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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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(Entrevista a Nicolau Saião, em roda numa tarde de
Verão)
Em geral os gastrónomos dizem que um vinho
tinto se deve consumir à temperatura ambiente. Sem os querer
contrariar acho que a frescura também não lhe faz mal nenhum. Se
os acompanhamentos forem de boa cepa alentejana muito rural,
então cresce a razão do que digo. |
NICOLAU SAIÃO
AS MORADAS COLORIDAS
Um trio de quatro
Fotos (de Portalegre) de Mariana Garção |
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Sempre que venho a Portugal tenho por
hábito passar pela cidade que se acomoda nas faldas de São
Mamede. Pelo enquadramento do lugar, mas também pelos amigos que
lá tenho, “velhos” companheiros de muitos anos desde que,
primeiro na Orada e depois em Portalegre, fiz por ser um
observador atento das letras e artes: o Jorge Seminário, o
Cachuda, o Bartolomeu dos anzóis que nunca falhava uma pescaria
na barragem da Póvoa ou em Montargil, o Américo que vendia leite
bem cedo, de manhãzinha quando éramos estudantes, o Perua…
Muitos deles partiram para outras
paragens, algumas de tal modo afastadas que nunca mais voltaram
(falecidos). Outros mudaram de aparência e quase que me custa
reconhecê-los. Quem me vai dando notícias intermitentes é este
amigo que, com outros amigos recentes, mais uma vez
“entrevistei” para não me destreinar.
Em volta duma mesa bem composta, fomos
trocando ideias. E o resultado aqui está.
Manuel
Caldeira/Joaquim Simões/Jorge Perestrelo |
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TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Joaquim Simões
(JS) – Antes de começarmos propriamente nas artes & letras, deixe-me
perguntar-lhe porque é que nunca procurou ir viver num meio maior e
potencialmente mais favorável a um artista. Foram acasos da vida ou foi
deliberado?
NS
– Acho que foi uma
mistura dos dois. Aí pelos fins de 70 ainda pensei em arranjar trabalho
na capital. Para ser mais exacto na região do Montijo pois tinha lá
pessoas amigas e familiares perto de Lisboa. O ambiente societário
portalegrense era sufocante, estava em sedimentação uma espécie de
tomada do poder por diversos sectores de oportunistas com cobertura
política que beiravam, no mínimo, a criação de verdadeiras bolsas de
arrivismo e mesmo de corrupção ética apoiadas numa intricada rede de
compadrios e interesses que tinham ficado do regime anterior e que,
habilmente, tinham conseguido camuflar enquanto durou a confusão do PREC.
Mas o contacto
pessoal e artístico com o Mário Cesariny e os seus habituais
companheiros e amigos, dissuadiram-me. Eles aconselharam-me e ainda bem
que os ouvi, a manter-me por aqui e deixar passar o pior da “trovoada”,
pois as coisas na grande Lisboa não iam melhores, por vezes ainda eram
piores. De modo que me fui aguentando no emprego que tinha conseguido
arranjar depois de ter sido “saneado”, como então se dizia, de
chefe-de-redacção e administrador-delegado do semanário “A Rabeca”, por
me opor à censura e outros manejos dos indivíduos que haviam tomado
conta do periódico e que estavam ligados ao PC e ao MDP. Estive uns
tempos desempregado e com subsídio da Segurança Social, pois não pudera
voltar à Meteorologia.
Foi por essa altura
que sujeitos de certos meios políticos, aliás com repúdio de outros e da
população, que sempre me estimou, tentaram dar-me como reaccionário e,
mesmo, como “bufo da Pide”, numa manobra típica dessa gente que nunca
olhou a meios para atingir os seus fins. Curiosamente foi Álvaro Cunhal
quem, correspondendo a um “desabafo” do Dr. Feliciano Falcão, comunista
portalegrense histórico e amigo de José Régio, teria dado indicação aos
energúmenos daqui para me deixarem em paz. Feliciano Falcão merecia-lhe
todo o crédito e se era meu amigo era porque eu não devia ser tipo “a
abater”… Outros, antigos fascistas reciclados em “democratas”, por seu
turno tentavam dar-me como perigoso subversivo, quiseram a todo o custo
colar-me o rótulo de anarquista e de ateu, chegaram mesmo a enviar
recados ao director do jornal onde eu costumava escrever, “O Distrito de
Portalegre” (depois arruinado por gente sem merecimento), para que me
denunciasse ao bispo!
Depois o tempo foi
correndo, o meu quotidiano foi-se consolidando, os filhos estavam a
crescer e a minha mulher foi progredindo na sua carreira e as coisas
como de resto no país foram mudando, de modo que nunca mais pensei em
abalar de cá.
Posteriormente ainda
tive alguns problemas, nomeadamente graves actos de difamação veiculados
por um periódico local, os quais foram resolvidos em tribunal de
relação, pois no de primeira instância quiseram macular o caso numa
jogada típica de uma região com leis tendenciais.
Mas o meu caminho
estava traçado, tanto por cá como através de incursões pelo estrangeiro
que os invejosos e medíocres locais já não conseguiram entravar
decisivamente, ainda que a marginalização, até ilegal, tenha continuado
com a complacência de certas autoridades.
Mas já não tem
verdadeiro efeito no meu dia-a-dia, ainda que certos intriguistas, um
dos quais um comprovado burlão que desmascarei um dia, tenham tentado
sujar-me junto do povo lagóia.
Manuel Caldeira (MC) -
Neste momento como vês a literatura, em Portugal e lá fora?
NS
– Tenho, em parte, uma certa dificuldade em te responder. Por estranho
que pareça creio que estou melhor informado sobre a escrita que se faz
lá fora do que a que existe portas adentro. Pela simples razão de que me
é mais favorável comprar livros por preço razoável em Espanha ou nos
leilões da Net…E aí há mais livros de literatura estrangeira que
nacional. Daí que, em termos de presença no terreno me sinta
ligeiramente incapaz de saber com pormenor, por ter lido, o que cá se
vai escrevendo.
Dito isto e com todo o respeito real, acho que a literatura portuguesa
continua a ter, no geral, um certo cenário de existência visando a “melhoria
de vida”, a “ascensão a lugar de relevo” de muitos dos seus
protagonistas. A meu ver há gente que escreve porque isso é uma
inevitabilidade propiciada pelo crescimento da alfebetização… Estão
condenados a escrever assim como a melhoria de vida em terras
pequenas condenou outros a tomar banho todos os dias…Basta ver-se
o espaço internáutico… Proliferaram os blogues, a literatura
desses meios, com gente que depois punha em letra de forma o que
congeminara nesses espaços e que com terrível frequência era dos
continentes da flatulência ou da pura pedantice suavemente acéfala. Pelo
meio, felizmente, havia e há coisas de merecimento, mas o saldo é
maioritariamente de fugir…
Creio que tal corresponde a uma crise de crescimento num país durante
muito tempo analfabetizado. Não devemos admirar-nos.
Portanto, se a literatura corresponde a algo que de facto está além da
busca de “notoriedade qualificada”, de incontornável como parece
dever ser o seu leit-motiv interior, a pouco e pouco as “public
relations” irão perdendo a partida e encarquilhando-se até
definharem com a subida do carácter dos operadores aventurosos.
Tenho lido alguns livros que me satisfazem: lembro o livro de viagens
“Baía dos Tigres” por exemplo, os poemários “Chão de papel” e “Poemas de
Caravaggio” (incluindo o prefácio), um livro de memórias “Bilhete de
identidade”, um que outro ensaio histórico ou literário…
Da escrita estrangeira, que como disse conheço melhor, salientaria
livros como “El candidato de Dios”, de Enrique Moriel, que vem na
sequencia de um must anterior, “La ciudad sin tiempo”, obras de
Martin Dugard, de Philippe Claudel, de Cormac Mcarthy, Saul Bellow,
Claudio Magris, mesmo os thrillers bem estruturados de Minette
Walters, Val McDermid, a redescoberta dum grande senhor solapado durante
demasiado tempo, John Franklin Bardin…
Em suma, acho que a escrita e por extensão a literatura, continua a
aguentar-se bem, a despeito da extrema comercialização (seja em loja ou
nas Feiras) que tenta despejar-se-lhe em cima e que muitos dos seus
cultores facilitam criando frequentemente “génios por via
administrativa”.
JS
– Na sua opinião, o que representa a obra para o seu autor? |
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NS
– Depende. No caso de haver uma verdadeira paixão, que nos melhores
casos é sempre uma paixão caldeada pela razão do fazer e do
navegar, será uma real aventura de viver e de erguer alguns minutos
miraculosos. No meu caso pessoal, à medida que o tempo passa sinto uma
espécie de surpresa, de estupefacção por haver esta coisa de escrever,
de se construírem estórias, encenações, raciocínios postos em letra… É
uma espécie de humilde encantamento. Para alguns outros será talvez uma
maneira de viajarem por dentro, de se baterem contra a tragédia da vida
breve, do tempus fugit. Ou, porque não, de erguerem com galhardia
varonil o seu desafio aos deuses que sempre quiseram fazer do Homem não
mais que um servidor atemorizado.
Jorge Perestrelo (JP)
-
O quotidiano do homem e do escritor. Como se posicionam?
NS –
No meu caso, tem
dias…
Em certas alturas
sinto-me mais suscitado pelos acontecimentos vulgares, digamos. Há em
certas coisas comezinhas ou aparentemente banais um poderoso apelo que
me interessa sobremaneira. A passagem duma determinada pessoa pela rua,
o que sucedeu nesta ou naquela circunstancias, mesmo casos da
habitualmente triste e suja actualidade política, momentos da existência
pessoal – uma iguaria, o envergar dum traje ou saber-se de que maneira e
com que cadência as árvores perto da minha casa ficaram sem folhas à
medida que o tempo invernoso chegou – prendem a minha atenção duma
maneira profunda.
Noutras, é o
mistério da escrita e da leitura que me ocupam todos os minutos do dia.
E faço questão de referir que se sou, como dizes, escritor, é só na
medida em que escrevo (risos). Profissionalmente nunca ganhei
praticamente nada com as letras. E tem sido com dificuldade, muitas
vezes só devido ao apreço e afecto de confrades amigos, que os meus
livros têm sido publicados. Em parte, dou a lume o que faço também
movido por uma razão de tipo ingénuo: quando fui muito perseguido criei
a ideia de que, se tivesse uma certa notoriedade mediante as letras,
talvez não me perseguissem tanto…Acreditava que isso de ser escritor me
podia defender! Hoje, que já tenho como se costuma dizer “o rabo
pelado”, sei perfeitamente que se o Poder decidir destroçar-nos pode
fazê-lo sem entraves, seja-se ou não notável… Vivemos, não o
esqueçamos, numa “sociedade criminal” do tipo democracia mitigada ou
tendencial (tecnicamente, de enfoque cripto-fascista) o que aliás
tentam não se veja, não se fale, não se ouça, como no célebre apólogo
dos macacos. A nossa é maioritariamente uma sociedade hipócrita e cruel,
onde a caridadezinha, por exemplo, serve para a ICAR efectuar boas
performances de cariz propagandístico (risos).
Mas não me sinto
desiludido, pelo contrário conservo um grande apetite de viver e a cada
momento me sinto gratificado por me ter sido, pelas potestades,
concedido existir e contemplar o mundo das coisas e da natureza, que são
admiráveis.
JS
-
A obra constitui-se como uma criação ou uma tradução?
NS
– Uma criação - que a meu ver é a tradução de estados existenciais, e
nessa medida fundacionais, da pessoa a quem se colocam interrogações,
perplexidades e quimeras. As quais, num indivíduo que tem como
instrumento primacial as palavras, assumem o carácter de escrita ou,
noutros casos paralelos e semelhantes mas de ordem diferente, desaguam
na pintura, na música, etc. Para mim o homo faber é no estádio
mais elevado um hacedor, um artesão de tipo superior ou, se
quisermos, um artista na plena acepção da palavra.
JP
- Recordações e memórias. São partes de um todo ou momentos de acaso?
NS
–
Se bem compreendo a tua pergunta, eis a resposta possível: com o avançar
da idade e dando-se o facto de que tenho cada vez mais nostalgias, que
aliás assumo porque cada vez estou mais do outro lado da vida, são já
partes de um todo que procuro preservar como um tesouro. Esses
momentos de acaso, para empregar a tua expressão, existiram sem que
por vezes procurássemos que existissem, são frequentemente recordações,
“instantâneos” como se diz na profissão de fotógrafo, que nos visitam
sem que os possamos controlar. Em grande medida é daí que a poesia
parte, desse território que visitámos um dia e que de súbito desapareceu
sem que nos déssemos muita conta.
MC
-
Qual pensas que é o lugar do autor no mundo actual?
NS
–
Enquanto pessoa é muitas vezes supranumerário, dependendo do país ou
mesmo do continente onde está. Dito isto, é em certos sítios um mero
ornamento, facilite ou não facilite o facto.
Falando sem irmos a esses detalhes, penso que é um intruso que as
classes diversas se habituaram a suportar, por um lado, a admirar por
outro se em torno dele houver um trabalho de marketing bem
artilhado. Os tempos são diferentes de, por exemplo, os meados do século
passado, quando devido a factores bem determinados o Autor tinha um peso
inegável no imaginário e até no meio social dos homens desse tempo.
Hoje, se não tiver o peso que lhe é conseguido pela publicidade, a
proximidade com o poder, com os mídias e até com os meios argentários, o
autor tem menos lugar social que uma vedeta futebolística,
cinematográfica ou, inclusive, do jet set semi-pornográfico.
A
nossa sociedade, nomeadamente num país empobrecido e envilecido como o
nosso, guiado e dominado em grande medida por videirinhos e cleptocratas,
fabrica as consciências de que necessita para que o espectáculo continue
em termos favoráveis.
Para além disto e conservando um pouco de dignidade (muitos diriam
ingenuidade…) creio que apesar de tudo o lugar do Autor continua a ser
uma pedra de toque numa futura maior humanização do mundo e dos seres.
Ou de alguma consciencialização, o que já era razoavelmente bom… |
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MC
- O que é que a escrita pode fazer por quem a efectua e pelos que a
recebem?
NS
–
A tua pergunta não transporta ironia, por isso não vou responder
ironicamente que, nos casos mais eficazes de videirice, pode dar cabo ou
ajudar a dar cabo de cabeças leitoras e proporcionar bons réditos aos
que se prestam a fazer esse jogo nefando…
De boa fé respondo que até pode ajudar a decidir um destino, tanto dos
que a fazem como dos que a recebem. Muitos percursos vitais foram
transformados ou levados nesta ou naquela direcção por uma simples
leitura, que assumiu um peso excepcional ou num ou noutro. A escrita não
constrói ou destrói impérios, nenhuma revolução foi determinada ou
sufocada por qualquer escrita, mesmo a estorieta de que a Guerra Civil
americana teria sido provocada pelo livro “A cabana do Pai Tomás” é
pura especulação sem bases. A escrita pode, isso sim, influenciar
destinos individuais que, por seu turno, podem fazer inflectir nesta ou
naquela direcção acontecimentos de certa ordem. Mas isso dá-se num plano
muito pessoal, aliás sujeito a outras coordenadas e outras
determinantes. Em suma, no plano dos conceitos e movimentos de alma, a
escrita é ou pode ser uma forma de ascender ao conhecimento, encarado
dum ponto de vista lato, que até pode levar por seu turno a uma dada
sabedoria. A magia frequente é que ela é um verdadeiro “vaso
comunicante” como dizia Breton, o que permite um estatuto de
convivência fecunda entre os dois campos.
MC
- E quais os mundos em que ela se move?
NS
- Nos mundos do consciente e do inconsciente, em primeiro lugar, depois
nos dois planos – esses mais complexos – da realidade e da fantasia. Ou
para dizer doutra forma, no continente da necessidade e no da liberdade.
Uma vez que nos últimos tempos tenho, como muitos creio eu, sido
submetido a inúmeras humilhações sociais provocadas pelos pervertidos ou
corruptos membros da clique que se apoderou dos cinzentos corredores do
regime, tem-se dado em mim uma desaceleração da fé nos poderes da
arte. Fui, como milhares de pessoas ao que tenho sentido, capturado pela
desesperança e pela amargura, ou mais exactamente, foi uma parte do meu
espírito que sentiu um abalo bastante forte de que não recuperei e não
sei se virei a recuperar.
Concretizo: por razões que não vem ao caso descriptar, foi-me dado saber
de ciência certa que o mundo se está a encaminhar para algo que, não
sendo sectorialmente bom antes pelo contrário, será globalmente bom em
termos especiais. Mas e aqui é que bate o ponto, saber não é poder.
Aliás nunca o foi excepto se pertencemos aos escalões do mando ou se
somos membros da classe dominante. O saber nada pode contra a
inevitabilidade da morte, por exemplo e mesmo que conheças os secretos
sentidos do mundo estás como os outros preso à carnalidade a que só os
deuses escapam.
Isso comunica-nos, em certas alturas, uma angústia muito pronunciada e,
mesmo dispondo da capacidade de nos movermos no mundo aberto pelo
conhecimento da escrita, ela acaba por ser um bem fraco consolo.
JS -
A arte pode ser entendida como a própria Vida no seu mais profundo
sentido? No sentido em que a vida é luta, até que ponto a arte também o
é ou tem que ser?
NS
– Respondendo à primeira parte da questão: acho, felizmente, que não. E
digo felizmente porque hoje por hoje, ultrapassada a ideia amorável mas
apenas romântica de que todo o Homem seria um artista (de facto não é
assim, já veremos porquê) milhares e milhares, para não dizer milhões,
estariam a partida afastados da sua plenitude. E isso seria terrível. A
arte (ou a capacidade artística, se quiser) é sim, a meu ver, uma
inflexão própria da Vida, ou por outras palavras: algo que por
determinadas características, chamemos-lhes psico-fisiológicas, ou de
conformação genética, se possui ou não, sem que isso acrescente
mais-valia específica ao dotado. Depois, essa faculdade educa-se,
aperfeiçoa-se, vai cristalizando através das horas no operador. Por isso
é que há maus artistas ou bons artistas, que são os que
sabem como os “laboreurs” excursionar através da sabedoria possível. A
arte, no meu modo de ver, é sim um verdadeiro trabalho alquímico, que
pode partir duma iluminação inicial mas que requisita a junção e a
transfiguração mútua do “espírito e da matéria”, para usar estas
expressões simbólicas. Assim sendo, creio que isto responde também à sua
questão sequente.
JP
– Pelos vistos, cabe-me fazer a última pergunta. Ei-la: coisas que se
desejam e coisas que se tiveram. Como se colocam?
NS
– Por vezes colocam-se de maneira um pouco amarga, ou devo dizer
desalentadora? No meu caso, pondo as coisas num plano estritamente
prático ou quotidiano, houve coisas que desejei fazer e nunca pude
consegui-las. Concretizando: gostava de ter dado a volta ao mundo, pelo
menos conhecer a Ásia… Nunca o fiz. Nunca tive a sorte de haver um
milionário desembaraçado e imaginativo que me dissesse: “Vais e
depois escreves um livro com as tuas impressões, as maravilhas que viste
e o que tudo isso te suscitou”. Claro que no mundo real os
milionários são em geral pessoas ávidas e puramente realistas, seja essa
característica o que for. E gostava de ter tido – não se riam, por
favor! – um burro. Parece simples, mas não é. Teria de ter um casinhoto
onde o acomodar e que fosse suficientemente perto da minha casa para o
poder tratar, alimentá-lo e cuidar da sua limpeza…! E gostava de não
ter andado sempre em dificuldades a partir aí do dia 20 de cada mês…E
gostava de em certo período não ter sido tão atormentado por sevandijas,
que me fizeram muito mal. Como vêem, sou efectivamente muito
terra-a-terra.
No que respeita a coisas espirituais, que são frequentemente ora cómicas
ora trágicas, nunca senti por aí além a falta dalguma delas. Tive sempre
um certo equilíbrio interior, estive sempre rodeado de pessoas que por
seu turno me estimaram, tenho tido livros, comida, casa, nunca fui
torturado ou alvo de um desgosto devastador. E tive a pintura, a
escrita, que me deram para encher uma vida.
Creio que tive sorte - e se não vi o mundo inteiro vi uma parte e muito
bela…É o que chega para um modesto lírico!
Espero continuar assim por alguns anos, o maior espaço de tempo que
puder ser…!
ns |
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NICOLAU
SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
[Monforte do
Alentejo,1949, Portugal]
Poeta,
publicista, actor-declamador e
artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art
e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”,
“Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O
armário de Midas”, “Escrita e o seu
contrário” (a publicar). Tem
colaboração dispersa por jornais e
revistas nacionais e estrangeiros
(Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTACTO:
nicolau49@yahoo.com |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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