REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | Número 25-26 | Março-Abril | 2012

 
 

 

 

ANTÓNIO AUGUSTO

MARIANTE FURTADO

Ambiciosa

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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  Ambiciosa
 

“A ambição mais exacerbada não dá o menor sinal de si
quando se encontra na impossibilidade absoluta
de chegar onde deseja”
La Rochefoucauld

 1

Luísa sabia muito bem que somente alguém como Greiceneide seria capaz de soar o alarme, pois não era uma questão de Grace Kelly, mas de Greiceneide, sempre atrevida e saliente, metida como a sujeira, uma pipoca do Alagoas. E ela fazia justiça, sem nenhum esforço, ao nome que carregaria até o túmulo, pensava Luísa, fazendo ginástica para entender o fenômeno, embora tenha sido educada no freio e na surdina de que todos eram iguais perante Deus. Greiceneide, irmã de Greicenilde e de Graciara, filha de Valdomiro da Conceição e de Maria Imaculada da Conceição, ao seu inteiro dispor. Enfim, três graças pardas saltitantes e sorridentes, com sotaques e gaforinhas híbridas que colocariam os neo-nazistas nervosos. Na iminência dum taco de baseball.

E assim, soado o alarme, embora Luísa soubesse que muitas suassem o sino e outras soassem muito no verão, as almas de comissão sobre vendas ficaram indóceis, à beira da possessão, mesmo que muitas ignorassem o que se tratava, deixando-se contaminar pela reação em cadeia, acefalamente indo no embalo. Atordoadas com aquele prato de resistência fumegante, jogaram-se sobre as nuvens do perfume da grã-fina que entrara. Arriscavam-se. Mas, em seus corações suburbanos, havia a esperança do ofende mas não magoa.

De certa forma, elas não deixavam de ter lá suas razões. Estavam saturadas de tanto teatro. Só lhes restava, naquela ocasião, passar por cima da clientela que não fornicava nem abandonava o recinto. Um tipo de gente que abusava das comodidades da livraria. Vinha. Entrava. Aboletava-se pelas poltronas imensas e fofas. Lia como se a casa fosse sua. Chegava ao descalabro de fazer anotações. Punha em risco a integridade dos pobres livros. Desarrumava as prateleiras. E não comprava um mísero volume de pensamentos elevados: estes sempre transbordando de pérolas de resignação, boa vontade e esperança, exigindo sempre um sorriso, concentração e fé por parte do infeliz que mergulha suas agruras em suas páginas, que não se cansam, como um gravador, de prometer soluções que resolvem as vidas somente no instante da leitura - pequenos comprimidos que aliviam momentaneamente a febre, ignorando-a como possibilidade de sintoma, sequer roçando na pele da infecção.  

Enfim, naquele final de tarde monótono, quando Luísa recorria ao pulso de instante em instante e os ponteiros pareciam emperrados, dando-lhe a certeza de que minutos e horas são eternos, mas que uma vida se esvai num tapa,  uma fiasquenta do coro dos vendedores arrancou aquela grã-fina vaporosa de seu possível anonimato. Em pele e ossos, pois era magra como um bom bacalhau de porta de venda, perambulando a esmo pela livraria, como um cintilante beija-flor, de estante em estante, estava Lili Mello Guimarães Cerdeira.

Embutida em sua falsa humildade, mas agradecendo a Deus por não se chamar Greiceneide, Luísa acompanhou o que, diante daqueles olhos famintos por emoções baratas, poderia ser uma entrada triunfal. Munida de certa inocência petulante, a grã-fina inundou a livraria de fascínio e constrangimento.

Vista de perto, sem medo de errar, ela se insurgia contra o gato que passa por lebre. Envergava com muito empenho o que se poderia chamar de uma idade indefinida. O tempo em seu corpo chafurdava na vagueza. Prometia a mais cristalina ambigüidade. Todos seriam unânimes em concordar que já ultrapassara os vinte e cinco. Também não haveria dúvidas de que, mesmo contra a vontade, teria chegado nuns quarenta muito bem assentados pela carcaça. Entretanto, ela era capaz de garantir a certeza dos trinta como se estivesse grudada nos dezoito. Tudo indicava uma esfinge que não queria ser decifrada. Era como se tivesse seguido os passos de Dorian Gray. Algum tempo depois, Luísa viria a descobrir que a moça começara a fazer plástica aos vinte - sacrifício que a deixara entregue a um desgaste imperceptível, apesar de muitos se assustarem quando descobriam suas mãos, inclusive, Luísa.

Resumindo a aparição da moça, podia ser dito que Lili Mello Guimarães Cerdeira, diante do constrangimento proletário, era dessas mulheres que você não acredita que possam suar ou ir ao banheiro. Parecia predestinada a desfrutar todo o crédito do mundo, inclusive, para proferir asneiras. Qualquer calamidade que viesse de seus lábios lambuzados de gloss seria encarada como coisa profunda e enigmática. Diante duma platéia perplexa, teria direito a minutos de reflexão, estando condenada ao aplauso.

Horrorizada com aquela invasão de privacidade, quase cuspindo marimbondos, convicta de que corria risco de vida, Lili esteve quase a ponto de desistir e dar no pé. Mas, ao depositar seus olhos verdes sobre Luísa, como se estivesse sob a pressão dum impulso associativo muito íntimo e amargo, conteve o pavor e acabou mudando de idéia. Ficou, entregando-se ao horizonte de seus cartões de crédito.

E Luísa, encolhida em sua insignificância habitual, chegou a esquivar-se. Olhou para os lados, para trás, sondando terreno, na dúvida. A mensagem poderia ter outro alvo, e ela estaria se metendo em coisas que não lhe diziam respeito, pagando mico e sentindo-se ainda mais miserável do que vinha se sentindo por aqueles dias. Mas ela estava enganada. Aquele olhar verde lhe pertencia. Um arrepio inesperado estremeceu-a por inteiro, fazendo com que se lembrasse da lenda da balconista gaúcha, há muitos anos atrás, que fora pescada por Coco Chanel, levada para Paris, transformada em modelo, e depois, quando ela não servia mais para a coisa, acabara se conformando à sorte de transformar-se na esposa dum banqueiro poderoso, passando a desfilar pela vida como objeto de arte, nunca mais correndo o risco de contar tostões para tomar seu bonde. Mas era tudo sonho.

2

Ondeando a mão esquerda, muito pálida por sinal, com um único e pesado anel de ouro que tomava o lugar da aliança, como se espantasse moscas impertinentes, Lili rechaçou os abutres desiludidos, pondo-os em seu devido lugar, fazendo-os voltar a sua pasmaceira fofocante. Livre, deu-se ao luxo de abrir algumas frestas da sua simpatia na direção de Luísa. Como se estivesse apavorada pelo fato da garota ter escolhido um bordel como local de trabalho, ela perguntou quem ela era e o que estava fazendo ali, arrematando que ela desperdiçava sua vida e sua beleza. Mas não ouviu o que ela tinha para dizer. Limitou-se a perambular, sendo apanhada pela teia do consumo. Satisfeita, mas quem sabe perturbada com o que Luísa provavelmente a fazia remoer, ela flutuou da livraria, cheia de pacotes, sempre naquele passo melífluo, displicente, de quem desconhece as exigências das jornadas de trabalho.

Sem querer, Lili precipitou o que muitos poderiam considerar como o declínio, na direção da queda, duma Luísa entregue à própria sorte, num ambiente que sempre lhe fora hostil, desde que pusera seus pés ali pela primeira  vez. Apesar das tragédias estarem sempre sob a dependência dum ponto de vista, não devendo ser levadas muito a sério, principalmente, se conseguimos entender que não se faz um omelete sem quebrar os ovos, que nada é estático neste mundo, e, finalmente, como tiro de consolação, que Deus escreve certo por linhas tortas. Elas modificam situações, isto é inquestionável, embora provavelmente seus únicos efeitos sejam impossibilitar os afetados de retornarem ao status quo ante, deixando-lhes na vida um horizonte de hipóteses para que comecem a construir coisas novas num outro sertão. Diante da impermanência budista, diante de Darwin, a tragédia não passa de mito, de fairy tale.

Entretanto, indignado com a rejeição banco suíço, o coro salário-família, sem sombra de dúvidas, encabeçado por Greiceneide, resolveu tramar sua queda, pois já fazia um bom tempo que ingressara na rampa do declínio. Nunca gozara de bom conceito pelos bastidores da livraria. Era como se estivessem esperando um pretexto para lhe pôr na rua. Dentro de duas semanas, eles teriam o motivo.

E não foi difícil. Bastou que Greicineide recorresse aos ouvidos maliciosos dum gerente que sempre estivera desgostoso porque Luísa sempre rejeitara suas investidas pouco ortodoxas. Ela jamais mostrara interesse em receber seus favores no pós-expediente. Coisa que Greiceneide não fazia, submetendo-se ao matador, convicta de que exercia algum poder sobre ele e que seu emprego estava garantido. Luísa tinha um nojo febril das lambisgóias famélicas, que se afogavam em pouca água, que se deixavam abater pelo nordestino bem falante, e ainda mais, na escuridão desconfortável e quase mofada dum depósito. E era sempre depois dum dia afobado, nervoso, empapado de suor, apesar do ar condicionado. O que significava pouca ou nenhuma higiene. Com direito a boquete e aos finalmentes. Sempre numa velocidade sórdida. Sempre sem tirar a roupa.  Sempre de pé.

Sem nenhum pudor, no meio daquele cardume de piranhas sôfregas, ela se dava ao luxo de sentir-se moral e superior. Nunca dera a mínima para suas tentativas de fazê-la trincar a pose. Desde que pusera seus pés naquele lugar, percebeu que aquela gente de buchada de bode, caipirinha, cerveja estupidamente gelada, pagode efervescente e música sertaneja não fazia parte da sua turma. Metidos na vala comum de seu desprezo, os infelizes não passavam de acidente, de elementos circunstanciais, insignificâncias passageiras, apesar dela saber muito bem que uma cobra sempre teve poder suficiente, mesmo que rastejante, para derrubar um homem com uma simples mordida num calcanhar.

Naquela tarde, apesar de muita cara feia e cochichos desabonatórios, o que lhe dizia respeito realmente era a comissão abocanhada. Os livros do caniço fino trato custavam umas três vezes seu salário de fome.

3

Após algumas semanas entregues ao desconforto duma guerra fria rancorosa, onde Luísa comeu o pão que o diabo amassou, sendo ofendida e humilhada, Lili reapareceu, exibindo o peso sinistro dum Dolce & Gabbana que lhe oferecia a atmosfera duma viúva siciliana. E ela mais uma vez apagou a súcia desesperada, embora já tivesse deixado claro que ela não teria voz em seus critérios de escolha, entrando com se apenas Luísa existisse. O que não deixava de ser muito constrangedor e temerário, aumentando ainda mais o desconforto e o clima de barricadas invisíveis, prometendo muita incomodação para Luísa, depois que a outra fosse embora, pois ela já sabia muito bem o que lhe acontecia quando a grã-fina batia em retirada. Antes ela a tivesse ignorado desde o começo.

Naquela ocasião, Lili comprou mais inutilidades contemplativas  e dispendiosas. Ela tinha uma queda por livros pesados e gigantescos de moda. Também torrava dinheiro em biografias de celebridades estrangeiras e mortas. Seu mito predileto era a Duquesa de Windsor.

Após ter passado seu cartão, flexionando seus músculos delicados com os quilos das centenas de dólares que havia queimado, sem pestanejar, convidou Luísa para qualquer coisa próxima dum café. A garota não soube muito bem dizer o que lhe deu, mas não encontrou forças para oferecer resistência, ignorando que seu pescoço estava a prêmio. Apesar de nunca ter sentido alguma vocação para sapateado ou guerra entre aranhas, largou um sim descarado, num impulso de investimento cego, sem margem de cálculo sobre a garantia de alguma vantagem que talvez pudesse ser extraída do desatino. Muito senhora de seus atos, sem dar satisfação a quem quer que fosse, deixou-se arrastar pela socialite até diante dum frappé de café.

4

Quando regressou da imprudência estava na rua, embora estivesse no aguardo já fazia bom tempo. De certa forma, aquilo acalmou seus nervos, pois já não agüentava mais aquele compasso de espera.

Limitando-se a um laconismo de ocasião, não protestou coisa alguma, segurando-se para que não saísse do sério, embora os comentários desagradáveis, clamando por um escândalo, estivessem determinados a desafiar sua paciência. Contendo-se, pois sabia que se começasse a falar, quebraria todos os dentes de Greiceneide, furando-lhe um dos olhos, pequeno gozo que só atrapalharia seu futuro, Luísa decepcionou a todos. Preferiu embasbacar-se, deixando-se anestesiar, mas nada impediu que se sentisse como um escravo que tivesse conseguido sua carta de alforria, mas estivesse ainda confuso quanto ao que faria com ela, pois, apesar de sempre ter vivido num inferno, pelo menos, ele era conhecido. O máximo que a turba extraiu dela foi um olhar sarcástico de cordialidade, enquanto atravessava a loja na direção do shopping.

No fundo, embora precisasse daquele salário, sempre desprezara aquele emprego. Além disto, quase que como sina ou simplesmente por falta de condicionamento, sempre que fora jogada numa situação que contrariasse sua vontade, principalmente, as que envolvessem trabalho, mesmo que fosse obrigada a permanecer nela, os resultados eram sempre lamentáveis, frustrando mais a expectativa de seus superiores hierárquicos do que as dela própria, pois sabia, desde o início, que não fora talhada para aquilo, e também, com muito descaramento, que não se empenharia para que ficasse na coisa por muito tempo, sentindo sempre certo alívio quando era convidada a retirar-se, pouco lhe interessando que dali saltasse para a rua da amargura.

E também pouco ligava para o fato dos empregos estarem muito difíceis de serem conseguidos, ainda mais para quem não tinha um curso superior como ela. Algo lhe pipocava que sempre haveria gente desempregada, doente e insatisfeita com a natureza das coisas. O mundo nunca mudaria para melhor, mesmo que houvesse revoluções sangrentas, celulares que pareciam o cinto de utilidades do Batman, novos eletrodomésticos e democracia. Que cada um cuidasse de si próprio, e do jeito que fosse possível.

Caminhando pelo shopping meio estonteada, quase tropeçando nos próprios calcanhares, e levando encontrões de gente apressada, mastigou as mãos de Lili sobre as suas. Não tivera receio algum. Não tentara escapar dos toques. Alguma coisa naquela mulher a fazia lembrar-se da mãe morta, embora ela tivesse ido embora quando tinha seis anos de idade. Lili, naquela tarde, recendia ao Carolina Herrera masculino. Soltava dispersões muito azuis pela boca. Era triste em sua beleza, desde que fosse observada com distanciamento. O cartão delicado, sem ser piegas ou cor-de-rosa, acondicionado num dos bolsos do jeans, parecia assumir proporções dum salvo-conduto ou duma lettre de cachet.

O problema imediato era enfrentar as críticas que receberia quando entrasse em casa. Eles encheriam seus ouvidos com recriminações e ofensas, e, se desse corda, retaliando, haveria mais uma discussão infrutífera que corria o risco de transformar-se num briga acirrada. Embora já estivesse mais do que acostumada a ser tratada como uma nulidade ambulante. Pelo menos, ainda tinha casa e comida, apesar do carinho nunca ter fixo raízes pelo pedaço.

Socada em seu quartinho no Peixoto, ouvindo música, lendo alguma coisa, ela tinha certeza de que acabaria encontrando algum tipo de saída ou enlouqueceria, pondo fogo no apartamento. Mas era imprescindível acreditar que amanhã era um outro dia, mesmo que não houvesse muito entusiasmo depositado sobre a crença. Não custava nada ir à praia. Sentar pelo Posto 6. Olhar os pescadores. Ler pela areia, sentada sob as amendoeiras, correndo o risco de ser assaltada, ou espancada porque nada tinha para oferecer ao ladrão. Ver o mar muito azul e muito sujo, cheio de latinhas e sacos plásticos boiando a esmo. Poderia surpreender algum afogamento inesperado. Quem sabe alguém fosse assaltado e não ela, e conseguisse flagrar a desgraça, fazendo número à indiferença curiosa dos populares que vêem tudo mas não sabem de nada. O que não deixava de ser uma espécie de passatempo, mesmo que às custas do infortúnio alheio.

5

Luísa adejava nervosa e sem viço por dezenove anos mal vividos. Sempre sentira que seus dias não passavam de aflição e ressentimento. Mas engolia tudo em seco, aderindo hipocritamente às mazelas do tudo bem. Quem a visse solta por ai, não identificaria patologias ou mais um poço de insatisfação entristecendo o azul do mundo. Veria displicência, indiferença, uma garota gozando saúde e juventude.

Um de seus principais problemas era a dúvida atroz sobre as vantagens duma virgindade forçada.

Conservava seu hímen como se fossem as jóias da coroa. Sem que soubesse de onde, sempre encontrou certas reservas de discernimento que  a impediam de abrir as pernas e entregar a coisa. E isto nada tinha a ver com algum cacoete religioso, gerando ignorância, morbidez e culpa. Nunca fora ardente, embora sua beleza chamasse atenção, o que, de certa forma, acabara permitindo a formação dum grande paradoxo. O noite sem homem para ela foi sempre tirado de letra. Sexo foi sempre um acessório. Questão dispensável. O que não significa que não tenha havido momentos de muita pressão, momentos de temperatura alta, quase sem chance para que houvesse antitérmico eficaz. Mas nada que um empurrão, um pontapé no saco, um tabefe, um dedo no olho não resolvessem o ataque, pondo o querido em seu devido lugar, pois sua razão sempre a chamava aos costumes.

Ser virgem adquiriu, com o tempo, certas proporções comerciais, que talvez lhe garantissem um lugar ao sol. E, no fundo, pelo que acabou observando, mesmo que muitos homens dissessem o contrário, a pelanca continuava contando muito, aumentando sempre a cotação de uma mulher no mercado da vida. E ela sabia o que faria quando encontrasse o sujeito que prometesse ser the right thing to do. Sentia-se predisposta a colocá-lo à prova. Iria massacrá-lo delicadamente, até que subisse pelas paredes, pedindo misericórdia. Mas sempre deixando bem claro seu só depois de casada.

6

Mas a perturbação da virgindade não passava de detalhe, desde que comparada com um suposto complexo de inferioridade que sempre a atormentara, desde criança, desbotando-lhe a vida, roubando-lhe momentos que poderiam ter sido gozados naturalmente, não fosse sua ininterrupta mania de sentir-se sempre rejeitada porque nascera pobre. E tal vergonha se estendia a pais, tios, primos, à família inteira, como se andar pelas ruas em sua companhia constituísse uma grande gafe, na iminência de transformar-se num crime.

Após ter adquirido algum discernimento sobre si mesma, passou a ver com muito horror aquelas festas de aniversário, Natal e Ano Novo. Sua combustão, além do mau gosto, destilava uma alegria compulsória, sempre deixando escapar uma chuva incessante de alfinetadas recíprocas, provando que a palavra final não pertencia ao amor, mas à hipocrisia. E aquela gente com suas roupas baratas batendo seus instantâneos desfocados, intoxicando os ambientes apertados com seus perfumes florais ordinários e sua conversa sem assunto. Definitivamente, Luísa sabia que não nascera para empanturrar-se com brigadeiros enjoativos e gordurosos. Sabia-se uma grande traidora. Mas aquilo estava além das suas forças.

Era por isso e por muito mais que rejeitava sua afilhada, permitindo que a criança acabasse crescendo como uma estranha às vésperas de transformar-se numa inimiga, não fazendo o mínimo esforço para remediar a situação, arrependendo-se amargamente porque aceitara fazer parte duma aliança que não tinha espaço em sua cartilha íntima.

E tudo havia começado quando uma das primas caíra na asneira de convidá-la para madrinha da primeira filha. Luísa, com certa reserva, concordou. Mas sem ter percebido que ela estava em mutação e que a prima seria a vida inteira o que sempre fora. Nunca arejando os valores. Reproduzindo, sem perceber, o papel de quem viera antes dela. Esforçando-se para reforçar e proteger o que talvez se conformasse à estabilidade dum calo que acaba sendo mais forte do que a vontade de se livrar dele.

Mas Luísa não imaginava o que lhe aguardava. Célia tornou-se absurdamente exigente, com o passar do tempo. Passou a cobrar-lhe presença em qualquer situação que envolvesse a criança. Diante de tamanha insistência ela começou a desenvolver um sincero horror pela menina e pela mãe. Para que a coisa se estendesse para o resto da família não houve grandes obstáculos. Em pouco anos, eles haviam se tornado estranhos.

E a turba consangüínea acabara se pondo contra ela. Acusou-a de madrinha desnaturada. Não admitia que ela nem sempre estava predisposta a comparecer a seus almoços dominicais indigestos. Suas intimações tornaram-se abusivas, invadindo sua privacidade e torrando sua paciência.

Além de tudo isso, Luísa considerava de péssimo gosto ser chamada de dinda. Sentia-se tão mal diante da palavra, quanto sentia-se quando seu Luísa era reduzido a um Lu, forma que todos seus familiares insistiam em reproduzir, pisoteando em sua sensibilidade. Sempre odiara apelidos e nomes pervertidos pela redução preguiçosa, sempre e sempre advinda dum gosto duvidoso.

Célia era esforçada e trabalhadora, usando um cabelo mechado e um corte que a acompanhava desde o final da adolescência, quando conhecera e se apaixonara por João. Intrinsecamente míope para o mundo, só tendo sentidos para sua família, o que significava o território que sempre a cercara, debochava de quem lesse, não conseguindo acreditar como alguém pudesse perder tempo lendo, passando a olhar para Luísa como uma candidata à solteirona, quando percebeu as tendências intelectuais da prima.

Casara cedo, convencida de que encontraria o paraíso. Mas acabou deparando-se com o que sua mãe e sua avó já tinham encontrado. Embora elas não tenham - pelos mais variados motivos, provavelmente tendo a ignorância como fator predominante - se dado ao trabalho de segredar-lhe os prós e os contras dum casamento, deixando que se espatifasse junto com suas ilusões de amor eterno.

Em pouco tempo, João, o marido de Célia, já estava pulando a cerca, traindo-a com o que desse sopa. Tola, acreditou piamente que as filhas consertariam seu casamento. Mas nem Larissa, nem Priscilla, surtiram algum efeito. Ela, como loba ensandecida, agarrou-se às filhas, concebendo-as como tesouros. Cerceada pela precariedade de seus juízos, supervalorizou seus objetos de adoração, exigindo que todos se prostrassem diante de seus rebentos. Luísa não embarcou na onda de escravidão familiar, provocando indignação e anátema.

Mas o que realmente a fez riscar sua família do caderno foi um episódio que a chocou sobremaneira, envolvendo um dos aniversários de sua afilhada. Encontrando-se com a prima pela rua, ela, de forma agressiva, cobrou-lhe o fato de não ter telefonado no aniversário da pequena Larissa, pois estavam na praia, na ocasião. Luísa retrucou suavemente que ninguém havia se lembrado dela em seu aniversário, grudado no da garotinha. A prima descaradamente devolveu-lhe que ela não precisava de telefonemas, nem de telegramas, no dia de seu aniversário, mas que uma criança sempre devia ser lembrada. Foi a gota d’água que vinha esperando já fazia muito tempo. Silenciosamente, Luísa colocou sua família em seu devido lugar. Passou a desprezar a todos definitivamente, caindo em desgraça para sempre em seu incomunicável romance familiar.

E tudo talvez sempre estivesse encubado, esperando o momento azado para que viesse a furo. Aos quatorze anos, quando Luísa descobriu o cravo, deixou escapar para uma das tias, justamente a mãe de Célia, que adoraria aprender o instrumento, ao que a mulher respondeu cravo o nariz na merda. O que talvez não fosse muito estimulante para quem estava na descoberta de coisas que estavam lhe comunicando que seu mundo era pequeno, exigindo expansão.

7

Enfim, Luísa estava convicta de que havia nascido num ambiente contrário a seus valores, a seus gostos, a quase tudo o que fazia parte da sua essência, sendo obrigada, por razões misteriosas, a enfrentar situações que só obliteravam sua vontade, imprimindo um sofrimento inenarrável em seu espírito.

Tinha certeza de que nunca fora uma pária. Mas as circunstâncias concorriam para deixá-la aturdida, atoleimada, confusa, desarticulada, como se houvesse uma nuvem de debilidade mental a postos encarregada de só lhe atirar nas escolhas mais absurdas, infernizando seu cotidiano, tirando-lhe a esperança dum futuro que a fizesse esquecer que havia nascido sem muita chance para transcender seu espaço irrespirável, vivendo num mundo onde realmente se sentisse alguém.

E Luísa não chegava a se sentir melhor do que quem quer que fosse. Só achava que estava deslocada, que cada um deveria estar em seu próprio galho e que ela fora jogada no galho errado. Sua família, aquela gente da livraria e outras pessoas que encontrara pelo caminho não tinham culpa de coisa alguma. Era ela quem fora posta a léguas de distância de sua turma. Eles mereciam consideração e respeito, mas que se mantivessem longe do alcance de seu olhar. Eram todos filhos de Deus, só não falavam a mesma língua.

Com o tempo, ela acabou até desenvolvendo algo próximo duma teoria sobre o que tanto supliciava sua vida, crendo que o problema talvez residisse no fato das diferenças estarem excessivamente próximas e misturadas, de tal forma confundidas, que só poderia haver conflitos sem trégua. Estes conflitos confundiam-se com uma guerra diária. Ela, sem chance para armistício, promovia uma raiva que redundava em ódio e em muito sofrimento. Ambas as partes pareciam condenadas a uma incomunicabilidade natural. A Terra era um inferno fervilhante. Deus, se existisse, era muito cruel em sua maneira de conduzir o mundo.

8

Em muitas ocasiões, Luísa enfraquecia e sentia-se um perfeito fracasso. Em seu desespero mental, chegava ao descalabro de comparar-se com primos e irmãos. Mesmo que continuassem num seguimento do que sempre fora suas vidas de infância e adolescência, haviam feito alguma coisa, encontrando alguma estabilidade, conquistando respeito no meio em que viviam.

Não conseguira ir além do quinto semestre duma faculdade de letras. Numa aula sobre Sintaxe Gerativa, com a certeza de que depois do intervalo teria de enfrentar outra de Psicologia da Educação, ajustou Pet Shop Boys nos tímpanos, ergueu-se da cadeira dura, numa atitude displicente, e saiu sem olhar para trás. Fora seu único contato com os bancos universitários. Depois disso, nunca mais manifestou desejo de voltar, fosse para aquele curso, fosse para qualquer outro. Sentia que tudo aquilo era desnecessariamente masturbatório.

Após certos atritos familiares, decorrentes de sua desistência, principalmente, porque conseguira ingresso numa universidade gratuita, e, de certa forma, eles não deixavam de ter razão, aceitou trabalhar, como caixa, na farmácia dum desconhecido, no Catete. Mas não tirava o walkman da cabeça. Errava no troco. Dava muito prejuízo. Matemática nunca fora seu forte. Antes que lhe dessem o bilhete azul, resolveu enfrentar um shopping.

Eles tinham ar condicionado. Talvez, num deles, estivesse mais próxima de si mesma. Seu inglês impecável, porque para isto ela encontrou tempo e diligência para que houvesse desenvolvimento e futuro, e seu conhecimento sobre literatura inglesa e norte-americana, além de ser uma razoável livre atiradora em arte e cinema, não serviram para coisa alguma, sendo observados como tralhas predispostas ao acúmulo desnecessário de muita poeira. O que realmente pesou na balança, para que fosse trabalhar numa livraria fino trato, foi sua beleza e seu porte. Desde que a viu, o nordestino gerente teve certeza de que aquela valeria a pena, pois nunca, em toda sua vida, tivera em suas mãos um material de tanta qualidade.

Entregue ao trabalho, Luísa descobriu-se cheia de desenvoltura e charme, capaz de seduzir, e, sem nenhuma afetação ou falsa modéstia, viu-se apta para enfrentar um bom número de discussões, podendo ser solta em qualquer espécie de sala de visitas. Algo lhe dizia que causaria as melhores impressões em seus inquisidores, fossem de São João do Meriti ou da Vieira Souto. A vida parecia ter-lhe ensinado o uso de certa maleabilidade no comportamento, deixando-a esperta o suficiente a ponto de saber tratar sempre todas as pessoas com muita cordialidade e simpatia, independente delas serem célebres ou anônimas, pobres ou ricas. Embora, o que mais a fazia conquistar respeito e admiração fosse o fato de levar muito a sério o velho ditado que sempre recomendou que um burro calado geralmente passaria por sábio. Se havia problemas de convivência em sua vida, eles ficavam restritos ao âmbito familiar.

E Luísa não viu nenhum problema em blefar com o dono duma academia do Leblon. Aquilo lhe garantiu boa forma, sem gastar nenhum centavo, por muito tempo. Apesar do gajo nunca ter perdido a esperança de conseguir tirar dela o que pensou ser fácil, desde que pusera seus olhos no corpo que o fizera quase perder o fôlego. Mas quando ela se viu na iminência dum estupro, pois a gentileza foi perdendo o verniz com o passar dos encontros, tirou o time de campo. Não sem antes ter deixado o sujeito na iminência da esterilidade.

9

Foi jogando conversa fora sobre moda que Luísa percebeu que os gostos e tiques culturais de Lili não eram lá muito diferentes dos seus, apesar dela ter visto in loco o que ela só conhecia por livros e filmes.

Como gralhas enciclopédicas, nessa tarde específica, elas esqueceram da vida, saltando da moda para modelos, e tratando de afunilar o assunto em Marisa Berenson. Entretanto, lá pelas tantas a Marisa Berenson foi crescendo e deixou de ser modelo, transformando-se em atriz. Para que falassem sobre Morte em Veneza e Cabaret foi num záz-tráz. Mesmo assim, só encontraram alguma possibilidade de sossego quando a Marisa Berenson surgiu em Barry Lyndon. Barry Lyndon jogou-as nos braços de Thomas Gainsborough e Joshua Reynolds. Ambas concordavam que era como se a Marisa, durante o filme, ficasse o tempo inteiro saindo dum pintor para entrar no outro.

Enfim, naturalmente, de moda à pintura do século XVIII inglês, passando por filmes já esquecidos, elas conseguiam aproximação sincera, fazendo de suas discussões uma forma agradável de reconhecimento recíproco.

Era esse tipo de situação que sempre faltara em sua família, pois quando Luísa apontava alguma coisa na televisão ou tecia algum comentário que fugisse da alçada de seus assuntos limitados era sempre alvejada por olhos raivosos que a fulminavam no ato, marginalizando-a como se estivesse louca. Aliás, um dos principais recursos de seus primos, quando não entendiam o que ela estava falando, era chamá-la de louca.

Sutil e delicada, Luísa tratou de tirar proveito das supostas identificações.  

Voltando para casa, entalada num ônibus malcheiroso, pois no início da amizade Lili ainda não havia posto o chofer a sua disposição, Luísa pensou a própria vida com meticulosidade. Aturdida pelo desemprego, com seu fundo de garantia se esvaindo como areia numa ampulheta e excitada pela conversa que travara, uma vez que funcionara como droga, sentia-se com os nervos à flor da pele, predisposta a encontrar soluções para seu calvário.

Pensou principalmente em seu excesso de perdas e danos. Ruminou as compras que nunca havia feito em toda sua vida. Martirizou-se com o fato de nunca ter usado um talher de peixe, eventualidade que fazia com que se sentisse muito envergonhada. Refletiu que não era fácil tropeçar numa Lili Mello Guimarães Cerdeira a todo momento, caindo em suas boas graças. Era como achar uma agulha num palheiro. E, por aqueles dias, quando ainda inexistia a Renascença da Barra da Tijuca, ela ainda era uma instituição na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Qualquer coisa seria muito melhor do que oito horas num lugar onde o bom e o melhor iam sempre parar nas mãos de estranhos. Enfim, ela desabou, sem sentir sintomas prévios, num pranto convulsivo, alheia aos olhos curiosos que devassavam sua dor. Mal chegou em casa e telefonou para Lili, explicando, como podia, as notas e os tons da própria tragédia pessoal. Ela lhe disse que pegasse um táxi e voasse de volta. Que não se preocupasse. Ela pagaria a despesa. Luísa sempre tinha medo das despesas. Cansara de ser obrigada a devolver coisas no caixa do supermercado porque não tinha fundos suficientes para levar o que sua falta de cálculo crônica julgara como devidamente coberto.

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E Lili não deixou por menos, contagiando-se com o pranto da garota. Se uma berrava, como um terneiro desmamado, porque não tinha berço, só vira talher de peixe em filme do James Ivory, Lili aproveitou a deixa para descer do pedestal, liquidando a maquilagem, transformando seus olhos num Édipo Rei após a mutilação.

Mas não chorou por causa da filha ou por causa do marido calcinados em Orly, no início dos anos setenta. Chorava copiosamente porque estava apaixonadíssima por Dudu, e ele, trocado por merda, sairia sempre muito caro.

E foi ai que Luísa começou a entender as razões de seu interesse por ela, compreendendo que os jogos associativos dos homens eram sempre misteriosos e sinistros, muitas vezes perversos, transbordantes de traumas e idiossincrasias.

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Enfim, mesmo que Lili não soubesse, aquela tarde específica prometia um dreno no abscesso. Ela ganhara a rua escaldante convicta de que enfrentaria sua rotina de tédio. Nada esperava, exceto mais um desfalque em seus cartões de crédito. Seu ponto final talvez fosse o sabor da sua indiferença corrosiva sobre as coisas do mundo, mesmo que não soubesse para onde ir, caso resolvesse pular fora dele. Mas o tiro saíra pela culatra. Aquele à queima roupa insurgiu-se como um choque inesperado. Ele constrangeu a memória a escancarar sua caixa escura de perdas e danos, redundando em ressentimentos e muita expectativa. Na garota suburbana ela reencontrava a filha queimada a cinco quilômetros de Orly. Os jogos associativos são sempre anfibológicos.

E um cantor da Bossa Nova, com nome de filósofo medieval... Um iatista, quem sabe de descendência nórdica, como tem prezado a tradição carioca... Um famoso e lúgubre chefe de polícia dos tempos do Estado Novo, que as más línguas diziam ter as mãos sujas de sangue... Uma grande amiga de Lili, também grã-fina e atriz de meio expediente, daquelas de família com pompa e circunstância que se expunham aos riscos do Cinema Novo, servindo de cobaia para o Glauber ou para o Nélson Pereira dos Santos, tudo na base do amor pela arte, muito câmera na mão e idéias na cabeça, num Goddard sob transplante... E a tal amiga foi tão bem comentada naquele momento confessional que Luísa chegou a se sentir muito íntima da defunta, não conseguindo, inclusive, conter uma pitada de inveja... Enfim, pelo que lhe entrava pelos ouvidos, além da filha e do marido de Lili, muita gente boa, que nunca vira nem mais gorda, sequer supunha a existência, fora reduzida ao reconhecimento duma arcada dentária, naquele 11 de julho de 1973. Os ricos também choram!

Apesar do pouco importa, muito cristão garantia que eles já estavam mortos, intoxicados pela fumaça, que talvez tivesse começado a vir duma das toaletes, quando o 707 explodiu em seu pouso forçado sobre uma plantação de cebolas (muitos insistiam que era de batatas). Apesar do tanto faz, havia também o grupo que negava de forma peremptória o cigarro descuidado na toalete, pendurando-se na paranóia duma sabotagem. Mas era um momento histórico chapinhando na desconfiança mútua, onde tudo parecia sempre não ser aquilo que se esforçava em representar, pois cada gesto em exposição estava sempre ocultando um conteúdo deliberadamente não manifesto. Quem muito se beneficiou nessa época foi a Metáfora.

Mas quem também soube sapecar um foda-se life goes on exemplar no Titanic de ocasião foi Margarida, a camareira de Lili. Pondo o pouco importa e o tanto faz a serviço da própria camiseta, ela trocou a parati definitivamente pelo chá com torradas. Para ela, um charuto seria sempre um charuto, pois um pênis é um pênis e uma rosa é uma rosa, e, falando francamente, entre os militares e o MR-8, ela ficaria sempre com Roberto Carlos. Se o túmulo de Cármen Miranda já lhe havia permitido uma viagem ao Ceará e um Ricardo Guimarães de segunda mão para o casamento duma prima em Cascadura, conseguindo até feder a Chanel nº 5 de contrabando, o 820 do vôo, latejante como uma dentina nua entregue a um sorvete, poderia da mesma forma também explodir como uma promessa de felicidade. E foi assim que ela sumiu do mapa, porque o 820 não se tratava de miragem, mas duma certeza lotérica, conforme lhe garantira uma Maria Padilha da sua confiança, não se fazendo de rogada e exigindo-lhe uma francesa doce, mais duas dúzias de rosas vermelhas sem espinho, pois Margarida até conquistou um primeiro lugar, na categoria luxo, no concurso do Municipal, com Crepúsculo dos Deuses, qualquer coisa próxima duma meia tonelada além da extravagância, evocando Gloria Swanson, como Norma Desmond, criada por Clóvis Bornay. Astuta, e agora sabendo quem era Gloria Swanson, mas não querendo muito assunto com cinema ou decadência, Margarida logo guardou num armário sua peregrinação pelo efêmero, pois nunca pusera em dúvida que tudo evaporava depois duma Terça-Feira Gorda, e tratou de investir o grosso do dinheiro num motelzinho na Zona Norte – a experiência, mais os conselhos da Padilha, sinalizavam que desarranjar camas seria sempre mais lucrativo do que arrumá-las.

E Luísa foi percebendo que passar as horas com Lili, deixando-a livre para que falasse o que bem entendesse, sem nenhuma interferência, era sempre uma fonte inesgotável para inúmeros horizontes. Seu forte era, sem nenhum constrangimento, introduzir acessórios associativos que tomavam o lugar do principal, saindo dos trilhos pluriqueixosos das tragédias íntimas para decompô-las em fragmentos que descambavam para coisas interessantes sempre sob a responsabilidade de mãos também interessantes. Lili poderia ser inimiga de si mesma, sempre na iminência da troca dum buraco depressivo por outro, mas do seu lado qualquer um estaria sempre protegido contra o tédio. Eis a missão duma femme du monde.

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Dudu surgira, sem que Lili soubesse de onde, pelas areias de Búzios, metido numa sunga sumária. Sugeria um nascimento insólito, mas sem o glamour duma Afrodite, descambando para o tenebroso e o sinistro. Era como se tivesse sido encontrado, finando-se, numa lata de lixo ou tivesse sido evacuado às pressas numa pia suja de gafieira, numa noite efervescente de sábado consagrado ao vício, à perdição.

Tinha idade suficiente para ser filho de Lili. Com o tempo, Luísa teve certeza de que poderia até ser seu neto. Não passava dum gigolô de praia.

Mas ela não poderia viver sem ele. E Dudu a levaria à ruína, Luísa foi logo percebendo, caso não fosse encontrado um jeito de neutralizar aquele poder pavoroso que exercia sobre sua vontade e sobre seu amor próprio.

Ele desaparecera já fazia uns três meses, depois que ela lhe dera um Audi, embora ele estivesse aflito por uma Ferrari.

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Diante de tanto desespero, Luísa acabou sugerindo que ela viajasse. Afinal de contas, podia ir para onde bem entendesse. Ela, depois de certa resistência choramingas, que dava vontade de esbofeteá-la, aceitou o conselho, porque Lili, tão hierática e sensata em seus dias e noites, perdia o controle das próprias emoções na presença do garoto, transtornando-se numa mulher ridícula, beirando à vulgaridade. Mas carregou Luísa junto em seu comboio. Sem que a consultasse, havia lhe dado um emprego. Da noite para o dia, Luísa emergia como sua secretária particular.

O trabalho não dava trabalho. Tudo poderia ser resumido na tarefa de proteger Lili dela própria.

Encapada por toda sorte de facilidades, Luísa deixou-se sofisticar, dando uma figa para sua família, apesar de, na época, ainda ser menor de idade. Entretanto, seu pai, vendo o dinheiro de Lili em seu corpo, enfiou preconceito e má vontade entre as pernas e a deixou em paz. Triste e resignado, convenceu-se de que a garota estava perdida.

Luísa sabia que a ocasião sempre fazia o ladrão. Era só chegar no seu preço. Não tinha muita certeza, mas concluiu que só acabou se tornando o que sempre havia sido, mesmo que nunca tenha se dado muito ao trabalho de gastar fósforo com a questão. O que importava era que, em vinte e cinco dias londrinos e mais trinta e quatro parisienses, de piano carregado e camiseta empapada pela causa Lili Mello Guimarães Cerdeira, havia se transformado numa necessidade. 

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Em trânsito, visitou uma infinidade de lugares, gostando mais dos históricos dos que dos mundanos, principalmente, porque a presença dos amigos insuportáveis de Lili tornavam as coisas mais difíceis para ela. Uma noite que poderia terminar por um início de madrugada transformava-se muitas vezes numa orgia de álcool e cocaína, na iminência de drogas mais pesadas, cabendo a uma Luísa meio assustada o encargo de pôr sua patroa na cama, não sem antes tê-la feito mergulhar, sempre contrariada, numa ducha que conseguisse lavar corpo e alma.

Entretanto, ela jamais perdeu a linha, sendo indelicada com quem quer que fosse, recebendo o tratamento que lhe era dispensado como um animalzinho de estimação devidamente bem treinado. Mas seus reflexos psíquicos estavam sempre em alerta, pondo em seu devido lugar qualquer um que se atrevesse a pisoteá-la. Seu radar estava sempre mais atento às investidas de certos homens que, pelo fato de sabê-la uma pobretona que não tinha onde cair morta, resolviam aproveitar-se da situação delicada, convictos de que ela era fácil e que não ofereceria nenhuma resistência em troca de alguma miçanga. Seu respeito foi definitivamente conquistado no grupo quando varejou por uma janela um Cartier que um de seus predadores usou como isca para levá-la para cama.

No final da viagem, o tipo de vida que Lili estava levando começara a cansar sua beleza. Mesmo assim, fechou os olhos e cumpriu seu dever. É bem provável que se não fosse por Lili, jamais tivesse percebido que os ricos gozam do que quer que seja, sem nenhum esforço, com certa precedência em relação aos outros. Isto os fazia entrar em colapso. Ao invés de amadurecer, apodreciam. Carcomidos pela indolência, acabavam trafegando por uma vida que aos poucos ia perdendo totalmente seu sentido. Luísa tinha certeza de que eles mereciam a forca.

Mas também, obviamente, aprendera muito no sentido cultural. Isto nunca poderia ser negado: Lili foi sempre muito útil, serviçal, jamais negando seu auxílio. Enfim, aquela viagem inesperada, que, inclusive, permitiu-lhe observar que os homens ingleses eram possuídos por uma estranha beleza, não encontrada em homem algum da Europa, embora, com toda justiça, em certos casos críticos, fossem como se a natureza tivesse dormido no ponto ou rogado uma praga, enfim, aquilo tudo foi como um complemento duma educação que parecia fadada a olhares sempre ansiosos e inconformados sobre revistas e livros, geralmente, emprestados.

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Apesar das compras, da renovação de ares e das pequenas ilhas de aventura, onde Lili agiu como se estivesse sob ação duma zarabatana autodestrutiva, não houve o que segurasse sua depressão. Tão logo sobrevoaram a Baía da Guanabara, ela começou a demonstrar sinais duma indiferença apática, saltando da euforia dos dias anteriores para a ante-sala dum quase coma.

Luísa já tinha pressentido uma futura perturbação, embora não soubesse como ela iria dar suas caras, principalmente, quando, uma semana antes da partida, surpreendeu Lili, que havia cheirado muito, dançando uma espécie ruidosa e gutural de cancã, sem calcinha, sobre a mesa duma boate, fechando a noite com uma boa mijada num balde de gelo, sempre sobre a mesma mesa.

Mas ela ficou em seu canto, como sempre. Carregou a moça para onde fosse preciso. Jogou-a sob mais uma ducha gelada quando se fez necessário. Mas sempre esperando pela irrupção que a deixaria na lona. Era como o que muitos chamam de força maior – algo previsível, mas quase impossível de conter, pois só cessaria quando sua energia de devastação se esgotasse.

E as ondulações melancólicas tornaram-se perceptíveis a longa distância, mal chegaram em casa.

Lili deixou-se trancafiar numa transparência autodestrutiva. Desesperada e desiludida, Lili não fez mais a mínima questão de camuflagem. Passou a dizer, a quem quisesse ouvir, que realmente tinha sessenta e dois anos. Negligenciou a avalanche de massagistas, professores de ginástica e o cirurgião plástico que sempre estiveram em sua folha de pagamento - como um bom mafioso nova yorquino, garantindo o bom andamento dos próprios negócios.

Muito longe da Lili das revistas e da livraria, passou a berrar coisas obscenas, incluindo que estava tudo acabado, que nada mais tinha sentido na sua vida. Em pouco tempo, estava conformada a spleen, banzo e blues, reduzindo seu rosto a olheiras macabras.

Só encontrava tempo e disposição para cigarros medonhos de haxixe, que faziam com que muitos da casa vissem estrelinhas prateadas e enjoassem seus estômagos, e dry martinis, que deixavam sua voz pastosa, na iminência do arame farpado, podendo ser considerada como voz de velha ou voz de bruxa em franco desenvolvimento. Além de ouvir, o tempo todo, uma música turca enervante, que parecia não ter fim nem começo.

Passou a rejeitar qualquer espécie de alimento. Varejava raivosamente as bandejas que iam chegando contra as paredes de seu quarto, enquanto todos agradeciam a Deus porque tecidos e pintura eram laváveis. A única coisa que concordava em mastigar eram pétalas de flores cristalizadas.

A cada dia consumido, a sexagenária aflorava pela pele. A indefinição etária misteriosa estava derretendo. Sem nenhum esforço, a esfinge perdia sua atração, esgotava seu encanto, transformava-se em insignificante estatueta.

16

Em certo meio de tarde escaldante, Luísa apanhou Lili na iminência dum vidro inteiro de soníferos. Apavorada com o que já era para ter esboçado a primeira tentativa, pois, até então, ela não se movera na direção dum suicídio direto, Luísa resolveu sacudir a patroa. Jogando fora seus escrúpulos, lançou mão dum plano que envolvia qualquer coisa próxima duma terapia pouco ortodoxa. Mas não sem antes ter consultado o psicanalista de Lili, um homem tão desnorteado quanto as duas juntas, que, por casualidade, havia pensado em coisa parecida. Entretanto, sem a ousadia e o risco que a proposta de trabalho de Luísa comportava. Numa coisa todos estavam de acordo, Lili não seria internada, nem submetida a choques elétricos ou de insulina. Só seria  colocada em contado com a realidade.

Eles começaram pelo sexo intensivo.

Desde que se sentira mais do que fortalecida em sua posição conquistada na casa, Luísa acabou com a quantidade de gente dormindo por lá, o que muitas vezes significava invasão de privacidade. Além de ter reduzido o staff de parasitas. Havia um enxame desnorteado de copeiras em azul marinho que, como moscas tontas ociosas, mais atrapalhavam do que prestavam algum auxílio. Quando se precisava realmente de alguma, quase sempre, a querida ou estava na frente duma televisão, mastigando biscoitos, ou surda, viajando pelo walkman

Entretanto, como se seu inconsciente tivesse previsto o futuro, agora o terreno se achava limpo para que a operação se processasse sem nenhuma espécie de interferência. Enfim, tão logo a criadagem desaparecia do mapa ela chamava o psicanalista e ambos contratavam corpos exuberantes e saudáveis para orgias bem intencionadas. Elas estavam sempre sob a supervisão de seu controle de qualidade e do relógio. O comigo é na madeira de Lili nunca deveria ir além dumas três horas, apesar dela muitas vezes ter forçado a barra, fazendo com que as três horas ultrapassassem os primeiros raios de sol. Incluía sempre doses cavalares de cunilingus, felação, posições bizarras, dupla penetração e o que Lili estivesse interessada em enfrentar.

E, diga-se de passagem, ela agia com tal desenvoltura que talvez fizesse com que uma profissional chegasse a corar ou viesse lhe pedir alguns conselhos. Antes uma ninfomaníaca despertando do que uma letárgica depressiva à beira do túmulo.

Lili devorava cada corpo. Gritava que não haveria macho pobre naquela cidade, enquanto ela vivesse. Depois, desabava num sono profundo, absolutamente esgotada. Como uma Messalina pós-meio-exército, reduzia-se a uma posta esquálida e macilenta de carne gasta. Mas prosseguia de mal a pior no dia seguinte. O fantasma de Duduzinho continuava não lhe dando descanso.

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O segundo ato daquela conspiração de boa fé esteve circunscrito a um duelo entre espetos apressados, escorrendo gordura, e uma voz que mais parecia Daniel na cova dos leões, tendo por jurados e testemunhas estômagos que se dividiam entre a gula e a fome. Era o desafio de Marlene – tornar-se mais atrativa do que uma picanha suculenta.

Luísa e Carlos Alberto estavam convictos de que ela teria sua chance e aplauso naquela noite, pois talento era que não lhe faltava. Mas desde que tivesse paciência naquela fila de prioridades, uma vez que tudo prometia que ela seria apreciada na hora do palito.

Resumindo a safadeza: Lili foi arrastada até uma churrascaria, na via Dutra, para torcer pela estréia musical da sua cozinheira. E Marlene estava nervosa, trêmula, indo e vindo do toalete, mas determinada a não deixar que o samba tivesse uma síncope.

Mas tudo não passou dum outro aborto. O máximo que se conseguiu foi uma Lili vomitando na mesa, depois de ter sido melecada em seu pescoço e ombros por alguns pingos dum espeto descuidado.

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A partir dali, a temperatura subiu e o nível veio abaixo.

Lili enveredou por uma peregrinação pelo indigesto.

A tiracolo, como se fosse um zumbi, ela foi empurrada para um espetáculo de cancerosos e aidéticos terminais, prostitutas infantis nordestinas, favelados com verminose, pagodes, forrós, filas da previdência social, rodoviárias, a Avenida Brasil ao meio-dia e toda sorte de possibilidades bizarras que estalassem pela imaginação da dupla, que, aos poucos, provavelmente, pela convivência, começou a se acertar muito bem, tendo, inclusive, oportunidade para presenciar de camarote um assalto dos bons, pelas areias do Leblon, quando duas ou três turistas, brancas como uma pobre barata descascada, foram descaradamente espancadas e assaltadas por um cardume de negrinhos que mal tinham quinze anos, deixando as gringas nuas em pêlo e sangrando.

Lili continuou não reagindo.

19

Como um gato, desaparecido durante uma temporada de cio, Dudu voltou. Estava quebrado.

Observando-o, Luísa conseguiu sacudir a poeira da sua arrogância despropositada e vulgar. De repente, sem querer, acabou transformando-o. E ele passou a oferecer certa atmosfera de século XVIII devasso, provavelmente, devido ao cabelo negro e longo, apanhado num rabo de cavalo insolente. E ela entendeu que o porte atlético e bronzeado, ou a musculatura delineada, que permitiam suspiros, maridos com guampas e molhava as calças das damas, talvez não passassem de meros complementos. Sua atração fatal residia nos olhos verdes silenciosos, que assumiam a cor da avelã, conforme a luz que os surpreendesse, mas absolutamente corrompidos por um instinto que ainda não fora domesticado.

E ele, com muito descaramento, passou por cima da aflição de Lili, tratando de devorar Luísa atrevidamente, como se ela estivesse totalmente nua, dispensando-lhe a curiosidade dum mercador de escravos diante de nova e promissora mercadoria.

20

Desde cedo, Luísa aprendera a discernir polidez de afeto, sabendo também filtrar a verdade do blá-blá-blá que sempre ocultava a curiosidade descartável duma trepada sem futuro. Estava imune àquela espécie de armadilha. Sabia o que aquele tipo de homem desejava duma mulher nas suas condições. Nunca fugiriam para os mares do sul, vivendo da pesca, de àgua de coco e muito amor, como uma Dorothy Lamour e seu galã de ocasião.

Entretanto, também sabia que a carne era sempre fraca apesar da eternidade da alma. Se não tomasse cuidado, talvez entrasse para o grupo de risco, deixando que ele arredasse a mobília para que pudessem dançar. O que seria um desastre.

Precisava ser absolutamente escorregadia e diplomática. Sempre soubera que nunca seria prudente cobiçar o que já tinha dono. Jamais cair na arapuca das aventuras que a fizessem derramar lágrimas de sangue.

Dudu era desprezível porque era dominado por um excesso de confiança em si próprio. Aquilo lhe dava nos nervos. Aquela energia avassaladora provinha da sua beleza e da sua juventude. Mas ela sabia, embora ele não, que tudo era temporário, não passando dum estado, caso contrário não seria tão boçal. Tirassem aquilo do infeliz e ele deixaria de respirar afoito. Seria reduzido a uma massa disforme e desiludida, afogando seu ressentimento no álcool ou no que o pusesse para dormir. Ela sempre odiara bichos sexuais. Sempre detestara aquela espécie de gente míope. Eles se recusavam a enxergar que o corpo tem hora marcada para existir. Envelhecer seria sempre uma arte. Exigiria sempre um acúmulo muito lento de panacéias que tornassem a flacidez e a bengala quase imperceptíveis. Envelhecer era uma arte que deveria ser cultivada desde tenra idade. Era um luxo de poucos!

21

Enfim, após muitos meses de convivência e reflexão, acabou concluindo que a pobre Lili deveria ser poupada daquele calvário. Nunca, em toda sua vida de Leme e rabanadas gordurosas no Natal, alguém se dera ao trabalho de verificar se ela tinha potencial para tirar o pé do barro. Sem Lili, jamais teria chegado onde sempre achou que deveria ter nascido.

Mas precisava de muita paciência. As coisas sólidas são sempre muito lentas na sua construção. Elas exigem a sabedoria do degrau por degrau. Duduzinho era arrogante e gostoso como o Johnny Stompanato da Lana Turner. Tinha um quê absurdo de Doca Street. Algo lhe dizia que num momento de vontade desobedecida seria capaz de bater e matar. Era como uma criança perversa e  mimada. Talvez lhe fizesse um grande bem, impedindo que envelhecesse. O mal se corta pela raiz. Mas, desta feita, ela excluíra Carlos Alberto de seus planos.

22

E, dentro do possível, as coisas entraram nos eixos, tanto que os vasos reapareceram exibindo muitas flores, em todos os cômodos.

 Dudu voltou a exibir seu ar cafajeste pela casa do Jardim Botânico. Conduzia sua protetora ao Sétimo Céu, conforme o alarme de seu desejo, depois, entregava-se ao nada, o que significava exercícios físicos e muito video game.

Aliás, não havia hora precisa para que o apetite de Lili despertasse. O miserável só descansava quando ela se sentisse satisfeita. Cada maratona durava sempre umas sete ou nove horas ininterruptas. E Lili era do tipo que mesmo vendo a exaustão do parceiro continuava a passar-lhe a mão pelo corpo, cobrindo-o de beijos asfixiantes, furungando na sua intimidade murcha e mole, como se fosse um brinquedo, muitas vezes confundindo-o com alguma maçaneta de porta, olhando-a sempre com certa admiração vampiresca, a ponto de torrar a paciência do garoto.

23

Foi numa das suas tréguas, no silêncio do início de mais uma noite, que Luísa viu a coisa muito preta.

Sem que Duduzinho percebesse, ela o contemplou dum dos mezaninos. Só de jeans e descalço, bebendo seu cowboy. E ele mascava chicletes e dava socos no invisível, como se estivesse absorvido por uma luta de box imaginária. Era impossível resistir. A ocasião faz o ladrão. A tentação abrasada permite a traição descarada.

E ela já estava saturada daquele olhar que a perseguia pela casa. Sentia-o convicto de que ela sempre estivera no papo. Era só uma questão de jeito, e ela saltaria na sua cama. Precisava agir o quanto antes, principalmente, depois que ele lhe dissera que bastava triplicar o sonífero de Lili e ele seria todo dela.

Ela preferia vê-lo como uma fruta estranha, pendurado numa forca, cercado por magnólias, entregue à fome dos corvos e à curiosidade mórbida dos transeuntes.

Manter-se longe daquela criatura era o que garantia, por aqueles dias, sua vida naquela casa. Nervosa, deixou o mezanino e foi na direção do quarto de Lili.

24

Luísa abriu abruptamente as cortinas e encontrou uma Lili nua, esparramada pelo dossel imenso, mas já com alguma corzinha sugerindo saúde pelos zigomas. Satisfeita, como Duduzinho a vinha deixando nos últimos dias, não ficou irritada com a invasão.

A garota foi direto ao assunto. Expôs a possibilidade de três vias que salvassem a amiga. Acabaria de vez com a incerteza que ameaçava a paz daquela casa.

Meio estonteada, ainda sob os efeitos da visão do passarinho verde, Lili ouviu o desespero da outra entre o interesse e o bocejo.

Rejeitou a primeira hipótese. Teimosa como um burro de padeiro, não estava interessada em riscar Duduzinho do mapa, mesmo que soubesse da sua nocividade e que vinha fazendo papel ridículo há muito tempo.

A alternativa que encerrava a partida de Luísa chegou a tirá-la do sério, e Lili esbravejou que não admitia chantagem emocional.

A terceira saída lhe deu arrepios. Ficou horrorizada com a imaginação da pupila. Entretanto, mesmo que tenha recorrido ao sinal da cruz muitas vezes, acendendo um cigarro e olhando para as pernas, aquilo, de repente, começou a lhe soar como alguma coisa plausível. Assumia-se como uma escapatória que fazia com que ninguém saísse perdendo. Muito pelo contrário. E Duduzinho e Luísa continuariam sob sua guarda. Além do fato do garoto manter-se protegido dele próprio.

Luísa lhe garantiu que estava tudo por um triz, mas Dudu não desapareceria enquanto ela o impedisse de tocá-la. Precisavam agir logo. Lili acabou concordando.

25

O neurologista ficou apavorado. Jamais ouvira coisa tão medonha e nauseabunda. Aquilo não passava dum capricho levado às raias da insanidade. Aquilo era desumano. Era criminoso. Feria sua ética. Aquilo...

Mas ele acabou esquecendo o juramento de Hipócrates, virando as costas para o Código Penal, assim que Lili refrescou sua memória, alegando que ele não teria sido coisa alguma, não fosse o empurrão de seu falecido avô. E que não esquecesse que o hospital era dela, além de muitos outros. Mais de sessenta por cento das ações estavam em seu nome.

Para que não houvesse dúvidas, Lili escorregou um envelope na direção das mãos suadas do neurologista. Sem qualquer embaraço, o homenzinho nervoso, que muito se parecia com um frango pelado, atracou-se no papel pardo.

Não conseguiu disfarçar sua frustração, quando descobriu que não poderia comprar o importado japonês que vinha lhe tirando o sono, fazia certo tempo. Ao invés de dólares, foi surpreendido por um calhamaço burocrático, cheio de carimbos e assinaturas que impunham respeito hieroglífico. Aquilo garantia uma bolsa de estudos em Paris para sua filha mais moça, recém formada em artes plásticas. E Lili, em conversa no clube, pescara seu desejo por aquele tipo de coisa. Além do fato de ser uma tradição familiar prestar auxílio aos novos talentos empobrecidos. Coisa que sua família vinha fazendo, desde os tempos heróicos da Semana de 22. Quem sai aos seus não degenera.

26

E ele foi para o hospital, como um asno empacado que se deixa arrastar por alguns pedaços de milho, convicto de que se submeteria a uma lipoaspiração. Embora nada houvesse de errado com suas costas, as duas infernizaram sua vaidade, incutindo nele a existência da formação de pneus que estava degenerando sua plástica perfeita. Assustado, acabou acreditando, embora passasse e repassasse suas mãos, não encontrando coisa alguma.

27

- Duduzinho, meu amor, suba já! – ordenou melifluamente Luísa, espichando-se da sacada que contornava o quarto de Lili, enquanto um coro aflito de Sabiás infernizava seus tímpanos.

- Você vai apanhar uma insolação! Chega de sol por hoje! – gritou uma Lili lá de dentro.

Dudu, oferecendo a atmosfera alvar e faceira dum cocker spaniel amestrado, perambulava pelo jardim. Colhia gardênias e jasmins. Com zelo ortodoxo, depositava as flores num cestinho de vime. Em segundos, entrava no quarto de Lili, carregando flores e olhos bovinos. A pureza artificial deixara-o ainda mais desejável, embora Lili não gostasse muito daquela cabeça raspada. Usá-lo, como se fosse uma escova de dentes, eqüivalia a sacrificar um cordeiro diariamente.

- Está na hora de você ser gentil com nossa Lili, meu amor! Seja sempre um bom menino! – disse Luísa, pegando o cesto de flores.

- Mas vai tomar um banho antes! – replicou uma Lili recostada num divã napoleônico, revestida em bandagens que lhe cobriam rosto e boa parte do corpo.

- Interessante! – falou Luísa, enquanto arranjava as flores pelos vasos que se dispersavam pela suíte. – Muito interessante! Não há sinal algum de cicatriz.

- Mas já está me dando nos nervos! – retrucou Lili, tateando seus cigarros pela mesinha de pau marfim que se depositava ao lado do divã.

28

Depois que o caso Dudu encontrou solução plausível, com certos ares de final feliz, com a certeza de que ninguém apareceria para reclamar o corpo, Luísa resolveu cuidar da própria vida.

Carlos Alberto tinha uma cara deslavada de Jesse Lasky, apesar de não ser judeu, e muito menos ter passado pela sua cabeça construir algum império cinematográfico. O certo era que a beleza jamais seria seu forte. Tinha uma cabeça de ovo que acomodava uma calvície a caminho, coisa que ele não fazia muita questão de ocultar, olhos verdes saltados, um nariz em forma de gota e uma boca minúscula e nada simpática, em forma de coração invertido. Embora estivesse livre dos pés chatos, das orelhas de abano, envergasse um bom queixo e seu hálito fosse quase perfumado, mesmo que fumasse uns seis havanas por dia.

Entretanto, era suave e culto, com belas pernas cabeludas, tendo dinheiro suficiente para que Luísa deixasse definitivamente de ter um passado.

Mesmo que Lili tenha protestado, descontando a mágoa e o ressentimento em Duduzinho, Luísa trocou de proprietário. Casou discretamente, conforme seu feitio, apesar de ter gozado algumas notas de jornal que mostraram ao mundo que ela não tinha nascido para morrer na praia, embora muitos pensassem que não servia para coisa alguma.

E as jóias da coroa foram entregues sem dor ou resistência. Era como se ela estivesse lubrificada desde longa data, esperando pela carne certa, que entrasse naturalmente, sem provocar traumas ou avarias, num encaixe macho e fêmea que só a natureza das coisas teria meios para decifrar o mistério.

O que tinha de feio, Carlos Alberto conseguia compensar com a habilidade de sua língua e seu poder indescritível de sucção, pois seu segredo de alcova estava na boca antipática, que assumiu proporções de beleza indescritível na intimidade duma Luísa perplexa.

Além dessas armas secretas, o moço portava um 38 cano longo de impor respeito, fazendo com que Luísa aprendesse a tomar gosto pela coisa, deixando-se conhecer por todos seus orifícios. 

 

 

 

 

Antônio Augusto Mariante Furtado.
Escritor brasileiro, formado em Direito e Letras, com Mestrado em Marques Rebelo

 

 

© Maria Estela Guedes
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