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Clarices: uma homenagem,
livro organizado pelas professoras Fernanda Coutinho e Vera Moraes, pelo
aniversário de 50 anos do volume Laços de família e pelos 90 que
a escritora faria se estivesse viva, como o plural já sinaliza, traz
Clarice Lispector em vários rostos, tons e matizes. A coletânea foi
lançada em dezembro de 2011, no Centro Cultural Banco do Nordeste, no
mesmo dia da abertura da exposição Clarice: Retratos, com
curadoria de Fernanda Coutinho e Inês Cardoso.
Não apenas os contos do livro aniversariante constituem objeto de estudo
dos artigos, nem somente artigos falam da escritura de Clarice. São 540
páginas com 26 trabalhos acerca de seus contos, romances, crônicas,
biografias, e duas entrevistas feitas pelas organizadoras da coletânea
com pesquisadoras tutelares da obra clariceana: a brasileira Nádia
Battela Gotlib, autora de Clarice fotobiografia e Clarice: uma
vida que se conta; e a professora francesa, Nadiá Setti, responsável
por vários estudos sobre a obra da escritora na Sorbonne.
Dizer que os treze contos de Laços de Família já foram
exaustivamente estudados no Brasil e em outros países não é nenhum modo
de considerar os estudos acerca deles repetitivos, ao contrário, é uma
forma de mais se admirar as suas possibilidades de interpretação que não
se esgotam nunca e sempre conseguem surpreender o leitor. São 13 contos
centrados, tematicamente, no processo de aprisionamento dos indivíduos
através dos “laços de família”; 10 deles, notadamente, têm mulheres como
protagonistas, e falam de sua prisão doméstica, de seu cotidiano, de
suas formas de vida convencionais e estereotipadas. As narrativas
parecem focar a classe média carioca, numa visão desencantada e
descrente dos laços familiares, das convenções e dos jogos de interesses
que predominam nas relações.
O artigo que abre a coletânea Clarices, “En verdad, Clarice
Lispector”, de Aina Pérez Fontdevila, focaliza a escritura de Clarice,
fala sobre a crítica que vincula sua criação ao feminino, assegura-lhe
contornos míticos e faz a analogia escritura e corpo.
A mulher e o feminino são, inevitavelmente, as nuanças que mais se
desenham em seu mundo ficcional, as matizes maiores dos seus textos.
Assim, são também os leitmotivs de estudos mais constantes, como se pode
ler nos artigos: “Laços de uma outra ordem – uma análise bakhtiniana do
conto ‘Feliz aniversário’, de Clarice Lispector”, escrito por Gabriela
Lírio Gurgel, que faz uma enunciação dialética entre o psíquico e o
ideológico; vida interior e exterior. “Na dança de Eros e Thanatos:
movimentos de vida e morte em Laços de Família”, de Olga de Sá,
autora do livro A escritura de Clarice Lispector, se disserta sobre a
sensibilidade do feminino.
Em “Mulheres, baratas e coisas afins”, de Paulo Germano Barrozo de
Albuquerque, levantam-se também questões ligadas ao feminino e faz-se a
relação entre escrita e essência feminina nos textos dos livros
Correio feminino e Só para mulheres, ambos organizados por
Aparecida Nunes. Em “Inquietudes de ser mulher em Laços de Família”,
de Vera Moraes e Maria Elenice Costa Lima, analisam-se crônicas que
focalizam a mulher e centra-se a investigação na personagem singular
Pequena Flor, mostrando as relações eu versus outro e eu versus eu.
O leitor de Clarices se vê diante de um caleidoscópio de imagens
e significações inesgotáveis do universo feminino, desbravando novas
leituras e possibilidades de interpretação. No artigo “O verde úmido
subindo em mim: a mulher e a magia do jardim em Clarice Lispector”, Vera
Moraes analisa a crônica “O ato gratuito”, do livro A descoberta do
mundo, focalizando ainda outras crônicas da mesma obra, e os contos
“O Búfalo”, “Amor” e “Mistérios em São Cristóvão”, com apoio teórico de
obras de Walter Benjamim, Maurice Merleau-Ponti e Didi-Huberman,
resultando num belo estudo fenomenológico. Em “A hora perigosa da tarde
nos Laços de Família: Clarice Lispector e o movimento feminista”,
Nilson Dias perquire a busca da identidade, debatendo os confrontos
entre a mulher e seu mundo normativo, assunto reiterado praticamente em
todos os enredos.
“Três mulheres de Pedra ou de possíveis atalhos para um rompimento de
cerco – uma leitura do romance A cidade sitiada”, de Gilberto Figueiredo
Martins, por sua vez, enfoca as relações de alteridade na cidade, as
máscaras e os disfarces sociais no universo dos personagens, citando
críticos como Roberto da Matta, Regina Pontieri, Mary Del Priore,
Nicolau Sevcenko e atribuindo uma dimensão documental à obra.
A infância é outro tema visitado, em diferentes abordagens. Em “De
máscaras e desejo: infância na contística de Clarice Lispector”, Élcio
Luís analisa dois contos emblemáticos – “Felicidade Clandestina” e
“Restos de Carnaval” – num aporte psicanalítico do desejo infantil e dos
obstáculos a serem transpostos para a realização deles. “Clarice e a
infância jamais perdida”, de Fernanda Coutinho, resgata a Clarice
menina, nas ruas de Recife, para intuir as páginas lidas que encantaram
e viraram as palavras poéticas da escritora. São as vivências dos tempos
de criança que norteiam, de acordo com a professora, a criação
subsequente da escritora que enveredou pelas letras em tenra idade.
Já “Margens da alegria: a infância em ‘A menor mulher do mundo’”, de
Sarah Diva da Silva Ipiranga, associa surpreendentemente as reações de
Pequena Flor, a pigméia minúscula que tem medo de ser devorada, ao
comportamento infantil, embora já seja ela uma mulher e esteja grávida.
Embora, como já se disse, os artigos não se limitem à análise das
narrativas de Laços de Família, é dessa obra que surge a maioria
dos artigos, cujos enredos propiciam diálogos homoautorais, o que dá
unidade ao livro, pelas recorrências temáticas e ressignificações.
A análise do processo criador aparece à luz da Poética do devaneio,
de Gaston Bachelard, em “Poética e devaneio do processo criativo de
Clarice Lispector”, de André Luiz Gomes e Jean Claude Miroir. Nesse
esteio de análise da escritura, tem-se, ainda, “Devaneio e embriaguez
duma rapariga”: Clarice Lispector e a narração falsificadora”, de Ilza
Matias de Sousa, pesquisa embasada em teóricos como Gilles Delleuze,
Maurice Blanchot, Féliz Guattari, Jacques Derrida, Michel Foucault. “A
bruta flor do amor”, de Lúcia Castelo Branco, com base em textos de
Maurice Blanchot e Jacques Lacan, investiga os caminhos do leitor do
conto “Amor” e fala sobre as contradições dos sentimentos nele
existentes. Em “’Mistério em São Cristóvão’ ou os mascarados e a mocinha
do fio branco”, de Odalice de Castro Silva, destacam-se os jogos de
linguagem e esconde-esconde da autora de ‘escrita insidiosa’, que
constantemente escamoteia a relação entre vida e Literatura.
“A menor mulher do mundo e outras mulheres nos laços narrativos de
Clarice Lispector”, de Ângela Fernandes de Lima” focaliza 4 contos – “A
menor mulher do mundo”, “Uma galinha”, “Feliz aniversário” e “A imitação
da rosa”, mostrando a relação eu versus o outro e centrando parte da
análise na figura da personagem Pequena Flor, a mais diferente das
mulheres clariceanas.
Em “O teatro da crueldade e o animal – escrita na fábula da modernidade
clariceana”, Ilza Matias de Sousa e Maria Eliane Sousa da Silva analisam
os devires, com base em Maurice Blanchot, Antonin Artraud, Gilles
Delleuze e Félix Guattari। Em “Nem tanto a Ulisses nem tanto a Penélope:
a sobrevivência do mito em Clarice Lispector” de Maria Aparecida
Ribeiro, resgatam-se os significados dos mitos na associação entre os
personagens de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres a Ulisses
e Penélope, da epopeia Ilíada, de
Homero.
Saindo das obras para a vida, mas perquirindo sempre a criação
literária, “Essa coisa íntima que está sempre queimando em Lúcio e
Clarice”, de Teresa Montero, autora da biografia Eu sou uma pergunta
(1999), fala sobre a amizade entre Lúcio Cardoso e Clarice Lispector,
suas influências e trocas de afetos.
O diálogo da literatura com outras linguagens, por meio do texto
clariceano, aparece nos artigos de Ermelinda Ma. Araújo Ferreira (“Sujos
quintais com tesouros: escrita e riprografia em CL”), que investiga
escrita e riparografia, fazendo a equiparação da escrita clariceana à
riparografia da pintura; e no de Taciana Oliveira, “Acordes para um
roteiro”, que disserta sobre o filme “A descoberta do Mundo”, dela em
parceria da cineasta com Teresa Montero, biógrafa de Clarice; a proposta
é, no filme, tecer o diálogo da obra com a autora. Já “Clarice por trás
da objetiva” é uma resenha sobre o livro Clarice fotobiografia, de Nádia
Gotlib, feita por Ricardo Iannace, acerca da cronologia de fotos
publicadas no volume.
É interessante, também, ler crítica sobre a crítica, - “O leitor sitiado
e a renovada experiência da leitura: uma crítica que se conta”, de Diana
Junkes Martha Toneto, faz uma leitura crítica do livro Clarice: uma vida
que se conta, de Nádia Gotlib. Por último, sabe-se acerca do catálogo da
coleção Clarice Lispector do Instituto Moreira Sales, bem exposto por
Fábio Frohwein, com o inventário de todos os arquivos, correspondências,
documentos sonoros, pinturas, fotografias e obras.
Clarices: uma homenagem é um marco na fortuna crítica da obra de
Clarice Lispector e se afirma, desde seu lançamento, como um livro
fundamental acerca da diversidade e complexidade do texto clariceano bem
como de sua vida mitificada e ilusoriamente compreensível por meio dos
seus escritos. |