REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 22

 

Em outubro passado, parte devido àqueles extraordinários encontros a que André Breton deu o nome de "acasos objetivos", tive oportunidade de ver por duas vezes o espetáculo "A voz do provocador", com texto, interpretação, concepção e direção de Antônio Abujamra. O ator, a solo, mantinha então a peça em tournée pelo Brasil. A primeira vez foi em São Salvador da Bahia,
no Teatro SESC do Pelourinho. Depois de vencidos os quiproquos devidos à circunstância de existirem dois teatros no mesmo local, o do SESC com endereço que não corresponde ao atual (Praça do Pelourinho), vencida ainda a barragem dos seguranças, que não me consentiam a entrada no labirinto subterrâneo onde era esperada, Gil Ferreira, o produtor, conduziu-me ao camarim do Minotauro. Depois explicarei o motivo pelo qual chamo Minotauro à pessoa que nos habituamos a tratar afetuosamente por Abu. Abu, de Abu+jamra --> "Pai do Fogo", em árabe. Abujamra é uma das numerosas famílas de origem síria e libanesa  cujos antepassados emigraram para o Brasil

 

Maria Estela Guedes

 

NO LABIRINTO DE

ANTÔNIO ABUJAMRA

Foto: Ed. Guimarães

O Pai do Fogo não lançava fogo pelas ventas quando nos abraçámos, mas reclamava (em palavras provocadoras, vulgo "palavrões") por não haver pó-de-arroz. «Você por acaso tem pó-de-arroz aí na bolsa?» - pediu o Gil. «Por aqui nem existe muito lugar onde se venda isso, negro não usa.» «Então as negras não se maquiam?» - surpreendi-me. «Sim, mas não usam pó-de-arroz, usam outros produtos...».

O Minotauro não usa maquiagem na peça, daí que ela faltasse na mesa coroada por espelhos, mas é claro que sob temperaturas tropicais precisava de absorvente para aquela humidade que nos dá a sensação de vivermos numa estufa. Por isso, numa corrida com o Gil Ferreira, fui ao Hotel Pelourinho, onde estava instalada, buscar o meu pó-de-arroz. Preciso entretanto de dizer algo que não terei oportunidade de escrever noutro local: só nesse dia, 13 de Outubro, último que passaria em São Salvador, antes de embarcar para São Paulo, descobri que a casa onde viveu Jorge Amado não é a "Fundação Casa de Jorge Amado", na Praça do Pelourinho, sim o hotel onde eu passei uns dias. Ali viveu ele uns tempos, e ali foram filmadas cenas do filme inspirado no seu romance socialista, "Suor". É um velho casarão, majestoso, sem luxos, adequado para viajantes, não para turistas, numa das duas ruas vindas do Terreiro de Jesus que desaguam no Pelourinho e cujo endereço, por sinal, também não corresponde ao da placa de identificação da rua em frente do hotel. A primeira placa, ainda no Terreiro de Jesus, «Rua das Portas do Carmo», corresponde, sim, mas entre essa e o final da rua ainda há mais acumulação de toponímias. Acumulação, apesar da confusão que gera, sempre é melhor do que substituir, anulando a nomenclatura anterior. Com o mesmo problema deparei para visitar a igreja de S. Sebastião, que ninguém conhecia por este nome, e houve até quem me quisesse dissuadir de a encontrar, alegando que em São Salvador não havia grande culto a São Sebastião. Bem, que diriam a isto os gays que instituiram essa igreja como Santuário Homossexual do Mundo? Para mim, era imperioso vê-la, é um dos focos da minha peça «Tango Sebastião», que Abujamra e sua equipa querem encenar no Brasil. Também eles lá foram, depois de industriados sobre a questão nomenclatural - Mosteiro de São Bento é o nome que oculta a Basílica Arquiabacial de São Sebastião da Bahia -, mas não puderam ver a estátua do santo no centro do altar, porque estava fechada.

Noutra ocasião contarei o estressante episódio da porta do hotel fechada a horas ainda decentes da noite, após o jantar com amigos do Abu. Foi o Pepê (Pedro Paulo Zupo, da produção) quem salvou a situação, batendo à porta com toda a força, já que, de dentro, ninguém respondia nem atendia o telefone. O Minotauro, sem outro remédio, aguardava, cansadíssimo (quantas vezes nessa noite, antes mesmo do jantar, pediu que o levassem para o hotel?), o desfecho da tragicomédia, que lá chegou, por fim, quando à porta do hotel já havia ajuntamento até de polícia. Que acontecera? Pois o porteiro tinha ido dormir para o quarto andar, sem atender a que uma hóspede ainda andava na rua, e só comentava, irritada: «Se o hotel tem hora de recolher obrigatório, eu devia ter sido avisada!». E foi esta a relação mais íntima que Abujamra e sua paciente equipa estabeleceram com a casa de Jorge Amado. Razão tem ele, quando lhe perguntam como vai, para responder: «Geralmente desesperado!».

De regresso ao camarim, fui nomeada maquiadora oficial, o que me permitiu entrar em contacto mais familiar com o ambiente teatral, com a equipa técnica, e, claro, com o próprio Minotauro (Já explico...). Como se sabe, sou dramaturga, com dois espetáculos montados e três peças publicadas. O mais recente, «A Boba», encenado por Carlos Avilez no Teatro Experimental de Cascais, é um monólogo. «A voz do provocador», escrito e representado por Abujamra, também é um monólogo, com elementos multimédia. Ambas as peças assentam numa manta de retalhos constituída por textos com alguma identidade própria e por vezes assinados por diferentes autores, ambas as peças são provocadoras. A provocação resulta de técnicas várias e algumas similares, a primeira das quais é a revelação de acontecimentos verdadeiros. Nada de mais escandaloso do que a verdade, quando nos habituamos a considerar verdade os mitos da política. Outras técnicas provocadoras de riso e escândalo são o palavrão (que o Abu transforma em palavrinha doce, em certa altura, ao chamar "puta" a uma hipotética espetadora), e a interpelação direta do público. Como espetadora, odeio que me interpelem, não suporto essas modernices de que tive primeira experiência com o Living Theatre. Eu vou ao teatro para assistir e não para representar...  Respondendo a Márcio Bastos, jornalista da Folha de Pernambuco, em entrevista recente, Abujamra declarou que ele não é provocador, ele é provocado. Basta-lhe sair à rua do seu país para a situação o provocar, então o que se passa, na interação com o público, é que o espetador é quem faz a peça, o teatro está na cabeça do espetador. Por isso é preciso dizer muitos palavrões, afirmo eu, e dizer muitas verdades escandalosas, para quebrar o verniz hipócrita de quem moraliza, clamando «Que horror, é feio!». Feia é a injustiça, a maldade, a corrupção, a mentira. Horrível é a pobreza. A moral é um modelo que a classe dominante impõe aos que subjuga, e muito pior: a moral muda consoante os interesses dessa corja cujo valor mais alto é o dinheiro. Mais um pouco e ainda nos obrigavam a pedir perdão pela nossa inocência, já que o roubo, quando vem da cúpula, tende a ser premiado.

O mais evidente modelo da provocação pela via lexical é decerto a criação do grupo de teatro que dá pelo nome de «Os fodidos privilegiados». Gratos, os jovens atores, figurinistas, luminotécnicos, etc., puseram recentemente em linha o vídeo resultante de uma homenagem ao Minotauro, na sede do teatro, no Rio de Janeiro.

 

Sim, bem sabemos que o teatro está na cabeça do espetador, e isso é o que realmente incomoda, porque nem sempre sabemos quando a interpelação do ator é verdadeira ou apenas máscara. Recordo, vermelha a cara, um episódio no Teatro da Graça, com a atriz Anna Paula. Virada para mim, a meio do espetáculo, ia ela fazendo perguntas a atacar o homem macho... Tive de o defender...

Uma coisa é o espectador e outra o autor do texto. Como autora, gosto de provocar o público, de lhe fazer perguntas. Se viu «A Boba»,  há de ter reparado que a Maria Vieira interagia com a plateia. Os homens até se dispunham a levantar-se para ela medir não sei quê, já não me lembro... Técnicas que sulcam veios antiquíssimos no tempo, mas a pouca cultura, de um lado, e a extrema juventude, de outro, podem censurar o que lhes escapa. E então temos outra reclamação do Minotauro, em cena, a de lamentar que a sua geração, a de gente de setenta e muitos anos, represente uma vanguarda que ainda não foi ultrapassada. Somos moderníssimos: à parte a invenção da pólvora, infelizmente as gerações posteriores à nossa ainda não criaram técnicas, modelos, nem géneros radicalmente novos. Essa impotência camufla-se tantas vezes debaixo de ideias confusas e discurso hermético.

Outra linha de força de «A voz do provocador» é a memória pessoal de Antônio Abujamra: ele costura trechos de espetáculos anteriores, em texto, som ou imagem, como acontece com as fotografias e com os vídeos que simultaneamente erigem o cenário. Conta o que lhe aconteceu com este ou aquele espetáculo. Por exemplo, como o extremo sucesso pode coincidir com o extremo fracasso: na telenovela "Que rei sou eu?", representava o papel de Ravengar, que o celebrizou. Então o Minotauro (Já explico o motivo por que o trato assim...) olha de frente para a plateia e pergunta: «Quem viu o Ravengar?». E sempre se levantam braços, apesar dos anos passados, e da consequente mudança de gerações, o que prova a permanência da lembrança e a força dessa personagem. Ora, o que aconteceu depois é que o artista ficou sem trabalho. Nenhum diretor nem encenador lhe queria distribuir papéis por  a sua imagem ter ficado colada à de Ravengar.  «Você quer um papel na peça, Abu?» negaram os diretores de filme, novela e teatro, esquecidos de quanto lhe deviam: «Não pode ser, você é o Ravengar!»

EDITOR | TRIPLOV

 
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  Abujamra no papel de Ravengar, na novela "Que rei sou eu?"
 

«Sucesso e fracasso são a mesma coisa», insiste o ator, dentro e fora de cena, quer representando-se a si mesmo, n'«A voz do provocador», quer falando comigo no automóvel que dias depois nos transportou ao CEU da Vila Curuçá, quer respondendo a entrevistas. Márcio Bastos, na já mencionada, faz-lhe uma pergunta sobre o assunto, ao que Abujamra responde:

«- Eu dirigi nesses meus 58 anos de carreira e 79 de idade, mais de 120 espetáculos e mais de 100 fracassos. Não fracassos artísticos, mas fracassos de falta de público e algumas críticas severas. Mas para mim, o fracasso e o sucesso são absolutamente iguais: os dois são impostores.

Além da mesa carregada de livros, e da cadeira, de que o Minotauro só se levanta para agradecer os aplausos - de pé, num movimento uníssono da plateia, sempre muito jovem -, pouco mais enche o palco: apenas duas fotografias do Abu enquanto ator jovem e a tela em que se projetam filmes também com ele, na idêntica função de diseur. A cobrir a mesa, uma esplendorosa colcha de retalhos de tecidos brilhantes, obra de arte de tapeçaria, a refletir nos seus retalhos o patchwork em que se ergue a peça. De modo que um espetáculo de base simples, apenas colagem de textos, torna-se complexo se atendermos a que se vai desconstruindo a si mesmo numa sequência de «antis-»: anti-autobiografia, anti-palestra, anti-aula, anti-espetáculo, e por aí adiante. De outra parte, por mero circunstancialismo, dá alento de novíssima criação a um género que só conhecemos da televisão, a sit down comedy. E é neste ponto precisamente que dá a cara o Minotauro: com tal rarefação de pontos de interesse, de onde vem o íman que agarra a audiência de princípio a fim do espetáculo, e no fim a levanta como a uma pessoa só, numa bandeja de aplausos sem qualquer favor? O caso só se explica porque o ator é uma estrela, carrega com ele todo o magnetismo de coisas míticas como Prometeus e Minotauros.

Porém o deus que mora no Labirinto pouco espaço de respiração consente na obra ao divertimento estéril: ele é um homem profundamente político, mais visível essa componente no seu lado de professor do que de militante de alguma utopia que não rotulei: foi quase permanentemente um pedagogo, desde o ensinamento e informações que ia dando durante a viagem, até ao camarim. Ao entrarmos no bairro de São Miguel, antes de chegarmos a Vila Curuçá (e ele levou a Gorete, bibliotecária, a fazer pesquisa, pois queria saber a origem do termo «Curuçá»), o Abu contou que, quando a mulher estava prestes a dar à luz o segundo filho, André, não tinham dinheiro. Não a podendo levar para a maternidade de uma clínica cara,  pegou na "mulher barriguda" e na sogra e foram de táxi para o hospital de São Miguel, porque lá trabalhava um cunhado que era médico. Ao fundo da comprida rua Celso Garcia, havia um rio, e o táxi não podia atravessá-lo. Não tiveram outro remédio senão desembarcar, atravessar o riacho a pé, e a pé seguir para o hospital, ele, a sogra e a parturiente.

Hoje o Abu vive em Higienópolis, o que significa desafogo económico. Difícil a nossa viagem desde Higienópolis, no centro de São Paulo, até Vila Curuçá, na violenta periferia, com o Mauro, motorista e técnico de montagem, a discutir com a moça do GPS. Creio que nos perdemos várias vezes, mas preparar o palco não era tarefa demorada, se bem que o Minotauro exija precisão de relógio suíço na posição dos focos, etc.. «No ensaio tudo tem de funcionar na perfeição!» - resmungava. «Não pode haver improviso, improviso é para depois, no espetáculo...». Posso testemunhar que o improviso, durante o espetáculo, há de ser grande, pois o Abu não faz duas peças iguais...

Entretanto, no caminho, o Abu ia mostrando aquela incrível igreja evangélica com capacidade para trinta mil pessoas, o novo estádio em Itaquera, o Iataqueirão, que está sendo construído para inaugurar a Copa do Mundo em 2014, explicando o que são os CEUs, e contando histórias de teatro e família. Aliás, muitos membros da família estão no mundo do espetáculo, como o filho, André Abujamra, que neste momento (Dezembro de 2011) está na China com o vídeo-show «Mafaro». Os três - Abu, Mauro e Pepê - lembraram, além de «Mafaro», as bandas Karnac e Mulheres Negras, fundadas pelo André Abujamra.

Por fim, «A voz do provocador» é uma peça de texto, em duas perspetivas: teoricamente, defende o regresso ao texto; simultaneamente, pratica o teatro de texto. Texto provocador, por isso político. «Sou quase um terrorista das artes», confessa o Minotauro. «Ainda bem, nós te amamos assim», concluo eu.

Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, 30 de novembro de 2011

   
   
 
Antônio Abujamra e Maria Estela Guedes
no Teatro SESC do Pelourinho

A direcção do CEU de Curujá recepciona Antônio Abujamra, que se recusa a fotos oficiais com a alegação de não estar vestido a preceito.

 
  Abu, Pepê e Estela no camarim do Minotauro...
 

O Mauro, da equipa técnica, verifica a incidência da luz sobre a mesa a que vai estar sentado o ator, e, na régie, as entradas de vídeo em cena.

   
 

Ensaio de luzes e som, e imagem do público que encheu completamente a sala de 400 lugares, na maioria jovens.

 
  Um Minotauro feliz e carinhoso, findo o espetáculo, deixa-se fotografar com os seus fãs. «Se eu cobrasse um real por cada foto que tiro com gente, estava rico!»
 
 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

 

 

© Maria Estela Guedes
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