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Outras culturas, como as próximas a nós, as andinas (dos quéchuas e
aimaras e outras) se estruturam ao redor do escutar. Logicamente eles
também veem. Mas sua singularidade é escutar as mensagens daquilo que
veem. O camponês do antiplano da Bolívia me diz: “eu escuto a natureza,
eu sei o que a montanha me diz”. Falando com um xamã, ele me
testemunha: “eu escuto a Pachamama e sei o que ela está me comunicando”.
Tudo fala: as estrelas, o sol, a lua, as montanhas soberbas, os lagos
serenos, os vales profundos, as nuvens fugidias, as florestas, os
pássaros e os animais. As pessoas aprendem a escutar atentamente estas
vozes. Livros não são importantes para eles porque são mudos, ao passo
que a natureza está cheia de vozes. E eles se especializaram de tal
forma nesta escuta que sabem, ao ver as nuvens, ao escutar os ventos,
ao observar as lhamas ou os movimentos das formigas o que vai ocorrer
na natureza.
Isso me faz lembrar uma antiga tradição teológica elaborada por Santo
Agostinho e sistematizada por São Boaventura na Idade Media: a revelação
divina primeira é a voz da natureza, o verdadeiro livro falante de Deus.
Pelo fato de termos perdido a capacidade de ouvir, Deus, por piedade,
nos deu um segundo livro que é a Bíblia para que, escutando seus
conteúdos, pudéssemos ouvir novamente o que a natureza nos diz.
Quando Francisco Pizarro em 1532 em Cajamarca, mediante uma cilada
traiçoeira, aprisionou o chefe inca Atahualpa, ordenou ao frade
dominicano Vicente Valverde que com seu intérprete Felipillo lhe lesse o
requerimento, um texto em latim pelo qual deviam se deixar batizar e se
submeter aos soberanos espanhóis, pois o Papa assim o dispusera. Caso
contrário poderiam ser escravizados por desobediência. O inca lhe
perguntou donde vinha esta autoridade. Valverde entregou-lhe o livro da
Bíblia. Atahaualpa pegou-o e colocou ao ouvido. Como não tivesse
escutado nada jogou a Bíblia ao chão. Foi o sinal para que Pizarro
massacrasse toda a guarda real e aprisionasse o soberano inca. Como se
vê, a escuta era tudo para Atahualpa. O livro da Bíblia não falava nada.
Para a cultura andina tudo se estrutura dentro de uma teia de relações
vivas, carregadas de sentido e de mensagens. Percebem o fio que tudo
penetra, unifica e dá significação. Nós ocidentais vemos as árvores mas
não percebemos a floresta. As coisas estão isoladas umas das outras. São
mudas. A fala é só nossa. Captamos as coisas fora do conjunto das
relações. Por isso nossa linguagem é formal e fria. Nela temos elaborado
nossas filosofias, teologias, doutrinas, ciências e dogmas. Mas esse é
o nosso jeito de sentir o mundo. E não é de todos os povos.
Os andinos nos ajudam a relativizar nosso pretenso “universalismo”.
Podemos expressar as mensagens por outras formas relacionais e
includentes e não por aquelas objetivísticas e mudas a que estamos
acostumados. Eles nos desafiam a escutar as mensagens que nos vem de
todos os lados.
Nos dias atuais devemos escutar o que as nuvens negras, as florestas das
encostas, os rios que rompem barreiras, as encostas abruptas, as rochas
soltas nos advertem. As ciências na natureza nos ajudam nesta escuta.
Mas não é o nosso hábito cultural captar as advertências daquilo que
vemos. E então nossa surdez nos faz vitimas de desastres lastimáveis. Só
dominamos a natureza, obedecendo-a, quer dizer, escutando o que ela nos
quer ensinar. A surdez nos dará amargas lições. |
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Leonardo Boff (Brasil).
Teólogo,
filósofo e escritor, autor de numerosas obras, entre as quais
Opção-Terra, a solução da Terra não cai do céu, Record, 2009. |