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A leitura não amplia nossa visão de mundo
É esperar muito da literatura e da leitura, em geral, que elas nos
possibilitem uma visão amplificada dos problemas mundiais, e das
possíveis soluções deles.
O número de analfabetos está cada vez menor, mas isso não está
resultando em um mundo mais igualitário, mais pacífico. Quanto mais as
pessoas lerem, mais elas se tornaram criativas e equilibradas?
Infelizmente, não. E não adianta dizer que é culpa das leituras erradas
que as pessoas estão tendo. Livros certos não existem, o que existem são
pessoas erradas demais, em cargos mais errados ainda. Não existem
soluções literárias para problemas políticos.
O artista literário cria ou recria um mundo de verdades que não são
mensuráveis pelos mesmos padrões das verdades fatuais. (Afrânio
Coutinho)
A literatura só pode ser medida pelos seus próprios padrões. Se ela for
fazer alguma diferença, se realmente ela possui alguma importância, é
apenas algo que diz respeito ao indivíduo que a criou e entre os
leitores que tiveram contado com o texto literário. É como uma relação
amorosa, só diz respeito às partes envolvidas, e que ninguém meta a
colher. Se dela nascer algo, bom, mas se nada resultar daí, não
significa que a literatura não alcançou o seu papel.
Então, porque investir em leitura, porque criar programas de incentivo,
parcerias para compra de livros, campanhas televisivas exaltando o ato
solitário da leitura?
A literatura talvez tenha uma função escondida, embora não se queira
isso dela. Mas quem está manipulando essa ferramenta poderosa que é a
obra de arte com as palavras? Escritores possuem essa consciência?
Corre-se o risco, depois de tudo o que foi dito, de o texto descambar
para o idealismo, por isso é melhor encerrar por aqui; antes que minha
visão se espalhe demais e eu cause ruído na leitura das minhas verdades,
que podem encontrar eco na verdade de
alguns.
Literatura é ideologia
A literatura não tem o papel de apontar caminhos, de mudar caminhos, de
melhorar a vida de ninguém. Pois as verdades que ela apresenta possuem
em si mesmas
um sentimento de experiência, uma compreensão e um julgamento das
coisas humanas, um sentido da vida, e que fornecem um retrato vivo e
insinuante da vida. (Afrânio Coutinho)
Queiram aceitar ou não, a literatura apresenta verdades. Verdades do ser
humano que a escreveu para alguém, mesmo que não encontre ninguém do
outro lado. É um registro, um retrato, de uma visão de mundo. Não são as
verdades do mundo, evidentemente; a literatura não pretende alcançar
esse patamar.
Vai de
o leitor decidir, então, o que fazer com essas verdades literárias, para
o bem ou para o mal. A maldição da leitura é esse despropósito de nos
fazer enxergar a nós mesmos sem apontar caminhos, de ficarmos nus diante
do outro que não se revela nunca nas páginas da literatura.
O
leitor está sempre no escuro. Por isso, ele continua lendo. Ele não quer
e não pode encontrar a saída, nem almeja a luz da verdade. Só alcança
dúvidas pelo caminho da leitura.
E que
seja sempre assim, pois a maldição pode se converter num perigo social
com propósitos autoritários. Assim, abandono Afrânio Coutinho a partir
daqui e me apego a Terry Eagleton.
A
literatura, no sentido que herdamos da palavra, é uma ideologia. Ela
guarda as relações mais estreitas com questões de poder social. (Terry
Eagleton)
O autor
de Teoria da Literatura, falando a respeito da literatura na Era
Vitoriana, esclarece o papel que ela desempenhou como cimento social,
usada como instrumento de união entre as classes; no fundo, como
ferramenta de abafamento do discurso e dos anseios e exigências das
classes de operários, de servos do burguês – novo aristocrata –, sob o
discurso da elite, que fundamentava seu poder político e econômico por
meio da literatura (ideologia que pretendeu substituir a religião) e da
educação clássica e humanista.
A
literatura habituaria as massas ao pensamento e sentimento pluralistas,
persuadindo-as a reconhecer que há outros pontos de vista além do seu –
ou seja, o dos seus senhores. Transmitiria a elas a riqueza moral da
civilização burguesa, a reverência pelas realizações da classe média e,
como a leitura da obra literária é uma atividade essencialmente
solitária, contemplativa, sufocaria nelas qualquer tendência subversiva
de ação política coletiva. (Terry Eagleton)
Assim,
além do que já foi dito inúmeras vezes aqui – de que não há função que
se aplique à literatura, de que ela é um universo auto-referencial ou
uma linguagem que fala de si –, haverá sempre a possibilidade de, por
interesses políticos conscientes ou não, da leitura literária ser
utilizada como ferramenta de controle, de subjugação da massa, de
embrutecimento da consciência das camadas sociais populares.
Embora
os sentidos e a razão possam ser vivificados pela arte da palavra, eles
podem ser escravos da preguiça (não do ócio, da contemplação, da vida
criativa), impossibilitando a ação, ato essencial do homem como ser
político. Esse papel é muito bem representado pelas novelas televisivas,
por programas de auditório, por redes sociais. A política do Pão e Circo
nunca foi tão atual: bolsas governamentais, programas de inclusão
social, TV digital etc. O que se percebe é que o gado se estufa de
alfafa e sorri. Às vezes, com um livro na mão.
Se for
pra servir a algo, que ao menos a literatura seja percebida e
experimentada como um espinho venenoso, que possibilite a experimentação
mental do simbólico, levando o ser humano ao inevitável desejo de ação.
Leitura
como potência
A leitura é potência, mas não apenas a estritamente literária. Ela é uma
ponte entre o que somos e o que devemos ser, não que o devir seja
fundamento do bem, não é nada disso, ele se constitui apenas como um
vazio que cabe a nós preencher com o que quisermos. A teleologia da
leitura resulta no vazio. Por isso, o seu perigo. Literatura é uma
tabula rasa, muito bem adotada por grupos ideológicos de caráter
duvidoso, por isso, deve-se ler com filtros na mente.
Mas esse vazio não é ruim. É indicativo, justamente da não teleologia da
literatura, ela é um bem em si mesma. Questionamentos como “porque é que
se lê, se nada útil pode ela fazer por nós?”, no fundo, são resultados
da característica utilitária, opressora e, também, egótica da sociedade.
Os objetos, as ações, atividades e artes humanas, a meu ver, não visam,
em si mesmo, a um bem. Parte de nós a ação, para o bem ou para o mal;
quem institui o valor pretendido é o ser humano. Então, devemos ler
literatura apenas pensando ou pretendendo a própria ação da leitura, mas
com a consciência de que ela não é imaculada. Toda leitura literária é
promíscua, coberta e recoberta de camadas de maquiagem ideológica ora da
elite, ora dos marginalizados, que são lados da mesma moeda.
Cioran, citado por Calvino em Porque ler os clássicos, contava
que "enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma
ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntam-lhe. 'Para
aprender esta ária antes de morrer'". É isso. No fundo, lemos para ler
apenas. Pois, plagiando algo de Calvino, é melhor ler do que não ler. Ou
você vai tentar me convencer de que assistir programa de auditório,
ficar no posto tomando um cervejinha, azarando a mulherada é melhor do
que descobrir novas coisas, de sair desestruturado após centenas de
páginas, entristecido pela impotência de ser mais um no meio da turba,
de se afogar nesse tufão que é a maldição da leitura? Não, seria difícil
encontrar algo mais eficiente nos tornarmos, como pretende Nietzsche,
humanos, demasiadamente humanos.
É melhor ler do que não ler.
E não me venha contar contos-da-carochinha.
Calvino, a respeito dos clássicos, já dissera que não se lê por
obrigação ou respeito, mas por amor. Não adianta botar no chicote, ou no
anúncio, ou no programa de televisão. Nenhuma leitura literária deve ser
realizada dessa forma. Ela é paixão, nos leva para o canto de nós mesmos
que se reencontra com a caverna do homem pré-histórico, pois ela se opõe
à razão. Não completamente, evidentemente, pois ela é necessária para
codificar e decodificar os signos da escrita. Mas a literatura é,
principalmente, linguagem simbólica, mitológica, arquetípica, que se une
ao nosso ser sem história, ou ahistórico, de um ser mais instintivo,
criativo, apaixonado (já que sem desejo nada nos moveria). Por isso, a
leitura do texto literário não tem em si sentido nem função, a
recomunicação entre nossa psiquê e os símbolos presentes no literário é
potência, e permanecerá em estado de latência caso o próprio ser/leitor
não sinta desejo, não sinta paixão e, saltando por sobre ela, transforme
o imaginado em ação. Literatura sem tesão, nada feito. Se for assim
melhor continuar analfabeto.
A propósito, como disse uma senhora de 73 anos e recém-alfabetizada,
"não saber ler é como ser cego. Precisamos ser guiados”. E entendo a
leitura, nessa fala, como aquela que não precisa ser ensinada na escola,
pois é leitura de mundo, de começar a olhar para o lado e começar a ver
além do visto. Decodificar além do código, apreender mitologias. Isso
seria um passo além da leitura, da transformação da potência em ação,
para daí construir concretude a partir de símbolos, eventos a partir de
aparências. Alcançando a harmonia e a liberdade que se almeja.
Quem sabe, coisas boas comecem a acontecer para além de um livro. Ainda
não morreu a esperança.
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