória
entre o crepitar dos risos
quando surpreendeu Deus às fêmeas
e ao olhar de Adão
libidinoso e alucinado
com a subversiva ejaculação do prazer
VII
Da infidelidade de Eva
e da ousadia de Adão
da irremediada frustração divina
e da iluminada estupefacção do adultério
nasceram dois gémeos
ambos de cor parda
pois que
era Eva tão alva
como a imperturbada brancura da neve
e
Adão tão negro
como o nocturno rumor da chuva
sobre o esplendor das trevas e do escurecido verde
que precederam o mundo
pois que
era Adão tão claro
como as cristalinas nascentes
rumorejantes
nos montes intocados
e
Eva tão escura
como as ribeiras
por onde as intempéries e os frutos da natureza
desfraldam a sua impúdica alegria
e
fazem germinar
a infatigável e atónita memória do ébano
VIII
Ao primeiro de entre os gémeos
chamaram-no Caim
e
destinaram-lhe
uma funda um alforge de pedras
e
o pastoreio de vacas e de cabras
nas achadas das imediações do paraíso das águas
do éden chamado Pombal
e
o segundo
que seria amante da música
da contemplação e da masturbação dos sentidos
respondia por Abel
e
breve seria a piedade divina
face ao seu cadáver
e à fratricida exasperação de Caim
em trágico e guerreiro mimetismo de Gitano
o seu touro predilecto
IX
Morto Adão
(da doentia nostalgia a que chamam saudade
da entristecida saudade a que chamam banzo )
depois de longo exílio
após dolorido desterro
num ermo do mundo
situado entre o Rincão e o Monte Negro
era Eva
ainda jovem e bela
e rispidamente sensual
face à velhice de Deus
Morto Adão
(por humana fraqueza de Deus)
enamorou-se por Eva Caim
e
fugiram ambos
para o desabitado interior do mundo
que se estendia pelas distâncias
das ilhas periféricas
as desertas chamadas
e
cresceram e multiplicaram-se
em faces castanhas
escurecidas
pela inospitalidade das terras
devastadas
pelo abandono pela secura
e pelo árido olhar de Deus
e
pereceram e ressuscitaram
entre cabras e pedras
e
o sincopar
dos cantos
que foram inventando
e
a dolência
dos lamentos
que iam entoando
na ourela do mar
no fundo das ribeiras
no alto das assomadas
e
crestaram as faces
de persistência e de melancolia
e
saíram pelo mundo
e
fizeram-se diáspora
em busca
e
em rememoração
do perdido paraíso do verde e das águas
X
Remordido pela náusea
possuído pelo inapagável rumor da vingança
fez Deus petrificar Adão
e, depois, Eva
(ou o que do seu rasto latejava sobre os areais)
e
colocou-os sobre o cume
do monte mais alto
-Pico de António chamado -
cobrindo-os com o fosco e basáltico azul
da distância e do esquecimento
e
agora e para todo o sempre
da hora da nossa morte
em estado de aparente coma
sadicamente
tudo isto
(isto é, o nosso purgatório de inveterados habitantes da secura)
no seu leito de martírio e morte
observa
XI
Eis pois
desvendado o segredo
do irascível mau humor de Deus
e da ciclotímica longevidade
do sofrimento sobre a terra:
a vítima
da primeira sublimação
do primeiro adultério
do primeiro incesto
do primeiro remorso
da primeira irreverência proletária
foi Deus, ele próprio,
inerte sobre o ócio
e a sua imensa sabedoria
XII
Vocifera a criatura
cabisbaixa e estupefacta
com a desmesura da sede e a imensidade da seca
Com árida raiva
vocifera a criatura
em face das águas assanhadas diluvianas
carregando para o mar
as últimas colheitas
as derradeiras esperanças
e
verbera:
e
continua o sofrimento
sobre as crinas incolores do tempo
e
sobrevive o escárnio da terrena tragédia
nas águas tementes
que descaem
dos sulcos inclementes
que compõem
a inconfundível fisionomia
da alucinação e da resignação |