REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 22

 

 

MÁRCIA FUSARO

Literatura e Ensino em

Provocações Reflexivas

                                                                  

                 O livro "Educação, Ensino e Literatura: propostas para reflexão", de Ana Maria Haddad Baptista, lançado recentemente pela editora Arte-Livros (2011 - Brasil), mostra-se provocador já nas primeiras páginas, ao apresentar sob o título de "Advertências Fundamentais", confissões biográficas em primeira pessoa sobre dissabores e derrotas intelectuais que marcaram, na época de escola, nomes ilustres da história da ciência e da literatura: Charles Darwin, Albert Einstein, Fernando Pessoa, Orhan Pamuk. Conforme descrito nos fragmentos de memórias reproduzidos pela autora, incluindo-se páginas adiante as de José Saramago, ao que parece todos eles, posteriormente considerados como mentes brilhantes, tiveram em comum na época da escola o mesmo drama vivido por um número bastante expressivo de estudantes ao longo da história da educação: desinteresse por leitura e estudos, desânimo durante aulas enfadonhas, desilusão com a postura deseducadora de alguns professores.

                Não deixa de nos surpreender que nomes desse gabarito tenham experimentado desinteresse, desânimo, desilusão e derrotas intelectuais na escola. Em nosso imaginário, costumamos idolatrar figuras ilustres do meio intelectual, ainda mais tratando-se de grandes filósofos, cientistas e artistas. Imaginamos personagens perfeitos, infalíveis, principalmente no desempenho escolar. Alunos ideais. Mas é justamente por aí que começam muitos dos equívocos perpetuados pela escola ao longo dos tempos, conforme nos aponta Ana Haddad.

                Suas reflexões propõem, de modo desafiador, a quebra de uma série de mitos mantidos, advertida ou inadvertidamente, no meio educacional ao longo dos tempos e que teimam em se reproduzir na atualidade: a eterna busca, pelo professor, de um aluno ideal, como se este pudesse existir em um mundo repleto de desafios e perpassado pelos acasos; professores que cobram posturas ideais de seus alunos, mas que não dão o devido exemplo como educadores e leitores. Em essência, a autora traz à baila a responsabilidade do educador, utilizando a literatura como um dos ingredientes de aproximação afetiva e intelectual, aliada a toda a riqueza que ela pode proporcionar ao longo da experiência de ensino-aprendizagem. Riqueza esta que acaba quase sempre sufocada por desculpas que já pareciam desgastadas no passado, mas que se tornam ainda menos convincentes em épocas facilitadoras como a que vivemos, com Internet e redes sociais, entre outros fatores. Falta de tempo; muitas provas e trabalhos para corrigir; alunos que não querem saber de estudar; falta de concentração; alunos intelectualmente incapazes de apreciar a leitura de um bom livro ou de assistir a um filme clássico etc. etc.

                Subestimar a capacidade do aluno é um erro. Quem disse que o aluno não é capaz de acessar e compreender um clássico da literatura e do cinema? O problema é como veicular esse acesso para torná-lo uma experiência de ensino-aprendizagem instigante e prazerosa. Isso dá trabalho. Requer que o professor leia muito, inclusive sobre áreas que não somente a sua, estude, tanto ou mais do que seu aluno, e se reinvente constantemente. Daí, muitas vezes, ser mais fácil jogar a culpa somente no aluno desinteressado, que não quer saber de estudar, e manter o mito enviesado perpétuo. Há que se reconhecer que uma parte do processo de ensino-aprendizagem cabe sim ao interesse do aluno e, inclusive, à participação familiar, mas o professor, quando realmente educador, tem à mão, dentro da sala de aula, a batuta de orquestração desse processo. É preciso reconhecer e assumir essa condição, quando se deseja uma mudança de postura para uma maior aproximação com os alunos. E a literatura, campo fértil porque essencialmente criativo e formador, é um ótimo elemento para tal aproximação.

                O que forma um bom leitor? É umas das perguntas principais que a autora propõe como reflexão. O que é a literatura? Como ela deveria ser utilizada em um contexto educacional como o da época contemporânea, cercada por novas e desafiadoras mídias? O aluno de nossa época não gosta de estudar? Não passa de um "derrotado", como professores de Darwin e Einstein chegaram a considerar sobre ambos? E quanto à leitura? Nossos alunos a abominam, mais do que nunca, na contemporaneidade? Não é o que parece, segundo nos aponta Ana Haddad.

                Ao longo de três propostas de reflexão: 1) literatura, conceito e verdade; 2) literatura, aprendizagem e hábito de leitura; 3) literatura, leitura e o ato de escrever, a autora argumenta que, na verdade, não vivemos dificuldades diferentes daquelas de períodos anteriores na história da educação. Pelo contrário, no passado a quantidade de analfabetos era muito maior e o acesso à educação mais difícil. Atualmente, apesar de muitas dificuldades ainda existirem, há facilitadores no contexto, como o acesso às mídias tecnológicas, por exemplo. Portanto, para a autora não há desculpas para não agir e educar, e muito menos para se vitimizar como docente ou para inferiorizar o aluno nesse processo. Finalizo com uma citação um pouco longa, mas que vale a pena ser destacada pelo tom provocador e que leva à reflexão, como todo o restante do livro:

"O verdadeiro educador tem que compreender, de uma vez por todas: somos educadores e temos que agir como tais! Nada de comparar os alunos com as condições pelas quais um dia nós passamos. Nada de exemplos que julgo profundamente infelizes, demagógicos e indignos: 'eu também tive uma vida sacrificada'... 'deixei de almoçar para ler um livro'... 'no meu tempo os professores não queriam saber se eu tinha dinheiro para comprar livros'... 'no meu tempo ai de mim se não lesse, meu pai me daria uma surra'... 'se eu não lesse ficaria de castigo por um ano'... 'quantas vezes deixei de almoçar para comprar um livro'... 'minha pobre mesada ia em livros'... 'meu pai nunca me deu nada'... 'eu trabalhava a semana inteira e aos domingos ficava lendo'... 'sempre li no ônibus ou no metrô'...

As desculpas expostas não se justificam por várias razões. A mais forte: cada um de nós possui um universo distinto de experiência, de vida, sempre irrepetível. Nada de comparações, muito menos, se você é um verdadeiro educador. O que seu aluno tem a ver com isso? As dificuldades enfrentadas por nós não podem ser compartilhadas de maneira a colocar estudantes numa posição de inferioridade. Ora, nada mais repugnante para um estudante do que histórias de vidas exemplares e dignas de serem seguidas... condutas sugeridas, inclusive, os famosos exemplos de 'docentes sacrificados'" (BAPTISTA: 2011, pp.55-6).

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ANA MARIA HADDAD BAPTISTA
Educação, Ensino e Literatura
propostas para reflexão
São Paulo, Arte-Livros Editora, 2011

 

 

 

 

MÁRCIA FUSARO (BRASIL)
Doutoranda em Comunicação e Semiótica - PUC-SP; Mestre em História da Ciência - PUC-SP; Especialista em Língua, Literatura e Semiótica - USJT-SP. Atualmente é professora e coordenadora do curso de Letras da Universidade Nove de Julho - UNINOVE. Pesquisa as interfaces entre literatura, cinema, comunicação e ciência.

 

 

© Maria Estela Guedes
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