REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2012 | Número 23-24

 

Deslumbramento, clarão súbito a nos envolver e a impregnar a nossa percepção de um só elemento, um foco absoluto, um único e abrangente objeto: a disposição inesperada de algumas linhas, ou o ritmo semicircular de uma colagem, ou duas cores que juntas dialogam e se iluminam. A sensação é de um inesperado tesouro de natureza desconhecida, como se tivéssemos acesso a uma preciosidade antes oculta e que temos dificuldade de reter. Recebemos, penetramos numa certa dimensão e ela nos escapa; este tesouro nos preenche e não temos como conservá-la. Não sabemos como retê-lo, pois não estamos certos de sua essência. Novamente procuramos as formas que nos abriram este portal do oculto em busca deste inesperado momento em que estivemos verdadeiramente além de nós. Ou que pensamos, em função do inabitual, termos estado fora de nós mesmos. Transcendente momento. Alguma coisa se passa neste contato fugidio e nós o desejamos novamente porque estivemos em contato com a harmonia. E neste caso, não é significativo que a classifiquemos. Nada é mais forte do que o contato com a harmonia produzida pela linguagem, esta invenção humana, pois ele corresponde ao poderoso desejo do ser humano, à história da espécie, na sua vontade de absoluto.

 

Jacob Klintowitz

 

Arte, Beleza e Síndrome de Down

 

Prefácio à obra “Uma Visão Inclusiva”, de Célio Turino, editado pelo Instituto Olga Kos.        

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Enumero estas emoções e as suas palavras em razão do meu contato com as obras plásticas produzidas pelos jovens com Síndrome de Dow, estimulados na sua atividade pelo Instituto Olga Kos de Inclusão Social. É inquestionável o impacto – eu o sei em mim - causado em razão da originalidade de suas realizações.

Deslumbramento da própria cor. A natureza em si mesmo causa emoção. Independente da classificação humana, da definição conceitual, a pura existência, causa alegria e satisfação. É como estar em contato com a Aurora Boreal. O por do sol é sempre comovente. Neste caso, estamos em contato com o humano, não com a natureza em si mesmo, longe da articulação lingüística.

 

A manifestação artística dos jovens com Síndrome de Dow está evidentemente inserida na linguagem, mas se diferencia, em parte, especialmente na sua concepção, do hábito e da convenção artística. Esta diferença ocorre na origem, na concepção da obra. Enquanto na tradição artística o criador parte de premissas históricas – escola artística, formação cultural, formação técnica, história da arte, artistas pioneiros, história da civilização, familiaridade com materiais técnicos, concepção filosófica – na produção dos jovens com Síndrome de Dow a origem da obra, o estímulo, o processo de fazer, tem como razão primeira a pura emoção. O desejo de expressão preside o processo, desde o desejo inicial até o acabamento da obra. É, talvez, neste encontro com a natureza da emoção que nós a associamos a emoção diante da natureza.

Paola Moutinho, Sem título, Acrílico stela, 80x80cm,2009  
 

 

 
  Paola Moutinho, Sem titulo, Acrilico spapel, 29x47cm, 2007
   
 
  Paola Moutinho, Sem título,Técnica mista, 29x47cm,2011
   
 
  Paola Moutinho, Lizandra Martins, Sem título, Acrilico stela, 80x80cm, 2010
   
 
  Paola Moutinho, Flores, Acrilico spapel, 29x47cm, 2008
   
 
  Paola Moutinho, Artes marciais, Técnica mista, 29x47cm, 2010
   
 
  Lizandra Martins, Senna II, Acrilico spapel, 80x115cm,2009
   
 
  Lizandra Martins, Sem titulo, Tecnica mista, 29x47cm, 2007
   
 
  Lizandra Martins, Sem titulo, Acrilico spapel, 29x47cm, 2009
   
 
  Lizandra Martins, Flores, Acrilico spapel, 29x47cm, 2008
   
 

Até o começo do século XX não haveria qualquer dúvida de que o trabalho resultante desta atividade, no caso, a pintura e a colagem, não seriam expressões artísticas. Estas obras não teriam o material nobre, a escola estilística, o assunto pertinente, a estrutura acadêmica do desenho e da pintura ou da modelagem, a ordem da composição. Contudo é justamente neste início do século que surge a extraordinária revolução das artes visuais e são questionados os materiais nobres, o assunto pertinente, a composição tradicional, a obediência à escola estilística, o desenho e a pintura de formação acadêmica. Todos estes elementos foram parcialmente substituídos pelo assunto confessional, pelo uso de materiais cotidianos ou meramente industriais, múltiplos feitos a partir de moldes, pela intensidade da emoção, pela valorização da recepção perceptiva e afastamento do método dedutivo cartesiano. E pela instauração de uma dúvida fundamental, o conceito de real.

Também, seja dito em nome do verismo, a própria definição do que seja arte entrou em colapso, pois as formas tornaram-se, muitas vezes, informes, e o objetivo final deixou de ser a vivência estética substituída pela possibilidade de impacto. Estes são os resultados iniciais de uma espécie de barbárie instituída por uma civilização atordoada pela produção em massa, comunicação em massa e pelo fascínio do espetáculo.

Não há, pois, em razão deste processo de transição, motivo para questionar a produção destes jovens e a sua eventual classificação. O que há, na verdade, é a curiosidade de conhecer esta manifestação artística que tem a capacidade de comover e que prescinde abertamente da mediação tradicional, seja a da cultura visual, seja a do método de abordagem cartesiano. 

O Instituto Olga Kos de Inclusão social utiliza um sistema de estímulo e desenvolvimento temático empírico. Ele oferece aos jovens um modelo artístico, a linguagem de um artista vivo. Os jovens entram em contato intimo com a obra deste artista modelar e convivem com as suas formas. Depois o próprio artista-modelo faz uma oficina com os jovens e indica alguns procedimentos, sugere temas, otimiza o uso de materiais e instrumentos.

O resultado objetivo deste convívio com a obra de um artista e com o próprio artista como mestre, é a ampliação do universo temático do jovem. No campo de sua vivência emocional são acrescentados temas habituais das artes, geometrias, combinações cromáticas, paisagens. O que estava no âmbito da iconografia mais imediata, como a família e a casa, torna-se mais amplo com a inclusão de temas abstratos. Tenho para mim que esta temática abstrata, desligada da vida cotidiana, torna-se, nas mãos destes jovens, temas cotidianos, até mesmo caseiros. Estes temas são incorporados ao seu viver e tornam-se parte do seu repertório intimo. Mesmo na abstração estes temas são essencialmente representativos e objetivos.  

Estamos diante da expressão pura. Aqui há uma manifestação direta da emoção e do sentimento. E isto em um nível tão elevado que podemos nos perguntar se é arte ou não é arte. Como se houvesse esta antinomia entre arte e expressão. Fala-se tanto em arte e vida, em incorporação de elementos “reais”, da própria vida, como nas colagens e na pop art. Mas estes elementos da vida, da realidade, do cotidiano, só valem se forem presididos pela racionalidade?

É possível observar uma gradual transformação nesta manifestação dos jovens. Temática, a variação dos assuntos cotidianos, casinha, casa, chaminé, arco Iris e, posteriormente, formas da tradição abstrata. A transformação obedece ao mesmo ritual que se acredita presidir a criação da linguagem e estruturação das formas simbólicas: primeiro, o ponto!

É desta maneira, também, que se concebe a criação do mundo: primeiro era um ponto...

O aumento do repertório iconográfico, a oferta de modelos, o trabalho cooperativo, o diálogo com o público, a valorização do fazer e o respeito a este fazer, como um objeto qualificado, corresponde a uma ampliação da consciência. É possível verificar como estas formas visuais se estruturam na direção de mais organização, intencionalidade e significações. Mais organização e  clareza. Ao tornar objetivo o sentimento, ao dar à emoção a estrutura da forma, o repertório ampliou-se e se tornou mais consciente, a forma correspondente a uma emoção equivale ao símbolo. Mais estrutura, mais organização, mais clareza, mais consciência. E, para nós, mais emoção, pois estamos em contato com uma reveladora harmonia.

 

 

 

 

Jacob Klintowitz (Brasil, 1941).
Crítico de arte, jornalista, editor de arte, designer editorial. Curador do Espaço Cultural Citi. Conselheiro do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi. Conselheiro do Museu Judaico de São Paulo. Vice-presidente do Instituto Anima de Sophia. Ganhou duas vezes o “Prêmio Gonzaga Duque” da Associação Brasileira de Críticos de Arte, pela atuação crítica. É autor de 110 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Contato: jklinto@uol.com.br.

 

 

© Maria Estela Guedes
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