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HÉLIO ROLA: Após refletir um pouco sobre a questão do autoditadismo,
concluí que o autodidatismo em estado puro não existe. Aprender qualquer
coisa é um ato social, penso. Senão vejamos: nasci em Fortaleza em 1937
e me iniciei nas artes plásticas criança ainda quando riscava, desenhava
nas calçadas da vizinhança com outras crianças. Também sofri de
influência de D. Eneida, mãe de amigos meus, que desenhava, com
perfeição , artistas de cinema e caras bonitas encontradas em revistas e
jornais. Estava eu às voltas com o hiper-realismo. Fazia arte pública,
grafites, e logo desenhos a lápis, seguidos de desenhos a tinta nanquim,
guache etc. Passei então a fazer guaches combinando com tinta nanquim de
cenas de meu cotidiano. Fui levado a conhecer Jean-Pierre Chabloz e
fiquei encantado com seus desenhos. Meu pai era garçom de um bar que
também tinha cinema. Para lá iam todos - políticos, advogados, médicos
etc., e também artistas. Meu pai, Antonio Rola, era amigo do poeta
Sidney Neto, do cronista Caio Cid, do artista R. Kampos, dentre outros.
Acho que de tanto propalar que tinha um filho pródigo, que desenhava e
pintava, alguém lhe disse que me levasse para conversar com algum
artista. Só me lembro que foi o Antonio Bandeira - no Salão de Abril, na
antiga Assembléia, no centro da cidade - quem viu meus desenhos e me
aconselhou a freqüentar a SCAP, e assim se deu. Depois passei no
vestibular em primeiro lugar e me formei em medicina, seis anos depois,
em 1961. Fiz pós-graduação, voltei para Fortaleza e me tornei professor
de bioquímica na Faculdade de Medicina da UFC. Em 1967, fui para Nova
York, fazer pós-doutorado, onde fiquei até 1970. Em meio aos afazeres
científicos, um dia recebi visita de um casal que queria me conhecer por
ser brasileiro, pois pretendia saber como localizar literatura sobre
bandoleiros do Nordeste, especialmente Lampião. Por conta das conversas
sobre arte, com esse casal, e não somente sobre ciências, retomei a
emoção de minha infância e voltei às artes plásticas. Passei a
frequentar museus e galerias. Ainda em Nova York, fui influenciado por
um amigo brasileiro que me iniciou em fotografia, que foi extremamente
oportuno e importante para mim, em meu fazer artístico. |
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FM: Em 1987 participas da criação do Grupo Aranha, cuja proposta era uma
mescla de arte coletiva e mural. Gostaria que me falasses um pouco da
formação do grupo e de suas interferências na paisagem urbana de
Fortaleza. Que destino encontraram os painéis de pintura mural coletivos
pintados naquele momento? Onde eles estão atualmente?
HR: Eu e minha família começamos a pintar muros na Praia de Iracema,
bairro onde morávamos, para acabar com o lixão que existia na esquina da
rua Potiguares com Tremembés. Muitos amigos participaram das pinturas
que aconteciam nos finais de semana, inclusive o Sérgio Pinheiro. Anos
depois, em 1987, quando de nosso retorno de Paris, Sérgio e eu, é que
ele teve a idéia de organizar um grupo de artistas para pintar muros,
inicialmente apenas no mesmo bairro. Daí surgiu o Grupo Aranha, que era
formado por mim, Sérgio Pinheiro, Eduardo Eloy, Kazume e Alano de
Freitas, dentre outros. O grupo não era fechado e nem sempre tinha a
mesma composição nas performances. O ateliê, depósito de tintas e
material de pintura, era na minha casa. É claro que conciliar essa
diversidade de artistas não foi tão simples. Primeiro começamos pintando
cada um a sua coisa. Dividíamos o muro em quatro partes iguais
(democracia?) e cada um pintava a sua. O resultado, apesar do lado a
lado, era um painel de individualidades. Depois evoluímos, passando a
pintar todos o projeto de alguém. Pintamos o muro de uma mercearia
seguindo um projeto de Kazume. Lembro-me que o Eduardo Eloy estava no
Uruguai e não participou, mas teve seu retrato incluído na pintura. Bom,
a evolução veio por conta dele mesmo, Eloy, que defendia uma pintura
solta/ação, que envolvesse a todos. Como nesses termos eu já me entendia
com ele - havíamos pintado a quatro mãos em outra oportunidade -, fiquei
entusiasmado. O tipo de pintura daí surgida, revelava uma diluição de
autoria e fazia com que afluísse um autor coletivo. Havia resistência
por parte dos demais, que temiam - segundo penso - que aquela maneira de
pintar viria a afetar sua própria arte. Os murais na Praia de Iracema
deram o que falar. Como fazíamos carga contra a poluição sonora e a
ocupação indevida dos espaços urbanos - tendo isto coincidido com o
movimento SOS Iracema -, passamos a ser notícia nos jornais locais,
enquanto sofríamos as retaliações do mercantilismo corrosivo (travestido
de turismo) que ali se implantava.
FM: Em 1996 te encontras ligado uma vez mais a uma atividade coletiva, o
grupo Tauape, cuja exposição Tauape Xilogravuras percorreu cidades como
Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Berlim. Todas as
críticas acerca dessa exposição referem-se ao essencial resgate
empreendido por vocês no tocante à tradição da xilogravura. O próprio
perfil estético dos seis artistas, a distinção existente entre eles, já
assinala uma condição nova e consistente na utilização de uma técnica.
Que mudanças observas no tratamento da xilogravura desde aquele momento
até os dias de hoje?
HR: Acho que no momento isto não é mais do que uma observação feita por
poucos. O que se constata é uma verdadeira inflação (no bom sentido) de
artistas, iniciantes ou não, que se dedicam à xilogravura em Fortaleza.
As diversas manifestações mostram que a prática da xilogravura foi
resgatada e perdeu as amarras com a idéia de uma arte-cabra-da-peste, e
com a subordinação santeira habitual e ganhou o mundo, do museu Portland
(EUA) até os confins da Cracóvia…
FM: Em 1999 participas de uma exposição sobre arte construtiva. O
conjunto de tua obra (pintura, muralismo, gravura, escultura, arte
postal), no entanto, não possui um único componente que a aproxime do
construtivismo. De alguma maneira, isto me recorda a definição de estilo
dada por René Crevel: “segredo de costureira, arte de arranjar os
restos”. Seria movido por uma concordância com Crevel que aceitas
participar de uma exposição em torno do construtivismo?
HR: Meu envolvimento com a arte construtiva veio por influência direta
do Zenon Barreto. Depois que voltei de Nova York, em 1970, quase que
diariamente visitava o Zenon e daí, de conversa em conversa, sobretudo
vendo o que ele fazia, tudo isso aliado às influências de Paul Klee e
Volpi, saí de uma pintura de conotação expressionista para um jogo de
cores, geométrico, de repetição de um módulo criando um equilíbrio entre
cheios e vazios. O módulo de repetição era uma casinha de porta e
janela. Em 1975, retornei a Nova York onde passei dois meses de férias e
pude apreciar e curtir de fato trabalhos dos americanos Mark Rothko,
Frank Stella, Barnet Newman e outros. Ampliei minha sensibilidade,
minimalismo e expressionismo abstrato ou figuratico etc. Em relação à
minha participação recente em uma mostra do MAUC/CE, ao lado de artistas
construtivistas da Europa, em face do que expus acima não tem nada de
estapafúrdio, pois me foi possível produzir uma série de trabalhos que
geraram alguns interesses.
FM: No catálogo da exposição Tauape Xilogravuras na Alemanha, em texto
assinado por Heinrick Stahr, se faz referência a uma relação entre caos
urbano e imagens caleidoscópicas no tocante às tuas xilogravuras ali
apresentadas. Idêntica leitura se poderia fazer de série de guaches
apresentadas em individual em Fortaleza (2001). Até que ponto o que é
denúncia se confunde com saudosismo em tua leitura das sociedades
contemporâneas?
HR: Você bem sabe que a maneira de fazer faz a arte, faz a vida. Os
guaches e as xilogravuras daquela época se encontram na sobrecarga de
imagens. Só que o humor das xilos é agressivo e inquietante, enquanto
que o dos guaches, por conta das cores, é feliz e brincalhão. Perdão,
porque sei que tudo é dito por alguém ao outro alguém que pode ser ele
mesmo. No caso, eu mesmo. Depois de sua pergunta refleti e arrisco a
dizer que saudosismo e denúncia são a mesma coisa.
FM: De volta ao lamaçal dos conceitos: por mais que se fale em
expressionismo figurativo para situar tua amplitude estética, penso que
realizas uma arte afeita à intranqüilidade, mágica ou fantástica, no
sentido de uma inquietude permanente. Gérard Legrand observou a fusão
entre consciente e inconsciente levada a termo por Max Ernst. Talvez
pudesses falar um pouco de tuas identificações com outros artistas. Bem
sei que trabalhas movido por uma volúpia, que te deixas perseguir
incansavelmente por uma idéia, uma suspeita, um estalo. De onde vem
isso, que afinidades encontras com teus pares e o que pretendes?
HR: Aprecio muitos e muitos artistas. Sofrer influências não tem um
fundamento racional. Tudo não passa de um encaixe emocional. Eu, como
você sabe, e por conta de não viver da arte - apesar de viver fazendo-a
-, é que me dou a liberdade de tentar coisas em várias direções. Em
Paris, no Centro Cultural de Val-Fleury, em 1981, fiz uma exposição
múltipla de pinturas, desenhos, objetos, fotomontagens etc., intitulada
Artesanato do cotidiano . Entretanto, desde o reinício em Nova York e
depois do natural entusiasmo por Van Gogh, Matisse, Picasso etc., o que
me chamou atenção mesmo foram os expressionistas alemães. Mas nunca me
contive diante de uma pintura do inglês Francis Bacon. Para uns pode
parecer incompreensível o fato de me tocar muito a pintura dos
estadunidenses Frank Stella, Kenneth Noland, Barnet Newman etc. É claro
que morando em Nova York tive a chance de ver bastante coisa. O
problema, na definição do artista, são as interdições advindas do
mercado e da crítica. Não fica bem para um artista fazer uma coisa hoje
e outra amanhã, segundo dizem. Por que não? Meus parabéns para os
artistas especialistas, que vão a fundo em suas buscas.
Bem, em relação a meus pares e afinidades. Antes da influência do Zenon
Barreto, tive as influências de Nova York. Picasso, Matisse, Paul Klee
etc. O Zenon me fez experimentar na arte construtiva. Também fiz uma boa
parceria com o Sérgio Pinheiro em Paris, entre 1979 e 1980. Enquanto ele
desenvolvia uma linha abstrata,a la Mondrian, eu me dediquei a tirar
figuras da caixa, algo na linha de Pandora, tirar da caixa o que ela
pudesse oferecer. Para mim, o resultado foi interessante e as esculturas
de hoje são fruto de um trabalho - a lógica da caixa que começou em
Paris nos anos 80. Já os guaches vêm das influências que recebi do
Eduardo Eloy e da pintura do Grupo Aranha em sua fase de pintura ação.
Tanto admiro, como já disse, uma pintura como a do Barnet Newman como a
de um Oskar Kokoshka.
FM: Humberto Maturana nos fala de “uma cultura alienada no
mercantilismo”, síntese que abrange competitividade, inveja, falsidade
ideológica, desprezo pelos valores comuns. A normatização do lucro - e
seus derivativos de massa (casa lotada, prêmios, capas de revista etc.)
- ilude facilmente uma consciência artística em estado embrionário, como
no caso brasileiro. O mercado de arte passa a ser visto como
contraventor e o artista como vítima. Recordo o sentido de religare dado
à criação artística em si. Até que ponto a arte nos separa, tendo se
tornado desagregadora?
HR: A arte nos une na procura e no encontro do novo em todas as
dimensões de nosso viver. Mas o pano de fundo, cultura (patriarcal) da
competição, nos desagrega e nos rouba o sentido do humano que é a
solidariedade. Não há solidariedade no mercado. A arte, ou o que quer
que assim seja chamado, não é uma entidade com existência fora do nosso
fazer humano. A arte surge quebrando consensos, mas acaba por se tornar
consenso (é quando ela morre para renascer quebrando o próprio consenso
antes estabelecido). Você vai dizer que na ciência e em qualquer outro
afazer humana é a mesma coisa. É mesmo!
FM: Tua opção por uma arte postal possui uma distinção essencial em
relação a uma maioria absoluta de recorrência ao meio: o intrínseco
valor artístico. O discurso inócuo e sobretudo a pirotecnia formal
desgastaram um promissor veículo de idéias. Hoje resulta fastidioso
deter-se em veleidades como poema visual, arte postal e corruptelas
similares. Observo tudo isto pensando na equívoca idade das formas.
Perdemos o sentido do diálogo? Há uma lei de mercado que estabelece
relação promíscua entre forma e conteúdo? Por que tanta sub-arte bate à
nossa porta?
HR: É uma pena que a força da arte postal tenha arrefecido ao longo do
tempo. Não é mais fashion. Mas, para mim, atende às minhas emoções. Faço
um desenho, escrevo algumas coisas, ou cometo uma poesia, e envio para
várias pessoas. Assim amplio meu raio de ação. Não tenho email, mas o
cartão postal vai longe. Por exemplo: faz tempo que eu envio o Rol@net,
que é como chamo minha arte postal, para muita gente, inclusive críticos
de arte como Jacob Klintowitz, Paulo Herkenhoff, Olívio Tavares, Lisbeth
Rebolo... Concordo, perdemos o sentido do diálogo e o artista atual,
meus pares, não parecem muito preocupados com esta questão. Acho que o
que você chama de relações promíscuas entre forma e conteúdo é o
resultado de se ver e ter a arte tão-somente como uma mercadoria. |