Lugar de mim
A ilha não sabe como há-de estar:
Se a enfeitar a terra prometida
Ou se foi posta ali à beira-mar
Para lembrar a urgência da partida.
Nem sabe que perfume há-de exalar:
Se a sangue derramado na refrega,
Se a pêssego maduro que, ao luar,
Abençoa o amor na sua entrega.
As ondas, envolvendo-a de brancura
Na imensidão azul que a sustenta,
A cada instante a moldam na figura
Que de si para si o tempo inventa.
E eu quase julgo ouvi-la, como alguém
Que diz “Tal como tu, sou só metade
Do caminho de um sonho, que também
Se encontra a meio caminho da verdade”.
Ao lado, entardece a povoação,
A polvilhar de brilhos o poente,
Chamando, do infinito, a embarcação,
Que se aconchega a ela, docemente.
No céu aponta a lua, em tons do sal
Que dá sabor à brisa. E ao chão
Acrescentam-se casas, em que mal
Cabe mais do que um simples coração.
Três gatos a brincar às sete vidas
Emaranham sorrisos pelo largo,
De um copo saem histórias esquecidas
Enquanto o Zé Inácio grelha um sargo.
A noite, que enfim chega, sorrateira,
Depois de certa hora, por magia,
Faz ver o som das vagas na lareira
Em que descansa a luz até ser dia.
E alguma coisa em mim, num despertar
Que chega do que é velho e do que é novo,
Que eu não sei o que é, vem aportar
Ao que, em mim, se chama Porto Covo.
Pequena canção de
Outono
para o Xico Zé Henriques
Levei o meu coração
à varanda. Tão bonito
que é vê-lo andar à solta,
da varanda ao infinito…!
Embrenhar-se no poente
no alto do velho monte,
p’ra voltar com as gaivotas
que nascem do horizonte.
Misturar-se com a brisa,
numa folha e, de mansinho,
ir pousando em cada passo
de quem vai no seu caminho.
Ser companheiro da Lua
p’los telhados, a escutar
os sonhos que a minha rua
fica à noite a segredar.
E, por fim, quando alguém chama
lá de dentro, entrar comigo
como um gato que tivesse
encontrado um novo amigo.
P’ra, de novo no lugar
que é o seu, ser ele o dono
de mim e em mim soar
a Primavera no Outono.
O brinco (musicado por
Xico Zé Henriques, cantado por Maria Morbey)
“gostava de dar um beijo
onde o teu brinco os vai dando”
António Botto
Esse brinco com que tu
quiseste ficar mais bela
é assim como a janela
que te deixa a alma a nu.
E é tão lindo o que o…
olhá-la diz ao desejo
que é nela, juro!, que eu mais
gostava de dar um beijo.
Mas como, por judiaria,
Deus, à alma, não deu pele,
só me resta esperar que Ele
o venha a fazer um dia.
Até lá, já bastaria,
vendo-o na orelha, brilhando,
que eu pudesse dar-te um beijo
onde o teu brinco os vai dando.
Poemas
Poemas não passam
de
notas à margem da
vida
esconjuros de
feiticeiro
troços de rota
perdida
recordações que se
levam
para o outro lado
do sonho
rosas ventos lava
lama
aguardente de
medronho
Que poemas como
barcos
à descoberta da
vida
canta a minha boca
quando
anda na tua
perdida
(1978)
A rede
Na rede com que envolveste
o teu corpo estão as linhas
de histórias que entreteceste
e depois ainda quiseste
enlear nas que eram minhas.
Coisas de amigos e amantes,
sedução e fantasia,
de Eternidade em instantes
que, de plenos e bastantes,
dão sentido a cada dia.
Com elas vamos escrevendo,
pouco a pouco, outra história,
de uma só alma vivendo
nas nossas duas, crescendo,
feita de sonho e memória.
E quando enfim terminar
o tempo que Deus nos deu
para a podermos contar,
sei que ela se há-de enredar
naquela que Ele escreveu.
A gota que o mar
deixou (musicado por Xico
Zé Henriques)
A gota que o mar deixou
esquecida sobre o teu peito,
ouvindo-te o coração,
estremeceu e deslizou
serena, com muito jeito.
No princípio hesitante
quanto ao caminho a escolher,
andou errante entre os seios,
ficou parada um instante,
depois voltou a descer.
E, assim como quem seduz,
passou vagarosamente
mesmo à beira do umbigo,
molhando o ventre de luz
eterna do sol poente.
Movido pelo deleite
que te brilhou no olhar,
fui apanhá-la na concha
da língua e com ela dei-te
o meu desejo a provar.
Lentamente
Paciente, a minha boca
vai deixando, lentamente,
as marcas, na tua virilha,
do desejo impaciente
que despertaste em mim.
E, quanto mais lentamente
mais tu, para chegares ao fim,
te tornas impaciente.
Paciente de impaciente,
faço aos poucos, lentamente,
do meu fim aquele fim
que, ao sobrevir de repente,
jorra de ti, docemente,
como uma parte de mim.
Absolvição
As mãos tecem os fios do desejo
que as palavras transportam do olhar,
tornam-se as almas húmidas num beijo,
escorrem, ternas, dos sexos, devagar.
Devagar, graciosas, juntam-se, onda
que em si mesma se envolve, sem cessar,
e é gemido e grito e espasmo e sonda
o fundo da alegria e faz jorrar
a luz, o céu, a fonte, a flor, o fruto,
de si própria se muda em alimento.
Tudo é manjar, altar, frescura e lume.
Amanhece o mundo. E um sorriso
perpassa a inocência dos sentidos
libertos do pecado do ciúme.
Do mais fundo (musicado
por Xico Zé Henriques)
Deixa-me sonhar
que a eternidade está desde sempre à nossa espera
e que antes do nascer e depois do morrer tudo já era
e será do existir.
E que isto do chegar e do partir é como o sono
que repousa depois do amor
e de novo para ele nos prepara
Deixa-me supor que iremos acordar
uma vez mais para o que somos
seremos e fomos
na verdade.
E que tudo o que é
é pura sombra e pura claridade
tão vivo alegre e quente como o teu corpo é
também para sempre
novidade.
Não sei
nem sequer se sou capaz de compreender
tudo o que sinto
e o que me ouviste dizer.
Mas sei que apenas isso poderá
fazer sentido
como alguém
em quem no seu mais fundo surge
a música que lhe fica
sussurrante no ouvido
sem que saiba de onde vem.
Essa música que está em cada passo
com que conheço quero faço recuso ou abraço
que me repõe e me centra em mim
muito para além de princípio e fim
que é nós todos e ninguém. |