O livro "Educação, Ensino e Literatura:
propostas para reflexão", de Ana Maria Haddad Baptista, lançado
recentemente pela editora Arte-Livros (2011 - Brasil), mostra-se
provocador já nas primeiras páginas, ao apresentar sob o título
de "Advertências Fundamentais", confissões biográficas em
primeira pessoa sobre dissabores e derrotas intelectuais que
marcaram, na época de escola, nomes ilustres da história da
ciência e da literatura: Charles Darwin, Albert Einstein,
Fernando Pessoa, Orhan Pamuk. Conforme descrito nos fragmentos
de memórias reproduzidos pela autora, incluindo-se páginas
adiante as de José Saramago, ao que parece todos eles,
posteriormente considerados como mentes brilhantes, tiveram em
comum na época da escola o mesmo drama vivido por um número
bastante expressivo de estudantes ao longo da história da
educação: desinteresse por leitura e estudos, desânimo durante
aulas enfadonhas, desilusão com a postura deseducadora de alguns
professores.
Não deixa de nos surpreender
que nomes desse gabarito tenham experimentado desinteresse,
desânimo, desilusão e derrotas intelectuais na escola. Em nosso
imaginário, costumamos idolatrar figuras ilustres do meio
intelectual, ainda mais tratando-se de grandes filósofos,
cientistas e artistas. Imaginamos personagens perfeitos,
infalíveis, principalmente no desempenho escolar. Alunos ideais.
Mas é justamente por aí que começam muitos dos equívocos
perpetuados pela escola ao longo dos tempos, conforme nos aponta
Ana Haddad.
Suas reflexões propõem, de
modo desafiador, a quebra de uma série de mitos mantidos,
advertida ou inadvertidamente, no meio educacional ao longo dos
tempos e que teimam em se reproduzir na atualidade: a eterna
busca, pelo professor, de um aluno ideal, como se este pudesse
existir em um mundo repleto de desafios e perpassado pelos
acasos; professores que cobram posturas ideais de seus alunos,
mas que não dão o devido exemplo como educadores e leitores. Em
essência, a autora traz à baila a responsabilidade do educador,
utilizando a literatura como um dos ingredientes de aproximação
afetiva e intelectual, aliada a toda a riqueza que ela pode
proporcionar ao longo da experiência de ensino-aprendizagem.
Riqueza esta que acaba quase sempre sufocada por desculpas que
já pareciam desgastadas no passado, mas que se tornam ainda
menos convincentes em épocas facilitadoras como a que vivemos,
com Internet e redes sociais, entre outros fatores. Falta de
tempo; muitas provas e trabalhos para corrigir; alunos que não
querem saber de estudar; falta de concentração; alunos
intelectualmente incapazes de apreciar a leitura de um bom livro
ou de assistir a um filme clássico etc. etc.
Subestimar a capacidade do
aluno é um erro. Quem disse que o aluno não é capaz de acessar e
compreender um clássico da literatura e do cinema? O problema é
como veicular esse acesso para torná-lo uma experiência de
ensino-aprendizagem instigante e prazerosa. Isso dá trabalho.
Requer que o professor leia muito, inclusive sobre áreas que não
somente a sua, estude, tanto ou mais do que seu aluno, e se
reinvente constantemente. Daí, muitas vezes, ser mais fácil
jogar a culpa somente no aluno desinteressado, que não quer
saber de estudar, e manter o mito enviesado perpétuo. Há que se
reconhecer que uma parte do processo de ensino-aprendizagem cabe
sim ao interesse do aluno e, inclusive, à participação familiar,
mas o professor, quando realmente educador, tem à mão, dentro da
sala de aula, a batuta de orquestração desse processo. É preciso
reconhecer e assumir essa condição, quando se deseja uma mudança
de postura para uma maior aproximação com os alunos. E a
literatura, campo fértil porque essencialmente criativo e
formador, é um ótimo elemento para tal aproximação.
O que forma um bom leitor? É
umas das perguntas principais que a autora propõe como reflexão.
O que é a literatura? Como ela deveria ser utilizada em um
contexto educacional como o da época contemporânea, cercada por
novas e desafiadoras mídias? O aluno de nossa época não gosta de
estudar? Não passa de um "derrotado", como professores de Darwin
e Einstein chegaram a considerar sobre ambos? E quanto à
leitura? Nossos alunos a abominam, mais do que nunca, na
contemporaneidade? Não é o que parece, segundo nos aponta Ana
Haddad.
Ao longo de três propostas de
reflexão: 1) literatura, conceito e verdade; 2) literatura,
aprendizagem e hábito de leitura; 3) literatura, leitura e o ato
de escrever, a autora argumenta que, na verdade, não vivemos
dificuldades diferentes daquelas de períodos anteriores na
história da educação. Pelo contrário, no passado a quantidade de
analfabetos era muito maior e o acesso à educação mais difícil.
Atualmente, apesar de muitas dificuldades ainda existirem, há
facilitadores no contexto, como o acesso às mídias tecnológicas,
por exemplo. Portanto, para a autora não há desculpas para não
agir e educar, e muito menos para se vitimizar como docente ou
para inferiorizar o aluno nesse processo. Finalizo com uma
citação um pouco longa, mas que vale a pena ser destacada pelo
tom provocador e que leva à reflexão, como todo o restante do
livro:
"O verdadeiro educador tem que compreender, de uma vez
por todas: somos educadores e temos que agir como tais! Nada de
comparar os alunos com as condições pelas quais um dia nós
passamos. Nada de exemplos que julgo profundamente infelizes,
demagógicos e indignos: 'eu também tive uma vida sacrificada'...
'deixei de almoçar para ler um livro'... 'no meu tempo os
professores não queriam saber se eu tinha dinheiro para comprar
livros'... 'no meu tempo ai de mim se não lesse, meu pai me
daria uma surra'... 'se eu não lesse ficaria de castigo por um
ano'... 'quantas vezes deixei de almoçar para comprar um
livro'... 'minha pobre mesada ia em livros'... 'meu pai nunca me
deu nada'... 'eu trabalhava a semana inteira e aos domingos
ficava lendo'... 'sempre li no ônibus ou no metrô'...
As desculpas expostas não se justificam por várias
razões. A mais forte: cada um de nós possui um universo distinto
de experiência, de vida, sempre irrepetível. Nada de
comparações, muito menos, se você é um verdadeiro educador. O
que seu aluno tem a ver com isso? As dificuldades enfrentadas
por nós não podem ser compartilhadas de maneira a colocar
estudantes numa posição de inferioridade. Ora, nada mais
repugnante para um estudante do que histórias de vidas
exemplares e dignas de serem seguidas... condutas sugeridas,
inclusive, os famosos exemplos de 'docentes sacrificados'"
(BAPTISTA: 2011, pp.55-6). |