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Neste início de século XXI
vivenciamos perigosos revisionismos históricos com o intuito de suavizar
imensas tragédias da história da Humanidade, que encontram espaços
generosos nos veículos de comunicação dominantes em uma procura
incessante para silenciar as vozes de pesquisadores comprometidos com os
estudos pós-coloniais, desveladores de visões que desmascaram os cínicos
e hipócritas discursos hegemônicos.
Vários são os agentes nos países
pós-coloniais nas diversas áreas do saber e das artes a lutarem contra a
história oficial de suas nações. No continente africano essa situação é
ainda mais grave, dentre vários motivos, em razão do recente processo de
soberania desses países, principalmente as ex-colônias de língua
portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e
Príncipe.
Atento ao tempo em que vive e às
mazelas que uma perniciosa amnésia induzida em relação à representação
do colonialismo em África, o artista plástico e também escritor Tchalê
Figueira elaborou a recente série de pinturas intituladas “Breve
História Colonial em África”, na qual procura resgatar terríveis
passagens vivenciadas pelos africanos na virada do século XIX para o XX.
Atendendo sugestão de G. T. Didial,
um dos heterônimos de João Manuel Varela, Carlos Alberto Silva Figueira
passa a usar o nome Tchalê (nome pelo qual é conhecido pelos moradores
de sua cidade) para designá-lo. Nasceu em 1953, no Mindelo, ilha de São
Vicente, Cabo Verde. Aos 17 anos, em meio às guerras de libertação nas
colônias africanas dominadas por Portugal, em um ato de rebeldia, Tchalê
decide sair clandestinamente de Cabo Verde para não servir ao exército
fascista português e assim lutar contra seus pares. Ruma a Roterdã, na
Holanda, mas pouco tempo aí permanece. Viaja pelos mares da Europa à
Ásia e às Américas. Em 1974, fixa-se na cidade da Basileia, Suíça, onde
frequenta a escola de belas-artes e torna-se artista plástico. Retorna
ao Mindelo somente em 1985 onde encontra-se até hoje. Atualmente é um
dos mais prestigiados artistas plásticos de Cabo Verde com obra
reconhecida por diversos países. Além disso, já possui uma considerável
obra literária com os seguintes livros de poesia: “Todos os náufragos do
mundo” (1992), “Onde os sentimentos se encontram” (1998) e “O azul e a
luz” (2002); enquanto em prosa publicou “Ptolomeu e a sua viagem de
circum-navegação” (2005), “Solitário” (2005) e “Contos da Basileia”
(2011).
Acompanho com extremo interesse as
obras plásticas e literárias de Tchalê Figueira através de seu blog
“Arco da Velha” – tchale.blogspot.com – ou por redes sociais como o
Facebook. Tchalê é um artista inquieto, indignado e revoltado com as
injustiças de diversas ordens, principalmente as motivadas por
políticos, e não deixa de expor suas opiniões com veemência. Essa
vontade de manifestar-se a favor dos oprimidos acompanha suas pinturas,
tornando-se uma característica costumeira. Estão lá representados os
homens e mulheres marginalizados da cidade do Mindelo, na sua rua da
Praia. Prostitutas, bêbados, traficantes, pescadores, pessoas ociosas do
cotidiano e esquecidas pelo poder público, mas que ganham
representatividade em suas telas. Uma pintura expressionista em suas
formas distorcidas da figuração humana – geralmente em primeiro plano –,
muitas vezes agressivas na denúncia social, em outras ocasiões
apresentam-se irônicas, como também podem ser alegres nas celebrações
festivas do cabo-verdiano. Suas cores obedecem a recusa de representação
do real típica do fauvismo francês. Os fundos de suas telas costumam ser
grandes manchas de cor, abstratizantes e de gestualidade agressiva como
os melhores nomes do expressionismo abstrato, dentre tantos, Clifford
Stills, são indefinidos e com a intenção de destacar a presença da
figuração humana, pois é do homem que a obra deste mindelense se
preocupa. Ou seja, Tchalê Figueira possui uma identidade plástica, ou
como afirmou G. T. Didial: “há nestas obras uma linguagem própria e uma
visão de mundo” (DIDIAL, 1999, p. 98). Traço característico e temáticas
de forte contundência social são marcas nas telas deste grande pintor.
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A partir de 1860 o continente
africano sofre com os violentos ataques dos europeus, favorecidos por
tecnologia bélica avançada à época, que Tchalê Figueira representa nas
abomináveis figuras de Leopold II (Anexo I), rei da Bélgica, e
incentivador das atrocidades cometidas no Congo, seguidas pelo
desbravador e sanguinário Henry Stanley, representado na pintura “Henry
Stanley, o monstro” (Anexo II) e “Stanley Cap” (Anexo III), para quem
“os selvagens apenas respeitam a força, o poder, a audácia e a decisão”
(SERRANO, WALDMAN, 2008, p.216), e pelo não menos abominável Guillaume
Van Kerckhoven (Anexo IV) e do odioso Otto Von Bismarck na pintura
“Clube alemão das colônias – Peitche und Zuken Brot” (Anexo V), um dos
articuladores da Conferência de Berlim.
Nas telas representativas desses
repugnantes seres humanos, Tchalê recorre ao uso do texto para não
deixar dúvidas sobre quem está representado. Para além da denúncia,
salienta-se o caráter didático e necessário para que esses protagonistas
do genocídio étnico não sejam rasurados da história africana. A
representação da força e da soberania na figura ornada com suas patentes
e designações reais de Leopold II (Anexo I), seu sorriso sádico em rosto
típico de máscara africana, contrastam com o pavor dos africanos mortos
e da presença predominante do vermelho a sangrar nosso olhar, a
esquartejar nossa memória, e a partir daí, a retomada de consciência de
um passado desesperador que a História não pode apagar. O pintor reflete
em expressões hostis e sorrisos expondo carnívoros dentes as violentas
ações desses monstros no período colonial. Aliás, de um modo geral, os
sorrisos perversos com dentes escancarados são caracterizadores na obra
plástica de Figueira dos líderes repressores da história da Humanidade
em suas diversas facetas.
As expressões reveladas nas
pinturas de Tchalê demonstram o ódio pelos africanos e o prazer que
essas figuras tinham em cumprir as suas cruéis missões. Pinturas
agressivas, todavia, jamais ultrapassariam os atos violentos motivados
por seus personagens, que, infelizmente, foram reais. E trata-se de uma
realidade para a qual não devemos esquecer. Homens que acompanharam o
histórico de violência do tráfico negreiro e confirmaram a banalização
de atos cruéis aos negros africanos. Cabe a lembrança de um artista ao
qual a obra de Tchalê Figueira dialoga com frequência, e nessa série em
especial, o inglês Francis Bacon, que também utilizava um expressionismo
enfurecido para retratar a violência do cotidiano: “Quando trago a
violência para pintura, dizia ele, não se trata da violência da guerra,
mas, da violência da realidade por si mesma.” (SYLVESTER, 2007, p. 81).
Violência exacerbada na
representação de sadismo e prazer no sorriso de Guillaume Van Kerckhoven
(Anexo IV), com sua pose de satisfação em traje militar a exibir todas
as suas medalhas ao cumprir a missão de exterminar negros, em
contraponto às expressões aterrorizadas de incontáveis rostos de negros
amontoados. Nesta pintura, Tchalê Figueira para demonstrar a imensa
quantidade de africanos mortos utiliza um procedimento comum e
consagrado na pintura do artista plástico moçambicano Malangatana
Valente. Malangatana tinha como característica representar uma
quantidade impressionante de pessoas espremidas em suas telas,
comprimidos no espaço asfixiante da superfície pintada a revelar-nos a
irracionalidade e desumanidade do colonialismo, e da desestabilização
oriunda da opressão em cores contrastantes e impactantes. Para esta
pintura de Tchalê resgato palavras de Mia Couto a respeito da pintura de
Malangatana que encaixam com perfeição ao mostrado pelo mindelense:
Estes rostos repetidos até a exaustão do espaço,
estas figuras retorcidas por infinita amargura são imagens deste
mundo criado por nós e, afinal, contra nós. Monstros que julgávamos
há muito extintos dentro de nós são ressuscitados no pincel de
Malangatana.
Ressurge um temor que nos atemoriza porque é o
nosso velho medo desadormecido. Ficamos assim à mercê destas visões,
somos assaltados pela fragilidade da nossa representação visual do
universo. (...)
No seu traço está nua e tangível a geografia do
tempo africano. No jogo das cores está, sedutor e cruel, o feitiço,
(...)
Estes bichos e homens, atirados para um espaço
tornado exíguo pelo acumular de elementos gráficos, procuram em nós
uma saída. A tensão criada na tela não permite que fiquem confinados
a ela, obriga-nos a procurar uma ordem exterior ao quadro. Aqui
reside afinal o gênio apurado deste ‘ingênuo’ invocador do caos,
sábio perturbador das nossas certezas. (SECCO, 2003, pp. 224-225)
Como é possível conferir, as
assustadoras imagens desses tristes representantes do colonialismo
europeu não são mais horríveis do que as atitudes desumanas praticadas
durante a conquista militar do continente africano. Figueira
simplesmente transfere para suas pinturas as assombrosas ações do
colonizador em África. A lembrança de Leopold II não é gratuita, pois
promoveu um banho de sangue durante a ocupação do Congo em proporções
maiores que o holocausto nazista, e está muito bem representado na
pintura do cabo-verdiano. Escorro-me nas afirmações do historiador
cubano Carlos Moore para lembrar que o Congo foi o “único caso de um
país que fora incorporado à potência colonizadora como propriedade
pessoal do chefe de Estado” (MOORE, 2009, p. 30). Ainda de acordo com o
Moore, em 76 anos de colonização belga no Congo (1884-1960), estima-se
que pereceram 25 milhões de pessoas. A violência desmedida – irracional
define melhor – da colonização belga ultrapassa o absurdo, como podemos
analisar na passagem abaixo incluída no livro de Moore e que se encontra
no Wikipedia:
Para impingir as cotas de borracha, a Force
Publique (Força Pública) foi instituida: de uso corrente, policiais,
na sua maioria eram canibais do Lualaba. Armados com armas modernas
e chicote. A “Força Pública” rotineiramente pegava e torturava
reféns (na maioria mulheres), açoitavam, estupravam, incineravam
aldeias e, acima de tudo, extirpavam mãos humanas como troféus
mostrando que, quando as cotas não eram cumpridas, não estavam tendo
vontade o suficiente de cumprir.
Um oficial branco de baixa patente descreveu uma
incursão para punir uma aldeia que havia protestado. O oficial
branco em comando: "Ordenaram-nos a cortar as cabeças dos homens e
as pendurar nas cercas da aldeia, bem como seus membros sexuais, e
pendurar as mulheres e crianças em forma de cruz". Após ver um
íncola morto pela primeira vez, um missionário dinamarquês escreveu:
"O soldado disse: 'Não leve muito a sério. Eles matam 'a nós' se não
levarmos a borracha. O comissionário nos prometeu que se tivermos
muitas mãos, ele encurtará nosso serviço'" Nas palavras de Peter
Forbath:
“As cestas de mão cerradas, postas aos pés do
chefe de posto europeus, tornaram-se o símbolo do Estado Livre do
Congo. (...) A coleção de mãos se tornou um fim em si mesmo. Os
soldados da “Força Pública” as traziam em vez da borracha; eles até
mesmo iam colhê-las em lugar de borracha (...) Elas tornaram-se um
tipo de moeda. Elas são usadas para amenizar o déficit das cotas de
borracha, substituir (...) o povo ao qual é exigido trabalhar para
as gangues de trabalhos forçados; e os soldados da “Força Pública”
tinham seus bônus pagos de acordo com quantas mãos eles coletavam. ”
Em teoria, cada mão direita provava um
assassinato judicial. Na prática, soldados “trapaceavam”,
simplesmente cortando a mão e deixando a vítima para viver ou
morrer. Numerosos sobreviventes relataram que eles viveram além de
um massacre fingindo de morto, não se movendo nem mesmo quando
tinham suas mãos serradas. E esperavam os soldados partirem para
então procurar socorro.
Estimativas do total das chacinas variam
consideravelmente. O relatório famoso 1904 do diplomata britânico
Roger Casement aponta para 3 milhões apenas nos 20 anos que o regime
de Leopold durou; Forbath, no mínimo 5 milhões; Adam Hochschild 10
milhões; a Enciclopédia Britânica estima um declínio populacional de
20 ou 30 milhões para 8 milhões. (grifos do autor) (MOORE, 2009, p.
30-32)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_Livre_do_Congo
A mutilação, a violência sexual e
a matança indiscriminada de africanos foi uma prática comum em
praticamente todo o continente africano. Milhões de negros foram mortos
com sadismo e voracidade jamais vistas. Tchalê retrata a escravidão e o
estupro feito com frequência nas mulheres negras, denunciando o caráter
violento e forçado do início da miscigenação, principalmente nas
colônias portuguesas, como mostram as pinturas “Violação I” (Anexo VI) e
“Violação II” (Anexo VII). O detalhe para as expressões de horror e
resignação dos oprimidos, assim como o vermelho dos corpos em analogia
às batalhas desiguais travadas em solo africano que dizimaram um número
incalculável de vítimas.
O historiador Joseph Ki-Zerbo é
enfático ao afirmar o que os negros africanos vivenciaram a partir do
tráfico negreiro e durante o período da colonização com o incontornável
apoio da Igreja Católica:
Nenhuma coletividade humana foi mais
inferiorizada do que os negros depois do século XV. Foram
encomendados escravos negros aos milhões; utilizaram-se os negros
como reprodutores de outros negros, em “coudelarias” constituídas
para reproduzir novos negrinhos para o trabalho nas plantações.
Quantas crianças africanas foram jogadas dos navios, ou abandonadas
nos mercados escravos, longe das mães que eram levadas, porque era
preciso muito tempo para alimentá-las até que fossem exploráveis? Os
escravos eram comprados às toneladas. Amputava-se e esquartejava-se
como carne bruta os rebeldes ditos “negros castanhos”. Durante esse
tempo, na Europa, os teólogos debatiam doutamente a questão de saber
se os negros tinham alma. Foi uma pergunta que não se fez a
propósito de outros grupos humanos (KI-ZERBO, 2009, p. 24).
Como este texto procura desvelar
as atrocidades aos povos do continente africano, salientamos que as
colonizações realizadas pela Bélgica e Portugal foram marcadas pela
violência extrema, em razão da
estrutura capitalista débil
na comparação com países como a França e a Inglaterra, viram-se
obrigados a recorrer a uma brutalidade maior, e não menor, no trato
das populações dominadas. Isso porque, destituídos de capacidade de
implantar sistemas dotados com maior composição orgânica de capital,
tinham de recorrer, para competir com um mínimo de eficiência diante
de nações capitalistas mais desenvolvidas, a todas as formas
possíveis de coerção, inclusive as que se aproximavam da escravidão
(SERRANO; WALDMAN, 2008, p.221).
Para além dos assassinatos em série cometidos
sob a liderança de Henry Stanley, não devemos esquecer a criação das
famigeradas legiões estrangeiras pela França e pela Espanha, ambas
marcadas pela agressividade no trato das populações africanas e pela
longa folha de serviços prestada ao domínio colonial (SERRANO, WALDMAN,
2008, p.216).
Carlos Moore chama atenção para a
limpeza étnica ocorrida no continente africano durante a colonização.
Moore afirma que “muitos continuam ignorando ou minimizando o fato de
que a colonização da África foi um verdadeiro genocídio contra a raça
negra” (MOORE, 2009, p. 29). Por isso, a importância desta série de
intervenção realizada com furor expressionista e indignação por Tchalê
Figueira.
A Conferência de Berlim
(1884-1885) marca o auge da supremacia europeia no continente africano
após diversos e sangrentos conflitos onde milhares de vidas foram
ceifadas em nome da civilização, da fé e do progresso branco europeu. O
desprezo aos africanos e a prepotência colonizadora foi de tal ordem que
pode ser sentido na declaração do britânico Lord Salisbury a respeito da
partilha realizada: “Traçamos linhas sobre mapas de regiões onde o homem
branco nunca tinha pisado. Distribuímos montanhas, rios e lagos entre
nós. Ficamos apenas atrapalhados por não sabermos onde ficavam estas
montanhas, esses rios e esses lagos” (SERRANO; MUNANGA, 1995, p. 6. Apud:
SERRANO, WALDMAN p.212).
A prepotência europeia é retratada
na pintura “Com régua e esquadro dividiram o cake” (Anexo VIII), que de
forma impactante representa a arbitrariedade do encontro dos países
imperialistas assinalados nas cadeiras e do caos civilizador imposto aos
africanos. A violência das figuras ilustradas na parte inferior da
pintura pode representar a caótica situação e o desespero que se
apoderou dos africanos desde o período do tráfico negreiro, alimentado
por conflitos criados pelos invasores europeus entre as etnias africanas
para assim enfraquecê-las e atingirem com maior rapidez os seus
objetivos nefastos. Por outro lado, os colonizadores disputavam entre si
as terras africanas. Nesse sentido, deve-se recordar o momento ruim de
Portugal com economia fragilizada e pressionado pela Inglaterra, nação
hegemônica da época, que
rifou o projeto português do mapa cor de rosa, pelo qual os
territórios entre Angola e Moçambique, correspondendo aos atuais
Zimbabwe, Malawi e Zâmbia, constavam como um domínio dos lusos.
Portugal foi obrigado a recuar diante das pressões britânicas e da
ameaça de guerra entre os dois países (1890). (SERRANO; WALDMAN,
2008, p.210-211)
O mapa
do terror da ganância europeia foi dividido desconsiderando quaisquer
opiniões de líderes africanos e assim demonstrado pela pintura voraz de
Figueira em “Assim estava dividido o cake” (Anexo IX). As caveiras
fantasmagóricas mostram o estado de espírito do continente africano.
Novamente o caráter didático a mostrar a partilha realizada pelos
colonizadores, revelando a maneira acintosa a qual o continente foi
subjugado. Vale salientar o destaque à Etiópia, única nação que
conseguiu manter sua soberania ao preço de muito sangue e de vidas de
seus cidadãos:
Essa
partilha do continente africano não foi bem digerida por Alemanha e
Itália, nações atrasadas em seus processos de unificação, por
conseguinte, ficaram com colônias menores. As grandes faixas de terra
sob dominação portuguesa foram motivo de interesse dos alemães, por
exemplo. Para retratar este temor de um eventual ataque alemão às
colônias, verificamos a aflição do pré-claridoso Pedro Cardoso n’As
Crónicas do AFRO, publicada no jornal A Voz de Cabo Verde de 8 de abril
de 1912, e sua posição ambígua em relação ao colonizador luso em uma
possível tomada das colônias portuguesas em África pelos alemães:
A armipotente Alemanha, fechando os olhos à
conquista da Tripolitana pela sua amiga e aliada transalpina
entendeu-se com a França sobre o Marrocos, com a Espanha sobre
Fernando Pó, Guiné Espanhola e, quem sabe? sobre Portugal e agora
quer entender-se com a Inglaterra...
Todos esses entendimentos visaram desde o seu
início as possessões portuguesas. A esperta chancelaria leutónica
tem procurado pela condescendência e satisfação às ambições das
potências rivais assegurar que a premeditada rapinagem do Ultramar
português se faça sem protesto (...)
Quem escreve estas linhas nasceu em África mas
é português, não só pela bandeira como pelo sentimento e sangue.
(...) apesar de saber – pelo confronto – que a
administração alemã oferece mais certas garantias de progresso às
colónias no estado e circunstâncias portuguesas, não posso fazer
calar o meu coração. Não posso conformar-me à horrorosa ideia de que
serei obrigado a não falar, a não cultivar esta formosíssima língua
toda feita de harmonia e doçura, em que balbuciei as minhas
primeiras canções, destronada, substituída por aquela que escreve
Goeth, é certo, mas sabendo a cerveja, desarmoniosa, gutural e
arrepiante, como o cavo rugir do urso, ou como o horrendo gargalhar
da estrige agoirenta.
Não! Antes mil vezes o pobre e lusitano do que
rico e alemão. Não!
(BRITO-SEMEDO; MORAIS, 2008, p. 132)
Com a colonização implantada no continente, valores
ocidentais distantes dos africanos passam a ser implantados. Eles perdem
completamente poderes político, econômico e militar. Seguem décadas de
violência e racismo declarado, o homem branco europeu escora-se nas
deploráveis teorias positivistas de supremacia racial e inferioridade do
negro predominantes na derradeira metade do século XIX, subjugando os
africanos ao que havia de mais tenebroso na espécie humana. Para Joseph
Ki-Zerbo:
A colonização foi muito mais curta do que o
tráfico negreiro, mas foi mais determinante. O colonialismo
substituiu inteiramente o sistema africano. Fomos alienados, isto é,
substituídos por outros, inclusive no nosso passado. Os
colonizadores prepararam um assalto à nossa história. O ‘pacto
colonial’ queria que os países africanos produzissem apenas produtos
em bruto, matérias-primas a enviar para o Norte, para a indústria
europeia. A própria África foi aprisionada, dividida, esquartejada,
sendo-lhe imposto esse papel: fornecer matérias-primas. Esse pacto
colonial dura até hoje. (KI-ZERBO, 2009, p. 25)
Para justificar a sua postura, o colonizador
escora-se na arrogância e na prepotência, elevando os seus feitos e
rebaixando tudo o que for relacionado ao colonizado, sendo este atingido
moral e fisicamente, conforme diz Memmi:
Como pode a usurpação passar por legitimidade?
Duas operações parecem possíveis: demonstrar os méritos eminentes do
usurpador, tão eminentes que clamam por semelhante recompensa; ou
insistir nos deméritos do usurpado, tão graves que não podem senão
suscitar tal desgraça. E esses dois esforços são de fato
inseparáveis. Sua inquietude, sua sede de justificação exigem do
usurpador, ao mesmo tempo, que se eleve a si mesmo até as nuvens e
que afunde o usurpado mais baixo que a terra. (MEMMI, 2007, p.
57)
Como sequência a esse pensamento,
o ódio do colonizador age com extrema brutalidade, impõe suas certezas e
frisa as diferenças que justificam a submissão do colonizado:
Utilizará para descrevê-lo as cores mais
sombrias: agirá, se for preciso, para desvalorizá-lo, para anulá-lo.
Mas não sairá jamais deste círculo: é preciso explicar a distância
que a colonização estabelece entre ele e o colonizado; ora, a fim de
justificar-se, é levado a aumentar mais ainda essa distância, a opor
irremediavelmente as duas figuras, a sua tão gloriosa, a do
colonizado tão desprezível. (MEMMI, 2007, p. 58)
Retomo Ki-Zerbo para demonstrar como era o ensino nas
colônias, comum a todas elas, legando ao ostracismo a história e a
cultura dos povos autóctones:
(...) a história africana era desconhecida.
Fiz todos os meus estudos no âmbito francês, com manuais franceses.
Não havia nada no programa que tratasse da África. Ainda pequenos,
tínhamos de utilizar um livro de História francês que começa assim:
“Nossos antepassados, os gauleses...” Repetimos maquinalmente o que
queriam inculcar-nos. (KI-ZERBO, 2009, p. 14)
Esse colonizador, representante da civilização
europeia, demonstrou a pior faceta do homem perante o seu semelhante
durante o período da colonização e fez (e faz) do racismo a principal
arma para massacrar os africanos. Esse mesmo “bárbaro civilizador”
(Anexo X) que caçava, matava ou traficava animais (Anexo XI) da
diversificada fauna africana e que permanece com a sua sanha usurpadora
das riquezas minerais de todo o continente africano (Anexo XII), agora
com a máscara do neoliberalismo, ou o neocolonialismo.
Entretanto, boa parte dos africanos jamais aceitou a
dominação colonial, exceto as elites vassalas que mantinham a posição
subalterna perante o colonizador branco. O racismo à população negra,
tanto em África quanto na diáspora, estimulou o surgimento de dois
movimentos de alcance mundial: a negritude e o pan-africanismo. Esses
dois movimentos tiveram suas ressonâncias na política, na literatura, na
história e em demais áreas do conhecimento. Seus líderes e simpatizantes
foram agentes históricos em prol do fim do colonialismo em África, por
conseguinte, da independência dos países africanos e contra a
discriminação racial ao negro no restante do mundo. Esses dois
movimentos estimularam líderes cativantes e a população de negros a
reivindicar e lutar pela libertação dos países africanos, com maior
ênfase a partir do fim da II Guerra Mundial e consequente
enfraquecimento dos países europeus. As batalhas pela descolonização
foram sangrentas, trazendo a morte para milhões de africanos. Somente de
líderes pan-africanistas, Carlos Moore enumera 37 nomes assassinados
“entre 1957, data da independência de Gana, e 1987, data do assassinato
do último dirigente declaradamente pan-africanista, Thomas Sankara”
(MOORE, p. 48). Mas o processo era irreversível, a História foi feita e
a duras penas os países africanos conseguiram eliminar o famigerado
colonialismo. Infelizmente, as novas nações dizimadas por séculos de
opressão e usurpação ainda sofrem as consequências do atraso e muitas
estão hoje enfrentando as imposições da política neoliberal e das
grandes empresas que praticamente dominam as economias dos países mais
ricos do mundo.
Conclui-se que na crueldade retratada na série “Breve
História Colonial em África”, o artista e ativista Tchalê Figueira crê
na função social da arte como reveladora de vozes adormecidas,
escancarando as feridas, sangrando as vísceras do passado colonial de
injustiças que se perpetuam no presente, incomodando os olhares daqueles
que desejam o esquecimento das atrocidades desse período. Por outro
lado, pinceladas como facas a esquartejar as mentes obliteradas dos que
não tiveram acesso ou foram obstruídos em sua instrução a esse triste
passado colonial, ainda sangrento na crueldade dos dias contemporâneos
em África. Pinturas a clamar liberdade e o direito à vida, suprimido de
boa parte dos africanos. Pinturas de um humanista ao extremo, seguidor
da “postulação irritada da fraternidade” de Aimé Cesaire e parafraseada
pelo poeta cabo-verdiano Mário Fonseca. Pinturas que pretendem resgatar
a história de sofrimento e dor dos africanos, assim como resgatar o
necessário sentido solidário, político, denunciador e combativo do
pan-africanismo. Tchalê segue uma tradição de obras de arte
denunciatórias contra a Humanidade explicitada em Pablo Picasso com
Guernica e as obras feitas durante a II Guerra Mundial, Francisco Goya e
a série de gravuras Desastre da Guerra, e as pinturas de Malangatana
Valente durante o período colonial em Moçambique e durante a guerra de
desestabilização já com a nação independente. Tchalê Figueira integra um
grupo de homens cada vez mais raros. Dos inconformados.
Encerro com um poema deste pintor-poeta Tchalê Figueira:
Do lado neutro da trincheira
Contempla a tua obra!...
Canta!... Glorifica teus mortos
Vê as suas frias camas
De poeira vermelha
Corpos radioactivos
Crianças deformadas,
Rostos empobrecidos em urânio
Cabeças rapadas
Hospital de angústias
Mercenários rugindo
Alfabeto de mortos
Artéria podre do paraíso
África encharcada de vírus
Coreografia abominável
Petróleo de sangue
Diamantes brilhantes
Em dedos de abutres.
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