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“A ambição mais exacerbada não
dá o menor sinal de si
quando se encontra na impossibilidade absoluta
de
chegar onde deseja”
La
Rochefoucauld
1
Luísa
sabia muito bem que somente alguém como Greiceneide seria capaz de soar
o alarme, pois não era uma questão de Grace Kelly, mas de
Greiceneide, sempre atrevida e saliente, metida como a sujeira, uma
pipoca do Alagoas. E ela fazia justiça, sem nenhum esforço, ao nome que
carregaria até o túmulo, pensava Luísa, fazendo ginástica para entender
o fenômeno, embora tenha sido educada no freio e na surdina de que todos
eram iguais perante Deus. Greiceneide, irmã de Greicenilde e de Graciara,
filha de Valdomiro da Conceição e de Maria Imaculada da Conceição, ao
seu inteiro dispor. Enfim, três graças pardas saltitantes e sorridentes,
com sotaques e gaforinhas híbridas que colocariam os neo-nazistas
nervosos. Na iminência dum taco de baseball.
E assim,
soado o alarme, embora Luísa soubesse que muitas suassem o sino e
outras soassem muito no verão, as almas de comissão sobre vendas
ficaram indóceis, à beira da possessão, mesmo que muitas ignorassem o
que se tratava, deixando-se contaminar pela reação em cadeia,
acefalamente indo no embalo. Atordoadas com aquele prato de resistência
fumegante, jogaram-se sobre as nuvens do perfume da grã-fina que
entrara. Arriscavam-se. Mas, em seus corações suburbanos, havia a
esperança do ofende mas não magoa.
De certa
forma, elas não deixavam de ter lá suas razões. Estavam saturadas de
tanto teatro. Só lhes restava, naquela ocasião, passar por cima da
clientela que não fornicava nem abandonava o recinto. Um tipo de gente
que abusava das comodidades da livraria. Vinha. Entrava. Aboletava-se
pelas poltronas imensas e fofas. Lia como se a casa fosse sua. Chegava
ao descalabro de fazer anotações. Punha em risco a integridade dos
pobres livros. Desarrumava as prateleiras. E não comprava um mísero
volume de pensamentos elevados: estes sempre transbordando de pérolas de
resignação, boa vontade e esperança, exigindo sempre um sorriso,
concentração e fé por parte do infeliz que mergulha suas agruras em suas
páginas, que não se cansam, como um gravador, de prometer soluções que
resolvem as vidas somente no instante da leitura - pequenos comprimidos
que aliviam momentaneamente a febre, ignorando-a como possibilidade de
sintoma, sequer roçando na pele da infecção.
Enfim,
naquele final de tarde monótono, quando Luísa recorria ao pulso de
instante em instante e os ponteiros pareciam emperrados, dando-lhe a
certeza de que minutos e horas são eternos, mas que uma vida se esvai
num tapa, uma fiasquenta do coro dos vendedores arrancou aquela
grã-fina vaporosa de seu possível anonimato. Em pele e ossos, pois era
magra como um bom bacalhau de porta de venda, perambulando a esmo pela
livraria, como um cintilante beija-flor, de estante em estante, estava
Lili Mello Guimarães Cerdeira.
Embutida
em sua falsa humildade, mas agradecendo a Deus por não se chamar
Greiceneide, Luísa acompanhou o que, diante daqueles olhos famintos por
emoções baratas, poderia ser uma entrada triunfal. Munida de certa
inocência petulante, a grã-fina inundou a livraria de fascínio e
constrangimento.
Vista de
perto, sem medo de errar, ela se insurgia contra o gato que passa por
lebre. Envergava com muito empenho o que se poderia chamar de uma idade
indefinida. O tempo em seu corpo chafurdava na vagueza. Prometia a mais
cristalina ambigüidade. Todos seriam unânimes em concordar que já
ultrapassara os vinte e cinco. Também não haveria dúvidas de que, mesmo
contra a vontade, teria chegado nuns quarenta muito bem assentados pela
carcaça. Entretanto, ela era capaz de garantir a certeza dos trinta como
se estivesse grudada nos dezoito. Tudo indicava uma esfinge que não
queria ser decifrada. Era como se tivesse seguido os passos de Dorian
Gray. Algum tempo depois, Luísa viria a descobrir que a moça
começara a fazer plástica aos vinte - sacrifício que a deixara entregue
a um desgaste imperceptível, apesar de muitos se assustarem quando
descobriam suas mãos, inclusive, Luísa.
Resumindo a aparição da moça,
podia ser dito que Lili Mello Guimarães Cerdeira, diante do
constrangimento proletário, era dessas mulheres que você não acredita
que possam suar ou ir ao banheiro. Parecia predestinada a desfrutar todo
o crédito do mundo, inclusive, para proferir asneiras. Qualquer
calamidade que viesse de seus lábios lambuzados de gloss seria encarada
como coisa profunda e enigmática. Diante duma platéia perplexa, teria
direito a minutos de reflexão, estando condenada ao aplauso.
Horrorizada com aquela invasão de privacidade, quase cuspindo
marimbondos, convicta de que corria risco de vida, Lili esteve quase a
ponto de desistir e dar no pé. Mas, ao depositar seus olhos verdes sobre
Luísa, como se estivesse sob a pressão dum impulso associativo muito
íntimo e amargo, conteve o pavor e acabou mudando de idéia. Ficou,
entregando-se ao horizonte de seus cartões de crédito.
E Luísa, encolhida em sua
insignificância habitual, chegou a esquivar-se. Olhou para os lados,
para trás, sondando terreno, na dúvida. A mensagem poderia ter outro
alvo, e ela estaria se metendo em coisas que não lhe diziam respeito,
pagando mico e sentindo-se ainda mais miserável do que vinha se sentindo
por aqueles dias. Mas ela estava enganada. Aquele olhar verde lhe
pertencia. Um arrepio inesperado estremeceu-a por inteiro, fazendo com
que se lembrasse da lenda da balconista gaúcha, há muitos anos atrás,
que fora pescada por Coco Chanel, levada para Paris, transformada em
modelo, e depois, quando ela não servia mais para a coisa, acabara se
conformando à sorte de transformar-se na esposa dum banqueiro poderoso,
passando a desfilar pela vida como objeto de arte, nunca mais correndo o
risco de contar tostões para tomar seu bonde. Mas era tudo sonho.
2
Ondeando a mão esquerda,
muito pálida por sinal, com um único e pesado anel de ouro que tomava o
lugar da aliança, como se espantasse moscas impertinentes, Lili rechaçou
os abutres desiludidos, pondo-os em seu devido lugar, fazendo-os voltar
a sua pasmaceira fofocante. Livre, deu-se ao luxo de abrir algumas
frestas da sua simpatia na direção de Luísa. Como se estivesse apavorada
pelo fato da garota ter escolhido um bordel como local de trabalho, ela
perguntou quem ela era e o que estava fazendo ali, arrematando que ela
desperdiçava sua vida e sua beleza. Mas não ouviu o que ela tinha para
dizer. Limitou-se a perambular, sendo apanhada pela teia do consumo.
Satisfeita, mas quem sabe perturbada com o que Luísa provavelmente a
fazia remoer, ela flutuou da livraria, cheia de pacotes, sempre naquele
passo melífluo, displicente, de quem desconhece as exigências das
jornadas de trabalho.
Sem querer, Lili precipitou o
que muitos poderiam considerar como o declínio, na direção da queda,
duma Luísa entregue à própria sorte, num ambiente que sempre lhe fora
hostil, desde que pusera seus pés ali pela primeira vez. Apesar das
tragédias estarem sempre sob a dependência dum ponto de vista, não
devendo ser levadas muito a sério, principalmente, se conseguimos
entender que não se faz um omelete sem quebrar os ovos, que nada é
estático neste mundo, e, finalmente, como tiro de consolação, que Deus
escreve certo por linhas tortas. Elas modificam situações, isto é
inquestionável, embora provavelmente seus únicos efeitos sejam
impossibilitar os afetados de retornarem ao status quo ante,
deixando-lhes na vida um horizonte de hipóteses para que comecem a
construir coisas novas num outro sertão. Diante da impermanência
budista, diante de Darwin, a tragédia não passa de mito, de fairy
tale.
Entretanto, indignado com a
rejeição banco suíço, o coro salário-família, sem sombra de dúvidas,
encabeçado por Greiceneide, resolveu tramar sua queda, pois já fazia um
bom tempo que ingressara na rampa do declínio. Nunca gozara de bom
conceito pelos bastidores da livraria. Era como se estivessem esperando
um pretexto para lhe pôr na rua. Dentro de duas semanas, eles teriam o
motivo.
E não foi difícil. Bastou que
Greicineide recorresse aos ouvidos maliciosos dum gerente que sempre
estivera desgostoso porque Luísa sempre rejeitara suas investidas pouco
ortodoxas. Ela jamais mostrara interesse em receber seus favores no
pós-expediente. Coisa que Greiceneide não fazia, submetendo-se ao
matador, convicta de que exercia algum poder sobre ele e que seu emprego
estava garantido. Luísa tinha um nojo febril das lambisgóias famélicas,
que se afogavam em pouca água, que se deixavam abater pelo nordestino
bem falante, e ainda mais, na escuridão desconfortável e quase mofada
dum depósito. E era sempre depois dum dia afobado, nervoso, empapado de
suor, apesar do ar condicionado. O que significava pouca ou nenhuma
higiene. Com direito a boquete e aos finalmentes. Sempre numa
velocidade sórdida. Sempre sem tirar a roupa. Sempre de pé.
Sem nenhum pudor, no meio
daquele cardume de piranhas sôfregas, ela se dava ao luxo de sentir-se
moral e superior. Nunca dera a mínima para suas tentativas de fazê-la
trincar a pose. Desde que pusera seus pés naquele lugar, percebeu que
aquela gente de buchada de bode, caipirinha, cerveja estupidamente
gelada, pagode efervescente e música sertaneja não fazia parte da
sua turma. Metidos na vala comum de seu desprezo, os infelizes não
passavam de acidente, de elementos circunstanciais, insignificâncias
passageiras, apesar dela saber muito bem que uma cobra sempre teve poder
suficiente, mesmo que rastejante, para derrubar um homem com uma simples
mordida num calcanhar.
Naquela tarde, apesar de
muita cara feia e cochichos desabonatórios, o que lhe dizia respeito
realmente era a comissão abocanhada. Os livros do caniço fino trato
custavam umas três vezes seu salário de fome.
3
Após algumas semanas
entregues ao desconforto duma guerra fria rancorosa, onde Luísa
comeu o pão que o diabo amassou, sendo ofendida e humilhada, Lili
reapareceu, exibindo o peso sinistro dum Dolce & Gabbana que lhe
oferecia a atmosfera duma viúva siciliana. E ela mais uma vez apagou a
súcia desesperada, embora já tivesse deixado claro que ela não teria voz
em seus critérios de escolha, entrando com se apenas Luísa existisse. O
que não deixava de ser muito constrangedor e temerário, aumentando ainda
mais o desconforto e o clima de barricadas invisíveis, prometendo muita
incomodação para Luísa, depois que a outra fosse embora, pois ela já
sabia muito bem o que lhe acontecia quando a grã-fina batia em retirada.
Antes ela a tivesse ignorado desde o começo.
Naquela ocasião, Lili comprou
mais inutilidades contemplativas e dispendiosas. Ela tinha uma queda
por livros pesados e gigantescos de moda. Também torrava dinheiro em
biografias de celebridades estrangeiras e mortas. Seu mito predileto era
a Duquesa de Windsor.
Após ter passado seu cartão,
flexionando seus músculos delicados com os quilos das centenas de
dólares que havia queimado, sem pestanejar, convidou Luísa para qualquer
coisa próxima dum café. A garota não soube muito bem dizer o que lhe
deu, mas não encontrou forças para oferecer resistência, ignorando que
seu pescoço estava a prêmio. Apesar de nunca ter sentido alguma vocação
para sapateado ou guerra entre aranhas, largou um sim descarado,
num impulso de investimento cego, sem margem de cálculo sobre a garantia
de alguma vantagem que talvez pudesse ser extraída do desatino. Muito
senhora de seus atos, sem dar satisfação a quem quer que fosse,
deixou-se arrastar pela socialite até diante dum frappé de
café.
4
Quando regressou da
imprudência estava na rua, embora estivesse no aguardo já fazia bom
tempo. De certa forma, aquilo acalmou seus nervos, pois já não agüentava
mais aquele compasso de espera.
Limitando-se a um laconismo
de ocasião, não protestou coisa alguma, segurando-se para que não saísse
do sério, embora os comentários desagradáveis, clamando por um
escândalo, estivessem determinados a desafiar sua paciência.
Contendo-se, pois sabia que se começasse a falar, quebraria todos os
dentes de Greiceneide, furando-lhe um dos olhos, pequeno gozo que só
atrapalharia seu futuro, Luísa decepcionou a todos. Preferiu
embasbacar-se, deixando-se anestesiar, mas nada impediu que se sentisse
como um escravo que tivesse conseguido sua carta de alforria, mas
estivesse ainda confuso quanto ao que faria com ela, pois, apesar de
sempre ter vivido num inferno, pelo menos, ele era conhecido. O máximo
que a turba extraiu dela foi um olhar sarcástico de cordialidade,
enquanto atravessava a loja na direção do shopping.
No fundo, embora precisasse
daquele salário, sempre desprezara aquele emprego. Além disto, quase que
como sina ou simplesmente por falta de condicionamento, sempre que fora
jogada numa situação que contrariasse sua vontade, principalmente, as
que envolvessem trabalho, mesmo que fosse obrigada a permanecer nela, os
resultados eram sempre lamentáveis, frustrando mais a expectativa de
seus superiores hierárquicos do que as dela própria, pois sabia, desde o
início, que não fora talhada para aquilo, e também, com muito
descaramento, que não se empenharia para que ficasse na coisa por muito
tempo, sentindo sempre certo alívio quando era convidada a retirar-se,
pouco lhe interessando que dali saltasse para a rua da amargura.
E também pouco ligava para o
fato dos empregos estarem muito difíceis de serem conseguidos, ainda
mais para quem não tinha um curso superior como ela. Algo lhe pipocava
que sempre haveria gente desempregada, doente e insatisfeita com a
natureza das coisas. O mundo nunca mudaria para melhor, mesmo que
houvesse revoluções sangrentas, celulares que pareciam o cinto de
utilidades do Batman, novos eletrodomésticos e democracia. Que
cada um cuidasse de si próprio, e do jeito que fosse possível.
Caminhando pelo shopping
meio estonteada, quase tropeçando nos próprios calcanhares, e levando
encontrões de gente apressada, mastigou as mãos de Lili sobre as suas.
Não tivera receio algum. Não tentara escapar dos toques. Alguma coisa
naquela mulher a fazia lembrar-se da mãe morta, embora ela tivesse ido
embora quando tinha seis anos de idade. Lili, naquela tarde, recendia ao
Carolina Herrera masculino. Soltava dispersões muito azuis pela
boca. Era triste em sua beleza, desde que fosse observada com
distanciamento. O cartão delicado, sem ser piegas ou cor-de-rosa,
acondicionado num dos bolsos do jeans, parecia assumir proporções dum
salvo-conduto ou duma lettre de cachet.
O problema imediato era
enfrentar as críticas que receberia quando entrasse em casa. Eles
encheriam seus ouvidos com recriminações e ofensas, e, se desse corda,
retaliando, haveria mais uma discussão infrutífera que corria o risco de
transformar-se num briga acirrada. Embora já estivesse mais do que
acostumada a ser tratada como uma nulidade ambulante. Pelo menos, ainda
tinha casa e comida, apesar do carinho nunca ter fixo raízes pelo
pedaço.
Socada em seu quartinho no
Peixoto, ouvindo música, lendo alguma coisa, ela tinha certeza de que
acabaria encontrando algum tipo de saída ou enlouqueceria, pondo fogo no
apartamento. Mas era imprescindível acreditar que amanhã era um outro
dia, mesmo que não houvesse muito entusiasmo depositado sobre a crença.
Não custava nada ir à praia. Sentar pelo Posto 6. Olhar os pescadores.
Ler pela areia, sentada sob as amendoeiras, correndo o risco de ser
assaltada, ou espancada porque nada tinha para oferecer ao ladrão. Ver o
mar muito azul e muito sujo, cheio de latinhas e sacos plásticos boiando
a esmo. Poderia surpreender algum afogamento inesperado. Quem sabe
alguém fosse assaltado e não ela, e conseguisse flagrar a desgraça,
fazendo número à indiferença curiosa dos populares que vêem tudo mas não
sabem de nada. O que não deixava de ser uma espécie de passatempo, mesmo
que às custas do infortúnio alheio.
5
Luísa adejava nervosa e sem
viço por dezenove anos mal vividos. Sempre sentira que seus dias não
passavam de aflição e ressentimento. Mas engolia tudo em seco, aderindo
hipocritamente às mazelas do tudo bem. Quem a visse solta
por ai, não identificaria patologias ou mais um poço de insatisfação
entristecendo o azul do mundo. Veria displicência, indiferença, uma
garota gozando saúde e juventude.
Um de seus principais
problemas era a dúvida atroz sobre as vantagens duma virgindade forçada.
Conservava seu hímen como se
fossem as jóias da coroa. Sem que soubesse de onde, sempre encontrou
certas reservas de discernimento que a impediam de abrir as pernas e
entregar a coisa. E isto nada tinha a ver com algum cacoete religioso,
gerando ignorância, morbidez e culpa. Nunca fora ardente, embora sua
beleza chamasse atenção, o que, de certa forma, acabara permitindo a
formação dum grande paradoxo. O noite sem homem para ela foi sempre
tirado de letra. Sexo foi sempre um acessório. Questão dispensável. O
que não significa que não tenha havido momentos de muita pressão,
momentos de temperatura alta, quase sem chance para que houvesse
antitérmico eficaz. Mas nada que um empurrão, um pontapé no saco, um
tabefe, um dedo no olho não resolvessem o ataque, pondo o querido em seu
devido lugar, pois sua razão sempre a chamava aos costumes.
Ser virgem adquiriu, com o
tempo, certas proporções comerciais, que talvez lhe garantissem um lugar
ao sol. E, no fundo, pelo que acabou observando, mesmo que muitos homens
dissessem o contrário, a pelanca continuava contando muito, aumentando
sempre a cotação de uma mulher no mercado da vida. E ela sabia o que
faria quando encontrasse o sujeito que prometesse ser the right thing
to do. Sentia-se predisposta a colocá-lo à prova. Iria massacrá-lo
delicadamente, até que subisse pelas paredes, pedindo misericórdia. Mas
sempre deixando bem claro seu só depois de casada.
6
Mas a perturbação da
virgindade não passava de detalhe, desde que comparada com um suposto
complexo de inferioridade que sempre a atormentara, desde criança,
desbotando-lhe a vida, roubando-lhe momentos que poderiam ter sido
gozados naturalmente, não fosse sua ininterrupta mania de sentir-se
sempre rejeitada porque nascera pobre. E tal vergonha se estendia a
pais, tios, primos, à família inteira, como se andar pelas ruas em sua
companhia constituísse uma grande gafe, na iminência de transformar-se
num crime.
Após ter adquirido algum
discernimento sobre si mesma, passou a ver com muito horror aquelas
festas de aniversário, Natal e Ano Novo. Sua combustão, além do mau
gosto, destilava uma alegria compulsória, sempre deixando escapar uma
chuva incessante de alfinetadas recíprocas, provando que a palavra final
não pertencia ao amor, mas à hipocrisia. E aquela gente com suas roupas
baratas batendo seus instantâneos desfocados, intoxicando os ambientes
apertados com seus perfumes florais ordinários e sua conversa sem
assunto. Definitivamente, Luísa sabia que não nascera para
empanturrar-se com brigadeiros enjoativos e gordurosos. Sabia-se uma
grande traidora. Mas aquilo estava além das suas forças.
Era por isso e por muito mais
que rejeitava sua afilhada, permitindo que a criança acabasse crescendo
como uma estranha às vésperas de transformar-se numa inimiga, não
fazendo o mínimo esforço para remediar a situação, arrependendo-se
amargamente porque aceitara fazer parte duma aliança que não tinha
espaço em sua cartilha íntima.
E tudo havia começado quando
uma das primas caíra na asneira de convidá-la para madrinha da primeira
filha. Luísa, com certa reserva, concordou. Mas sem ter percebido que
ela estava em mutação e que a prima seria a vida inteira o que sempre
fora. Nunca arejando os valores. Reproduzindo, sem perceber, o papel de
quem viera antes dela. Esforçando-se para reforçar e proteger o que
talvez se conformasse à estabilidade dum calo que acaba sendo mais forte
do que a vontade de se livrar dele.
Mas Luísa não imaginava o que
lhe aguardava. Célia tornou-se absurdamente exigente, com o passar do
tempo. Passou a cobrar-lhe presença em qualquer situação que envolvesse
a criança. Diante de tamanha insistência ela começou a desenvolver um
sincero horror pela menina e pela mãe. Para que a coisa se estendesse
para o resto da família não houve grandes obstáculos. Em pouco anos,
eles haviam se tornado estranhos.
E a turba consangüínea
acabara se pondo contra ela. Acusou-a de madrinha desnaturada. Não
admitia que ela nem sempre estava predisposta a comparecer a seus
almoços dominicais indigestos. Suas intimações tornaram-se abusivas,
invadindo sua privacidade e torrando sua paciência.
Além de tudo isso, Luísa
considerava de péssimo gosto ser chamada de dinda. Sentia-se tão
mal diante da palavra, quanto sentia-se quando seu Luísa era reduzido a
um Lu, forma que todos seus familiares insistiam em reproduzir,
pisoteando em sua sensibilidade. Sempre odiara apelidos e nomes
pervertidos pela redução preguiçosa, sempre e sempre advinda dum gosto
duvidoso.
Célia era esforçada e
trabalhadora, usando um cabelo mechado e um corte que a acompanhava
desde o final da adolescência, quando conhecera e se apaixonara por
João. Intrinsecamente míope para o mundo, só tendo sentidos para sua
família, o que significava o território que sempre a cercara, debochava
de quem lesse, não conseguindo acreditar como alguém pudesse perder
tempo lendo, passando a olhar para Luísa como uma candidata à
solteirona, quando percebeu as tendências intelectuais da prima.
Casara cedo, convencida de
que encontraria o paraíso. Mas acabou deparando-se com o que sua mãe e
sua avó já tinham encontrado. Embora elas não tenham - pelos mais
variados motivos, provavelmente tendo a ignorância como fator
predominante - se dado ao trabalho de segredar-lhe os prós e os contras
dum casamento, deixando que se espatifasse junto com suas ilusões de
amor eterno.
Em pouco tempo, João, o
marido de Célia, já estava pulando a cerca, traindo-a com o que desse
sopa. Tola, acreditou piamente que as filhas consertariam seu casamento.
Mas nem Larissa, nem Priscilla, surtiram algum efeito. Ela, como loba
ensandecida, agarrou-se às filhas, concebendo-as como tesouros. Cerceada
pela precariedade de seus juízos, supervalorizou seus objetos de
adoração, exigindo que todos se prostrassem diante de seus rebentos.
Luísa não embarcou na onda de escravidão familiar, provocando indignação
e anátema.
Mas o que realmente a fez
riscar sua família do caderno foi um episódio que a chocou sobremaneira,
envolvendo um dos aniversários de sua afilhada. Encontrando-se com a
prima pela rua, ela, de forma agressiva, cobrou-lhe o fato de não ter
telefonado no aniversário da pequena Larissa, pois estavam na praia, na
ocasião. Luísa retrucou suavemente que ninguém havia se lembrado dela em
seu aniversário, grudado no da garotinha. A prima descaradamente
devolveu-lhe que ela não precisava de telefonemas, nem de telegramas, no
dia de seu aniversário, mas que uma criança sempre devia ser lembrada.
Foi a gota d’água que vinha esperando já fazia muito tempo.
Silenciosamente, Luísa colocou sua família em seu devido lugar. Passou a
desprezar a todos definitivamente, caindo em desgraça para sempre em seu
incomunicável romance familiar.
E tudo talvez sempre
estivesse encubado, esperando o momento azado para que viesse a furo.
Aos quatorze anos, quando Luísa descobriu o cravo, deixou escapar para
uma das tias, justamente a mãe de Célia, que adoraria aprender o
instrumento, ao que a mulher respondeu cravo o nariz na merda. O
que talvez não fosse muito estimulante para quem estava na descoberta de
coisas que estavam lhe comunicando que seu mundo era pequeno, exigindo
expansão.
7
Enfim, Luísa estava convicta
de que havia nascido num ambiente contrário a seus valores, a seus
gostos, a quase tudo o que fazia parte da sua essência, sendo obrigada,
por razões misteriosas, a enfrentar situações que só obliteravam sua
vontade, imprimindo um sofrimento inenarrável em seu espírito.
Tinha certeza de que nunca
fora uma pária. Mas as circunstâncias concorriam para deixá-la aturdida,
atoleimada, confusa, desarticulada, como se houvesse uma nuvem de
debilidade mental a postos encarregada de só lhe atirar nas escolhas
mais absurdas, infernizando seu cotidiano, tirando-lhe a esperança dum
futuro que a fizesse esquecer que havia nascido sem muita chance para
transcender seu espaço irrespirável, vivendo num mundo onde realmente se
sentisse alguém.
E Luísa não chegava a se
sentir melhor do que quem quer que fosse. Só achava que estava
deslocada, que cada um deveria estar em seu próprio galho e que ela fora
jogada no galho errado. Sua família, aquela gente da livraria e outras
pessoas que encontrara pelo caminho não tinham culpa de coisa alguma.
Era ela quem fora posta a léguas de distância de sua turma. Eles
mereciam consideração e respeito, mas que se mantivessem longe do
alcance de seu olhar. Eram todos filhos de Deus, só não falavam a mesma
língua.
Com o tempo, ela acabou até
desenvolvendo algo próximo duma teoria sobre o que tanto supliciava sua
vida, crendo que o problema talvez residisse no fato das diferenças
estarem excessivamente próximas e misturadas, de tal forma confundidas,
que só poderia haver conflitos sem trégua. Estes conflitos confundiam-se
com uma guerra diária. Ela, sem chance para armistício, promovia uma
raiva que redundava em ódio e em muito sofrimento. Ambas as partes
pareciam condenadas a uma incomunicabilidade natural. A Terra era um
inferno fervilhante. Deus, se existisse, era muito cruel em sua maneira
de conduzir o mundo.
8
Em muitas ocasiões, Luísa
enfraquecia e sentia-se um perfeito fracasso. Em seu desespero mental,
chegava ao descalabro de comparar-se com primos e irmãos. Mesmo que
continuassem num seguimento do que sempre fora suas vidas de infância e
adolescência, haviam feito alguma coisa, encontrando alguma
estabilidade, conquistando respeito no meio em que viviam.
Não conseguira ir além do
quinto semestre duma faculdade de letras. Numa aula sobre Sintaxe
Gerativa, com a certeza de que depois do intervalo teria de
enfrentar outra de Psicologia da Educação, ajustou Pet Shop
Boys nos tímpanos, ergueu-se da cadeira dura, numa atitude
displicente, e saiu sem olhar para trás. Fora seu único contato com os
bancos universitários. Depois disso, nunca mais manifestou desejo de
voltar, fosse para aquele curso, fosse para qualquer outro. Sentia que
tudo aquilo era desnecessariamente masturbatório.
Após certos atritos
familiares, decorrentes de sua desistência, principalmente, porque
conseguira ingresso numa universidade gratuita, e, de certa forma, eles
não deixavam de ter razão, aceitou trabalhar, como caixa, na farmácia
dum desconhecido, no Catete. Mas não tirava o walkman da cabeça.
Errava no troco. Dava muito prejuízo. Matemática nunca fora seu forte.
Antes que lhe dessem o bilhete azul, resolveu enfrentar um shopping.
Eles tinham ar condicionado.
Talvez, num deles, estivesse mais próxima de si mesma. Seu inglês
impecável, porque para isto ela encontrou tempo e diligência para que
houvesse desenvolvimento e futuro, e seu conhecimento sobre literatura
inglesa e norte-americana, além de ser uma razoável livre atiradora em
arte e cinema, não serviram para coisa alguma, sendo observados como
tralhas predispostas ao acúmulo desnecessário de muita poeira. O que
realmente pesou na balança, para que fosse trabalhar numa livraria fino
trato, foi sua beleza e seu porte. Desde que a viu, o nordestino gerente
teve certeza de que aquela valeria a pena, pois nunca, em toda sua vida,
tivera em suas mãos um material de tanta qualidade.
Entregue ao trabalho, Luísa
descobriu-se cheia de desenvoltura e charme, capaz de seduzir, e, sem
nenhuma afetação ou falsa modéstia, viu-se apta para enfrentar um bom
número de discussões, podendo ser solta em qualquer espécie de sala de
visitas. Algo lhe dizia que causaria as melhores impressões em seus
inquisidores, fossem de São João do Meriti ou da Vieira Souto. A vida
parecia ter-lhe ensinado o uso de certa maleabilidade no comportamento,
deixando-a esperta o suficiente a ponto de saber tratar sempre todas as
pessoas com muita cordialidade e simpatia, independente delas serem
célebres ou anônimas, pobres ou ricas. Embora, o que mais a fazia
conquistar respeito e admiração fosse o fato de levar muito a sério o
velho ditado que sempre recomendou que um burro calado geralmente
passaria por sábio. Se havia problemas de convivência em sua vida, eles
ficavam restritos ao âmbito familiar.
E Luísa não viu nenhum
problema em blefar com o dono duma academia do Leblon. Aquilo lhe
garantiu boa forma, sem gastar nenhum centavo, por muito tempo. Apesar
do gajo nunca ter perdido a esperança de conseguir tirar dela o que
pensou ser fácil, desde que pusera seus olhos no corpo que o fizera
quase perder o fôlego. Mas quando ela se viu na iminência dum estupro,
pois a gentileza foi perdendo o verniz com o passar dos encontros, tirou
o time de campo. Não sem antes ter deixado o sujeito na iminência da
esterilidade.
9
Foi jogando conversa fora
sobre moda que Luísa percebeu que os gostos e tiques culturais de Lili
não eram lá muito diferentes dos seus, apesar dela ter visto in loco
o que ela só conhecia por livros e filmes.
Como gralhas enciclopédicas,
nessa tarde específica, elas esqueceram da vida, saltando da moda para
modelos, e tratando de afunilar o assunto em Marisa Berenson.
Entretanto, lá pelas tantas a Marisa Berenson foi crescendo e
deixou de ser modelo, transformando-se em atriz. Para que falassem sobre
Morte em Veneza e Cabaret foi num záz-tráz. Mesmo assim,
só encontraram alguma possibilidade de sossego quando a Marisa
Berenson surgiu em Barry Lyndon. Barry Lyndon jogou-as
nos braços de Thomas Gainsborough e Joshua Reynolds. Ambas
concordavam que era como se a Marisa, durante o filme, ficasse o
tempo inteiro saindo dum pintor para entrar no outro.
Enfim, naturalmente, de moda
à pintura do século XVIII inglês, passando por filmes já esquecidos,
elas conseguiam aproximação sincera, fazendo de suas discussões uma
forma agradável de reconhecimento recíproco.
Era esse tipo de situação que
sempre faltara em sua família, pois quando Luísa apontava alguma coisa
na televisão ou tecia algum comentário que fugisse da alçada de seus
assuntos limitados era sempre alvejada por olhos raivosos que a
fulminavam no ato, marginalizando-a como se estivesse louca. Aliás, um
dos principais recursos de seus primos, quando não entendiam o que ela
estava falando, era chamá-la de louca.
Sutil e delicada, Luísa
tratou de tirar proveito das supostas identificações.
Voltando para casa, entalada
num ônibus malcheiroso, pois no início da amizade Lili ainda não havia
posto o chofer a sua disposição, Luísa pensou a própria vida com
meticulosidade. Aturdida pelo desemprego, com seu fundo de garantia se
esvaindo como areia numa ampulheta e excitada pela conversa que travara,
uma vez que funcionara como droga, sentia-se com os nervos à flor da
pele, predisposta a encontrar soluções para seu calvário.
Pensou principalmente em seu
excesso de perdas e danos. Ruminou as compras que nunca havia feito em
toda sua vida. Martirizou-se com o fato de nunca ter usado um talher de
peixe, eventualidade que fazia com que se sentisse muito envergonhada.
Refletiu que não era fácil tropeçar numa Lili Mello Guimarães Cerdeira a
todo momento, caindo em suas boas graças. Era como achar uma agulha num
palheiro. E, por aqueles dias, quando ainda inexistia a Renascença da
Barra da Tijuca, ela ainda era uma instituição na Cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro.
Qualquer coisa seria muito
melhor do que oito horas num lugar onde o bom e o melhor iam sempre
parar nas mãos de estranhos. Enfim, ela desabou, sem sentir sintomas
prévios, num pranto convulsivo, alheia aos olhos curiosos que devassavam
sua dor. Mal chegou em casa e telefonou para Lili, explicando, como
podia, as notas e os tons da própria tragédia pessoal. Ela lhe disse que
pegasse um táxi e voasse de volta. Que não se preocupasse. Ela pagaria a
despesa. Luísa sempre tinha medo das despesas. Cansara de ser obrigada a
devolver coisas no caixa do supermercado porque não tinha fundos
suficientes para levar o que sua falta de cálculo crônica julgara como
devidamente coberto.
10
E Lili não deixou por menos,
contagiando-se com o pranto da garota. Se uma berrava, como um terneiro
desmamado, porque não tinha berço, só vira talher de peixe em filme do
James Ivory, Lili aproveitou a deixa para descer do pedestal,
liquidando a maquilagem, transformando seus olhos num Édipo Rei
após a mutilação.
Mas não chorou por causa da
filha ou por causa do marido calcinados em Orly, no início dos anos
setenta. Chorava copiosamente porque estava apaixonadíssima por Dudu, e
ele, trocado por merda, sairia sempre muito caro.
E foi ai que Luísa começou a
entender as razões de seu interesse por ela, compreendendo que os jogos
associativos dos homens eram sempre misteriosos e sinistros, muitas
vezes perversos, transbordantes de traumas e idiossincrasias.
11
Enfim, mesmo que Lili não
soubesse, aquela tarde específica prometia um dreno no abscesso. Ela
ganhara a rua escaldante convicta de que enfrentaria sua rotina de
tédio. Nada esperava, exceto mais um desfalque em seus cartões de
crédito. Seu ponto final talvez fosse o sabor da sua indiferença
corrosiva sobre as coisas do mundo, mesmo que não soubesse para onde ir,
caso resolvesse pular fora dele. Mas o tiro saíra pela culatra. Aquele à
queima roupa insurgiu-se como um choque inesperado. Ele constrangeu a
memória a escancarar sua caixa escura de perdas e danos, redundando em
ressentimentos e muita expectativa. Na garota suburbana ela reencontrava
a filha queimada a cinco quilômetros de Orly. Os jogos associativos são
sempre anfibológicos.
E um cantor da Bossa Nova,
com nome de filósofo medieval... Um iatista, quem sabe de descendência
nórdica, como tem prezado a tradição carioca... Um famoso e lúgubre
chefe de polícia dos tempos do Estado Novo, que as más línguas
diziam ter as mãos sujas de sangue... Uma grande amiga de Lili,
também grã-fina e atriz de meio expediente, daquelas de família com
pompa e circunstância que se expunham aos riscos do Cinema Novo,
servindo de cobaia para o Glauber ou para o Nélson Pereira dos
Santos, tudo na base do amor pela arte, muito câmera na mão e idéias
na cabeça, num Goddard sob transplante... E a tal amiga foi tão
bem comentada naquele momento confessional que Luísa chegou a se sentir
muito íntima da defunta, não conseguindo, inclusive, conter uma pitada
de inveja... Enfim, pelo que lhe entrava pelos ouvidos, além da filha e
do marido de Lili, muita gente boa, que nunca vira nem mais gorda,
sequer supunha a existência, fora reduzida ao reconhecimento duma arcada
dentária, naquele 11 de julho de 1973. Os ricos também choram!
Apesar do pouco importa,
muito cristão garantia que eles já estavam mortos, intoxicados pela
fumaça, que talvez tivesse começado a vir duma das toaletes, quando o
707 explodiu em seu pouso forçado sobre uma plantação de cebolas (muitos
insistiam que era de batatas). Apesar do tanto faz, havia também o grupo
que negava de forma peremptória o cigarro descuidado na toalete,
pendurando-se na paranóia duma sabotagem. Mas era um momento histórico
chapinhando na desconfiança mútua, onde tudo parecia sempre não ser
aquilo que se esforçava em representar, pois cada gesto em exposição
estava sempre ocultando um conteúdo deliberadamente não manifesto. Quem
muito se beneficiou nessa época foi a Metáfora.
Mas quem também soube sapecar
um foda-se life goes on exemplar no Titanic de ocasião foi
Margarida, a camareira de Lili. Pondo o pouco importa e o tanto faz a
serviço da própria camiseta, ela trocou a parati definitivamente
pelo chá com torradas. Para ela, um charuto seria sempre um
charuto, pois um pênis é um pênis e uma rosa é uma rosa, e, falando
francamente, entre os militares e o MR-8, ela ficaria sempre com
Roberto Carlos. Se o túmulo de Cármen Miranda já lhe havia
permitido uma viagem ao Ceará e um Ricardo Guimarães de segunda
mão para o casamento duma prima em Cascadura, conseguindo até feder a
Chanel nº 5 de contrabando, o 820 do vôo, latejante como uma dentina
nua entregue a um sorvete, poderia da mesma forma também explodir como
uma promessa de felicidade. E foi assim que ela sumiu do mapa, porque o
820 não se tratava de miragem, mas duma certeza lotérica, conforme lhe
garantira uma Maria Padilha da sua confiança, não se fazendo de
rogada e exigindo-lhe uma francesa doce, mais duas dúzias de
rosas vermelhas sem espinho, pois Margarida até conquistou um primeiro
lugar, na categoria luxo, no concurso do Municipal, com Crepúsculo
dos Deuses, qualquer coisa próxima duma meia tonelada além da
extravagância, evocando Gloria Swanson, como Norma Desmond,
criada por Clóvis Bornay. Astuta, e agora sabendo quem era
Gloria Swanson, mas não querendo muito assunto com cinema ou
decadência, Margarida logo guardou num armário sua peregrinação pelo
efêmero, pois nunca pusera em dúvida que tudo evaporava depois duma
Terça-Feira Gorda, e tratou de investir o grosso do dinheiro num
motelzinho na Zona Norte – a experiência, mais os conselhos da
Padilha, sinalizavam que desarranjar camas seria sempre mais
lucrativo do que arrumá-las.
E Luísa foi percebendo que
passar as horas com Lili, deixando-a livre para que falasse o que bem
entendesse, sem nenhuma interferência, era sempre uma fonte inesgotável
para inúmeros horizontes. Seu forte era, sem nenhum constrangimento,
introduzir acessórios associativos que tomavam o lugar do principal,
saindo dos trilhos pluriqueixosos das tragédias íntimas para decompô-las
em fragmentos que descambavam para coisas interessantes sempre sob a
responsabilidade de mãos também interessantes. Lili poderia ser inimiga
de si mesma, sempre na iminência da troca dum buraco depressivo por
outro, mas do seu lado qualquer um estaria sempre protegido contra o
tédio. Eis a missão duma femme du monde.
12
Dudu surgira, sem que Lili soubesse de
onde, pelas areias de Búzios, metido numa sunga sumária. Sugeria um
nascimento insólito, mas sem o glamour duma Afrodite, descambando
para o tenebroso e o sinistro. Era como se tivesse sido encontrado,
finando-se, numa lata de lixo ou tivesse sido evacuado às pressas numa
pia suja de gafieira, numa noite efervescente de sábado consagrado ao
vício, à perdição.
Tinha idade suficiente para
ser filho de Lili. Com o tempo, Luísa teve certeza de que poderia até
ser seu neto. Não passava dum gigolô de praia.
Mas ela não poderia viver sem
ele. E Dudu a levaria à ruína, Luísa foi logo percebendo, caso não fosse
encontrado um jeito de neutralizar aquele poder pavoroso que exercia
sobre sua vontade e sobre seu amor próprio.
Ele desaparecera já fazia uns
três meses, depois que ela lhe dera um Audi, embora ele estivesse
aflito por uma Ferrari.
13
Diante de tanto desespero,
Luísa acabou sugerindo que ela viajasse. Afinal de contas, podia ir para
onde bem entendesse. Ela, depois de certa resistência choramingas, que
dava vontade de esbofeteá-la, aceitou o conselho, porque Lili, tão
hierática e sensata em seus dias e noites, perdia o controle das
próprias emoções na presença do garoto, transtornando-se numa mulher
ridícula, beirando à vulgaridade. Mas carregou Luísa junto em seu
comboio. Sem que a consultasse, havia lhe dado um emprego. Da noite para
o dia, Luísa emergia como sua secretária particular.
O trabalho não dava trabalho.
Tudo poderia ser resumido na tarefa de proteger Lili dela própria.
Encapada por toda sorte de
facilidades, Luísa deixou-se sofisticar, dando uma figa para sua
família, apesar de, na época, ainda ser menor de idade. Entretanto, seu
pai, vendo o dinheiro de Lili em seu corpo, enfiou preconceito e má
vontade entre as pernas e a deixou em paz. Triste e resignado,
convenceu-se de que a garota estava perdida.
Luísa sabia que a ocasião
sempre fazia o ladrão. Era só chegar no seu preço. Não tinha muita
certeza, mas concluiu que só acabou se tornando o que sempre havia sido,
mesmo que nunca tenha se dado muito ao trabalho de gastar fósforo com a
questão. O que importava era que, em vinte e cinco dias londrinos e mais
trinta e quatro parisienses, de piano carregado e camiseta empapada pela
causa Lili Mello Guimarães Cerdeira, havia se transformado numa
necessidade.
14
Em trânsito, visitou uma
infinidade de lugares, gostando mais dos históricos dos que dos
mundanos, principalmente, porque a presença dos amigos insuportáveis de
Lili tornavam as coisas mais difíceis para ela. Uma noite que poderia
terminar por um início de madrugada transformava-se muitas vezes numa
orgia de álcool e cocaína, na iminência de drogas mais pesadas, cabendo
a uma Luísa meio assustada o encargo de pôr sua patroa na cama, não sem
antes tê-la feito mergulhar, sempre contrariada, numa ducha que
conseguisse lavar corpo e alma.
Entretanto, ela jamais perdeu
a linha, sendo indelicada com quem quer que fosse, recebendo o
tratamento que lhe era dispensado como um animalzinho de estimação
devidamente bem treinado. Mas seus reflexos psíquicos estavam sempre em
alerta, pondo em seu devido lugar qualquer um que se atrevesse a
pisoteá-la. Seu radar estava sempre mais atento às investidas de certos
homens que, pelo fato de sabê-la uma pobretona que não tinha onde cair
morta, resolviam aproveitar-se da situação delicada, convictos de que
ela era fácil e que não ofereceria nenhuma resistência em troca de
alguma miçanga. Seu respeito foi definitivamente conquistado no grupo
quando varejou por uma janela um Cartier que um de seus
predadores usou como isca para levá-la para cama.
No final da viagem, o tipo de
vida que Lili estava levando começara a cansar sua beleza. Mesmo assim,
fechou os olhos e cumpriu seu dever. É bem provável que se não fosse por
Lili, jamais tivesse percebido que os ricos gozam do que quer que seja,
sem nenhum esforço, com certa precedência em relação aos outros. Isto os
fazia entrar em colapso. Ao invés de amadurecer, apodreciam. Carcomidos
pela indolência, acabavam trafegando por uma vida que aos poucos ia
perdendo totalmente seu sentido. Luísa tinha certeza de que eles
mereciam a forca.
Mas também, obviamente,
aprendera muito no sentido cultural. Isto nunca poderia ser negado: Lili
foi sempre muito útil, serviçal, jamais negando seu auxílio. Enfim,
aquela viagem inesperada, que, inclusive, permitiu-lhe observar que os
homens ingleses eram possuídos por uma estranha beleza, não encontrada
em homem algum da Europa, embora, com toda justiça, em certos casos
críticos, fossem como se a natureza tivesse dormido no ponto ou rogado
uma praga, enfim, aquilo tudo foi como um complemento duma educação que
parecia fadada a olhares sempre ansiosos e inconformados sobre revistas
e livros, geralmente, emprestados.
15
Apesar das compras, da
renovação de ares e das pequenas ilhas de aventura, onde Lili agiu como
se estivesse sob ação duma zarabatana autodestrutiva, não houve o que
segurasse sua depressão. Tão logo sobrevoaram a Baía da Guanabara, ela
começou a demonstrar sinais duma indiferença apática, saltando da
euforia dos dias anteriores para a ante-sala dum quase coma.
Luísa já tinha pressentido
uma futura perturbação, embora não soubesse como ela iria dar suas
caras, principalmente, quando, uma semana antes da partida, surpreendeu
Lili, que havia cheirado muito, dançando uma espécie ruidosa e gutural
de cancã, sem calcinha, sobre a mesa duma boate, fechando a noite com
uma boa mijada num balde de gelo, sempre sobre a mesma mesa.
Mas ela ficou em seu canto,
como sempre. Carregou a moça para onde fosse preciso. Jogou-a sob mais
uma ducha gelada quando se fez necessário. Mas sempre esperando pela
irrupção que a deixaria na lona. Era como o que muitos chamam de
força maior – algo previsível, mas quase impossível de conter, pois
só cessaria quando sua energia de devastação se esgotasse.
E as ondulações melancólicas
tornaram-se perceptíveis a longa distância, mal chegaram em casa.
Lili deixou-se trancafiar
numa transparência autodestrutiva. Desesperada e desiludida, Lili não
fez mais a mínima questão de camuflagem. Passou a dizer, a quem quisesse
ouvir, que realmente tinha sessenta e dois anos. Negligenciou a
avalanche de massagistas, professores de ginástica e o cirurgião
plástico que sempre estiveram em sua folha de pagamento - como um bom
mafioso nova yorquino, garantindo o bom andamento dos próprios negócios.
Muito longe da Lili das
revistas e da livraria, passou a berrar coisas obscenas, incluindo que
estava tudo acabado, que nada mais tinha sentido na sua vida. Em pouco
tempo, estava conformada a spleen, banzo e blues,
reduzindo seu rosto a olheiras macabras.
Só encontrava tempo e
disposição para cigarros medonhos de haxixe, que faziam com que muitos
da casa vissem estrelinhas prateadas e enjoassem seus estômagos, e dry
martinis, que deixavam sua voz pastosa, na iminência do arame farpado,
podendo ser considerada como voz de velha ou voz de bruxa em franco
desenvolvimento. Além de ouvir, o tempo todo, uma música turca
enervante, que parecia não ter fim nem começo.
Passou a rejeitar qualquer
espécie de alimento. Varejava raivosamente as bandejas que iam chegando
contra as paredes de seu quarto, enquanto todos agradeciam a Deus porque
tecidos e pintura eram laváveis. A única coisa que concordava em
mastigar eram pétalas de flores cristalizadas.
A cada dia consumido, a
sexagenária aflorava pela pele. A indefinição etária misteriosa estava
derretendo. Sem nenhum esforço, a esfinge perdia sua atração, esgotava
seu encanto, transformava-se em insignificante estatueta.
16
Em certo meio de tarde
escaldante, Luísa apanhou Lili na iminência dum vidro inteiro de
soníferos. Apavorada com o que já era para ter esboçado a primeira
tentativa, pois, até então, ela não se movera na direção dum suicídio
direto, Luísa resolveu sacudir a patroa. Jogando fora seus escrúpulos,
lançou mão dum plano que envolvia qualquer coisa próxima duma terapia
pouco ortodoxa. Mas não sem antes ter consultado o psicanalista de Lili,
um homem tão desnorteado quanto as duas juntas, que, por casualidade,
havia pensado em coisa parecida. Entretanto, sem a ousadia e o risco que
a proposta de trabalho de Luísa comportava. Numa coisa todos estavam de
acordo, Lili não seria internada, nem submetida a choques elétricos ou
de insulina. Só seria colocada em contado com a realidade.
Eles começaram pelo sexo
intensivo.
Desde que se sentira mais do que
fortalecida em sua posição conquistada na casa, Luísa acabou com a
quantidade de gente dormindo por lá, o que muitas vezes significava
invasão de privacidade. Além de ter reduzido o staff de
parasitas. Havia um enxame desnorteado de copeiras em azul marinho que,
como moscas tontas ociosas, mais atrapalhavam do que prestavam algum
auxílio. Quando se precisava realmente de alguma, quase sempre, a
querida ou estava na frente duma televisão, mastigando biscoitos, ou
surda, viajando pelo walkman
Entretanto, como se seu
inconsciente tivesse previsto o futuro, agora o terreno se achava limpo
para que a operação se processasse sem nenhuma espécie de interferência.
Enfim, tão logo a criadagem desaparecia do mapa ela chamava o
psicanalista e ambos contratavam corpos exuberantes e saudáveis para
orgias bem intencionadas. Elas estavam sempre sob a supervisão de seu
controle de qualidade e do relógio. O comigo é na madeira de Lili
nunca deveria ir além dumas três horas, apesar dela muitas vezes ter
forçado a barra, fazendo com que as três horas ultrapassassem os
primeiros raios de sol. Incluía sempre doses cavalares de cunilingus,
felação, posições bizarras, dupla penetração e o que Lili estivesse
interessada em enfrentar.
E, diga-se de passagem, ela
agia com tal desenvoltura que talvez fizesse com que uma profissional
chegasse a corar ou viesse lhe pedir alguns conselhos. Antes uma
ninfomaníaca despertando do que uma letárgica depressiva à beira do
túmulo.
Lili devorava cada corpo.
Gritava que não haveria macho pobre naquela cidade, enquanto ela
vivesse. Depois, desabava num sono profundo, absolutamente esgotada.
Como uma Messalina pós-meio-exército, reduzia-se a uma posta esquálida e
macilenta de carne gasta. Mas prosseguia de mal a pior no dia seguinte.
O fantasma de Duduzinho continuava não lhe dando descanso.
17
O segundo ato daquela
conspiração de boa fé esteve circunscrito a um duelo entre espetos
apressados, escorrendo gordura, e uma voz que mais parecia Daniel na
cova dos leões, tendo por jurados e testemunhas estômagos que se
dividiam entre a gula e a fome. Era o desafio de Marlene – tornar-se
mais atrativa do que uma picanha suculenta.
Luísa e Carlos Alberto
estavam convictos de que ela teria sua chance e aplauso naquela noite,
pois talento era que não lhe faltava. Mas desde que tivesse paciência
naquela fila de prioridades, uma vez que tudo prometia que ela seria
apreciada na hora do palito.
Resumindo a safadeza: Lili
foi arrastada até uma churrascaria, na via Dutra, para torcer pela
estréia musical da sua cozinheira. E Marlene estava nervosa, trêmula,
indo e vindo do toalete, mas determinada a não deixar que o samba
tivesse uma síncope.
Mas tudo não passou dum outro
aborto. O máximo que se conseguiu foi uma Lili vomitando na mesa, depois
de ter sido melecada em seu pescoço e ombros por alguns pingos dum
espeto descuidado.
18
A partir dali, a temperatura
subiu e o nível veio abaixo.
Lili enveredou por uma
peregrinação pelo indigesto.
A tiracolo, como se fosse um
zumbi, ela foi empurrada para um espetáculo de cancerosos e aidéticos
terminais, prostitutas infantis nordestinas, favelados com verminose,
pagodes, forrós, filas da previdência social, rodoviárias, a Avenida
Brasil ao meio-dia e toda sorte de possibilidades bizarras que
estalassem pela imaginação da dupla, que, aos poucos, provavelmente,
pela convivência, começou a se acertar muito bem, tendo, inclusive,
oportunidade para presenciar de camarote um assalto dos bons, pelas
areias do Leblon, quando duas ou três turistas, brancas como uma pobre
barata descascada, foram descaradamente espancadas e assaltadas por um
cardume de negrinhos que mal tinham quinze anos, deixando as gringas
nuas em pêlo e sangrando.
Lili continuou não reagindo.
19
Como um gato, desaparecido
durante uma temporada de cio, Dudu voltou. Estava quebrado.
Observando-o, Luísa conseguiu
sacudir a poeira da sua arrogância despropositada e vulgar. De repente,
sem querer, acabou transformando-o. E ele passou a oferecer certa
atmosfera de século XVIII devasso, provavelmente, devido ao cabelo negro
e longo, apanhado num rabo de cavalo insolente. E ela entendeu que o
porte atlético e bronzeado, ou a musculatura delineada, que permitiam
suspiros, maridos com guampas e molhava as calças das damas, talvez não
passassem de meros complementos. Sua atração fatal residia nos olhos
verdes silenciosos, que assumiam a cor da avelã, conforme a luz que os
surpreendesse, mas absolutamente corrompidos por um instinto que ainda
não fora domesticado.
E ele, com muito
descaramento, passou por cima da aflição de Lili, tratando de devorar
Luísa atrevidamente, como se ela estivesse totalmente nua,
dispensando-lhe a curiosidade dum mercador de escravos diante de nova e
promissora mercadoria.
20
Desde cedo, Luísa aprendera a
discernir polidez de afeto, sabendo também filtrar a verdade do
blá-blá-blá que sempre ocultava a curiosidade descartável duma trepada
sem futuro. Estava imune àquela espécie de armadilha. Sabia o que aquele
tipo de homem desejava duma mulher nas suas condições. Nunca fugiriam
para os mares do sul, vivendo da pesca, de àgua de coco e muito amor,
como uma Dorothy Lamour e seu galã de ocasião.
Entretanto, também sabia que
a carne era sempre fraca apesar da eternidade da alma. Se não tomasse
cuidado, talvez entrasse para o grupo de risco, deixando que ele
arredasse a mobília para que pudessem dançar. O que seria um desastre.
Precisava ser absolutamente
escorregadia e diplomática. Sempre soubera que nunca seria prudente
cobiçar o que já tinha dono. Jamais cair na arapuca das aventuras que a
fizessem derramar lágrimas de sangue.
Dudu era desprezível porque
era dominado por um excesso de confiança em si próprio. Aquilo lhe dava
nos nervos. Aquela energia avassaladora provinha da sua beleza e da sua
juventude. Mas ela sabia, embora ele não, que tudo era temporário, não
passando dum estado, caso contrário não seria tão boçal. Tirassem aquilo
do infeliz e ele deixaria de respirar afoito. Seria reduzido a uma massa
disforme e desiludida, afogando seu ressentimento no álcool ou no que o
pusesse para dormir. Ela sempre odiara bichos sexuais. Sempre detestara
aquela espécie de gente míope. Eles se recusavam a enxergar que o corpo
tem hora marcada para existir. Envelhecer seria sempre uma arte.
Exigiria sempre um acúmulo muito lento de panacéias que tornassem a
flacidez e a bengala quase imperceptíveis. Envelhecer era uma arte que
deveria ser cultivada desde tenra idade. Era um luxo de poucos!
21
Enfim, após muitos meses de
convivência e reflexão, acabou concluindo que a pobre Lili deveria ser
poupada daquele calvário. Nunca, em toda sua vida de Leme e rabanadas
gordurosas no Natal, alguém se dera ao trabalho de verificar se ela
tinha potencial para tirar o pé do barro. Sem Lili, jamais teria chegado
onde sempre achou que deveria ter nascido.
Mas precisava de muita
paciência. As coisas sólidas são sempre muito lentas na sua construção.
Elas exigem a sabedoria do degrau por degrau. Duduzinho era arrogante e
gostoso como o Johnny Stompanato da Lana Turner. Tinha um
quê absurdo de Doca Street. Algo lhe dizia que num momento de
vontade desobedecida seria capaz de bater e matar. Era como uma criança
perversa e mimada. Talvez lhe fizesse um grande bem, impedindo que
envelhecesse. O mal se corta pela raiz. Mas, desta feita, ela excluíra
Carlos Alberto de seus planos.
22
E, dentro do possível, as
coisas entraram nos eixos, tanto que os vasos reapareceram exibindo
muitas flores, em todos os cômodos.
Dudu voltou a exibir seu ar
cafajeste pela casa do Jardim Botânico. Conduzia sua protetora ao Sétimo
Céu, conforme o alarme de seu desejo, depois, entregava-se ao nada, o
que significava exercícios físicos e muito video game.
Aliás, não havia hora precisa
para que o apetite de Lili despertasse. O miserável só descansava quando
ela se sentisse satisfeita. Cada maratona durava sempre umas sete ou
nove horas ininterruptas. E Lili era do tipo que mesmo vendo a exaustão
do parceiro continuava a passar-lhe a mão pelo corpo, cobrindo-o de
beijos asfixiantes, furungando na sua intimidade murcha e mole, como se
fosse um brinquedo, muitas vezes confundindo-o com alguma maçaneta de
porta, olhando-a sempre com certa admiração vampiresca, a ponto de
torrar a paciência do garoto.
23
Foi numa das suas tréguas, no
silêncio do início de mais uma noite, que Luísa viu a coisa muito preta.
Sem que Duduzinho percebesse,
ela o contemplou dum dos mezaninos. Só de jeans e descalço, bebendo seu
cowboy. E ele mascava chicletes e dava socos no invisível, como
se estivesse absorvido por uma luta de box imaginária. Era impossível
resistir. A ocasião faz o ladrão. A tentação abrasada permite a traição
descarada.
E ela já estava saturada
daquele olhar que a perseguia pela casa. Sentia-o convicto de que ela
sempre estivera no papo. Era só uma questão de jeito, e ela saltaria na
sua cama. Precisava agir o quanto antes, principalmente, depois que ele
lhe dissera que bastava triplicar o sonífero de Lili e ele seria todo
dela.
Ela preferia vê-lo como uma
fruta estranha, pendurado numa forca, cercado por magnólias,
entregue à fome dos corvos e à curiosidade mórbida dos transeuntes.
Manter-se longe daquela
criatura era o que garantia, por aqueles dias, sua vida naquela casa.
Nervosa, deixou o mezanino e foi na direção do quarto de Lili.
24
Luísa abriu abruptamente as
cortinas e encontrou uma Lili nua, esparramada pelo dossel imenso, mas
já com alguma corzinha sugerindo saúde pelos zigomas. Satisfeita, como
Duduzinho a vinha deixando nos últimos dias, não ficou irritada com a
invasão.
A garota foi direto ao
assunto. Expôs a possibilidade de três vias que salvassem a amiga.
Acabaria de vez com a incerteza que ameaçava a paz daquela casa.
Meio estonteada, ainda sob os
efeitos da visão do passarinho verde, Lili ouviu o desespero da outra
entre o interesse e o bocejo.
Rejeitou a primeira hipótese.
Teimosa como um burro de padeiro, não estava interessada em riscar
Duduzinho do mapa, mesmo que soubesse da sua nocividade e que vinha
fazendo papel ridículo há muito tempo.
A alternativa que encerrava a
partida de Luísa chegou a tirá-la do sério, e Lili esbravejou que não
admitia chantagem emocional.
A terceira saída lhe deu
arrepios. Ficou horrorizada com a imaginação da pupila. Entretanto,
mesmo que tenha recorrido ao sinal da cruz muitas vezes, acendendo um
cigarro e olhando para as pernas, aquilo, de repente, começou a lhe soar
como alguma coisa plausível. Assumia-se como uma escapatória que fazia
com que ninguém saísse perdendo. Muito pelo contrário. E Duduzinho e
Luísa continuariam sob sua guarda. Além do fato do garoto manter-se
protegido dele próprio.
Luísa lhe garantiu que estava
tudo por um triz, mas Dudu não desapareceria enquanto ela o impedisse de
tocá-la. Precisavam agir logo. Lili acabou concordando.
25
O neurologista ficou
apavorado. Jamais ouvira coisa tão medonha e nauseabunda. Aquilo não
passava dum capricho levado às raias da insanidade. Aquilo era desumano.
Era criminoso. Feria sua ética. Aquilo...
Mas ele acabou esquecendo o
juramento de Hipócrates, virando as costas para o Código Penal, assim
que Lili refrescou sua memória, alegando que ele não teria sido coisa
alguma, não fosse o empurrão de seu falecido avô. E que não esquecesse
que o hospital era dela, além de muitos outros. Mais de sessenta por
cento das ações estavam em seu nome.
Para que não houvesse
dúvidas, Lili escorregou um envelope na direção das mãos suadas do
neurologista. Sem qualquer embaraço, o homenzinho nervoso, que muito se
parecia com um frango pelado, atracou-se no papel pardo.
Não conseguiu disfarçar sua
frustração, quando descobriu que não poderia comprar o importado japonês
que vinha lhe tirando o sono, fazia certo tempo. Ao invés de dólares,
foi surpreendido por um calhamaço burocrático, cheio de carimbos e
assinaturas que impunham respeito hieroglífico. Aquilo garantia uma
bolsa de estudos em Paris para sua filha mais moça, recém formada em
artes plásticas. E Lili, em conversa no clube, pescara seu desejo por
aquele tipo de coisa. Além do fato de ser uma tradição familiar prestar
auxílio aos novos talentos empobrecidos. Coisa que sua família vinha
fazendo, desde os tempos heróicos da Semana de 22. Quem sai aos
seus não degenera.
26
E ele foi para o hospital,
como um asno empacado que se deixa arrastar por alguns pedaços de milho,
convicto de que se submeteria a uma lipoaspiração. Embora nada houvesse
de errado com suas costas, as duas infernizaram sua vaidade, incutindo
nele a existência da formação de pneus que estava degenerando sua
plástica perfeita. Assustado, acabou acreditando, embora passasse e
repassasse suas mãos, não encontrando coisa alguma.
27
- Duduzinho, meu amor, suba
já! – ordenou melifluamente Luísa, espichando-se da sacada que
contornava o quarto de Lili, enquanto um coro aflito de Sabiás
infernizava seus tímpanos.
- Você vai apanhar uma
insolação! Chega de sol por hoje! – gritou uma Lili lá de dentro.
Dudu, oferecendo a atmosfera
alvar e faceira dum cocker spaniel amestrado, perambulava pelo
jardim. Colhia gardênias e jasmins. Com zelo ortodoxo, depositava as
flores num cestinho de vime. Em segundos, entrava no quarto de Lili,
carregando flores e olhos bovinos. A pureza artificial deixara-o ainda
mais desejável, embora Lili não gostasse muito daquela cabeça raspada.
Usá-lo, como se fosse uma escova de dentes, eqüivalia a sacrificar um
cordeiro diariamente.
- Está na hora de você ser
gentil com nossa Lili, meu amor! Seja sempre um bom menino! – disse
Luísa, pegando o cesto de flores.
- Mas vai tomar um banho
antes! – replicou uma Lili recostada num divã napoleônico, revestida em
bandagens que lhe cobriam rosto e boa parte do corpo.
- Interessante! – falou
Luísa, enquanto arranjava as flores pelos vasos que se dispersavam pela
suíte. – Muito interessante! Não há sinal algum de cicatriz.
- Mas já está me dando nos
nervos! – retrucou Lili, tateando seus cigarros pela mesinha de pau
marfim que se depositava ao lado do divã.
28
Depois que o caso Dudu
encontrou solução plausível, com certos ares de final feliz, com a
certeza de que ninguém apareceria para reclamar o corpo, Luísa resolveu
cuidar da própria vida.
Carlos Alberto tinha uma cara
deslavada de Jesse Lasky, apesar de não ser judeu, e muito menos
ter passado pela sua cabeça construir algum império cinematográfico. O
certo era que a beleza jamais seria seu forte. Tinha uma cabeça de ovo
que acomodava uma calvície a caminho, coisa que ele não fazia muita
questão de ocultar, olhos verdes saltados, um nariz em forma de gota e
uma boca minúscula e nada simpática, em forma de coração invertido.
Embora estivesse livre dos pés chatos, das orelhas de abano, envergasse
um bom queixo e seu hálito fosse quase perfumado, mesmo que fumasse uns
seis havanas por dia.
Entretanto, era suave e
culto, com belas pernas cabeludas, tendo dinheiro suficiente para que
Luísa deixasse definitivamente de ter um passado.
Mesmo que Lili tenha
protestado, descontando a mágoa e o ressentimento em Duduzinho, Luísa
trocou de proprietário. Casou discretamente, conforme seu feitio, apesar
de ter gozado algumas notas de jornal que mostraram ao mundo que ela não
tinha nascido para morrer na praia, embora muitos pensassem que não
servia para coisa alguma.
E as jóias da coroa foram
entregues sem dor ou resistência. Era como se ela estivesse lubrificada
desde longa data, esperando pela carne certa, que entrasse naturalmente,
sem provocar traumas ou avarias, num encaixe macho e fêmea que só a
natureza das coisas teria meios para decifrar o mistério.
O que tinha de feio, Carlos
Alberto conseguia compensar com a habilidade de sua língua e seu poder
indescritível de sucção, pois seu segredo de alcova estava na boca
antipática, que assumiu proporções de beleza indescritível na intimidade
duma Luísa perplexa.
Além dessas armas secretas, o
moço portava um 38 cano longo de impor respeito, fazendo com que Luísa
aprendesse a tomar gosto pela coisa, deixando-se conhecer por todos seus
orifícios. |