REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2012 | Número 23-24

 

 

FRANCISCO JOSÉ CRAVEIRO DE CARVALHO

Tradução de alguns poemas de

NEIL CURRY

                                                                  

Em Samos: Uma Pergunta  

“E tu, meu filho, de que madeira és feito?”

Não era uma pergunta. Podia ver isso.

Era um Beneditino e muito atraído

Pela minha bengala: a sua elegância,

 

Em ébano, o punho macio em cabeça de cão

Virada para trás: olhar triste e um toque

Lúgubre na linha do seu queixo.

Comprara-a no Grand Bazaar

 

Em Istambul, tinha sido atraído

E fora enganado por ela também. Só

Ao chegar a casa  me apercebi

De que, de facto, era apenas bambu lacado.

 

Mas andara mais de trezentas milhas com ela

Em três semanas e o monge estava impressionado.

Não, não era uma pergunta. Sabia isso.

Mesmo assim preferia que ele não tivesse perguntado.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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 Higrómetro 

Acabo de ver a minha vizinha entrar em casa

levando um cesto de fruta

e um ramo de flores.

Começou a chover.

Será que o  marido vai sair

de botins e impermeável

e ficar nos degraus

até  parar

e ele poder recolher-se? 

 

 

Quatro vezes quatro  

          I 

A primavera coincidente

com o amanhecer: mas era

uma criança a ver as chamas

a nascente

 

          II 

ou uma jovem

em pleno meio-dia de verão,

a virar o seu rosto

para sentir a brisa do sul?

 

          III 

Com as crianças já a dormir,

os seus ouvidos aperceberam-se do som

de água corrente para ocidente

num entardecer de outono.    

 

          IV 

A idade fez-se sentir

ao atravessar o pátio às escuras;

achou que lhe cheirava a neve

nas colinas para o norte.

 

 

No Café de la Gare 

A mesa que lhes  indicaram era tão pequena

Que podiam facilmente esticar-se

E esbofetear-se, fosse essa a sua

 

Intenção. Pelo menos estavam na sombra

Agora, longe da exposição das outras.

Vencidos pelo descanso, sentaram-se à espera.

 

Experimentaram, “S'il vous plaît, un mille feuille

E deux tasses de thé.” O silêncio dilatou-se

Sem contudo rebentar. Era como se tudo

 

Tivesse acontecido há um ano ou há mais

E só por uma avaria da memória

Lhes dissesse respeito. E havia ainda

 

Os remorsos do anoitecer para atravessar.

 

 

Outros Quartos  

Mais tarde, tudo o que ele conseguia lembrar com clareza

Era o barulho feito pela chuva, salpicando

Os papéis que envolviam as flores

 

Que alguém estivera a dispor em volta da sepultura.

Afastou-se da janela. Quando as pessoas estão

Sempre à janela tendem a ser esquecidas.

 

E mexeu numa almofada, mas sem se sentar.

Ter partido, uma pessoa precisa de ter sido,

Ser alguém a quem aconteceu uma vez alguma coisa.

 

Pensou em fazer talvez um pouco de chá. Quando

não há amor que chegue perto de nós,

Devem ser os mortos a passar sem ele.

 

Um outro quarto, outra fronteira. Haveria

Outras: escadas e portas. Ele conseguia

recordar o conhecimento carinhoso dos seus corpos.

 

Estas eram as luvas dela. Havia alguma coisa parecida,

Pensou ele, com a imortalidade na sua saudade.

Noutro lugar estariam os sapatos, e outras coisas.

 

 

Frómista  

Uma caminhada  pela margem seca de um canal lento.

Outra cidade. Outra plaza mayor.

Outra estátua. Outro santo.

 

Mas quem é este que parece estar a abençoar o mundo

Enquanto se dirige para nós numa prancha de surf?

San Telmo, está escrito no seu plinto. San Telmo?

 

Eu nunca... Não, espera, baralhámos o Espanhol.

Este tem de ser Sant’Elmo. Aquele do fogo

Que irradiava dos arpões seguros por Ahab.

 

Mas o que pode o santo padroeiro dos marinheiros

Estar a fazer aqui nos vastos campos de trigo de Espanha?

O meu guia diz que é por o terem torturado

 

Arrancando-lhe os intestinos  do  corpo

Com um sarilho. Meu Deus, a imaginação

Do homem nunca é tão fértil como quando

 

Infligimos sofrimento uns aos outros?

 

 

 

 

 

Francisco José Craveiro de Carvalho  (Portugal)
Licenciou-se em Matemática na Universidade de Coimbra. Doutorou-se, mais tarde, com uma tese em Topologia e  Geometria, sob a supervisão de  Stewart Alexander Robertson, Southampton University, U. K.. Assume uma posição de alguma marginalidade em relação à divulgação daquilo que escreve. Traduziu poemas de Carl Sandburg, Jane Hirshfield, Jennifer Clement, Linda Pastan, Rita Dove..., publicados em opúsculos discretos, que circularam entre  os seus amigos.

   
 

 

Neil Curry estudou Inglês na Universidade de Bristol e, actualmente, vive em Inglaterra, na região do Lake District. É poeta e crítico literário.  O seu livro Other Rooms: new & selected poems foi publicado por Enitharmon Press, em Outubro de 2007  e, em  Dezembro de  2011, saiu o seu estudo Six Eighteenth Century Poets na editora Greenwich Exchange Ltd.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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