REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 22

 
 

 

 

 

 

CRISTINO CORTES

 

Aéreo relance sobre a poesia de Aurélio Porto

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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 ( I )

Face a uma obra como esta __ Flor de Um Dia / Poesia inédita reunida, Edições Sempre em Pé, 2009, 571 páginas __ a posição de um homem como eu só pode ser de respeito e admiração. E não poderei pretender mais do que chamar um pouco a atenção sobre ela __ e assim contribuir, modestamente embora, para sobre ela, e a dedicação do poeta que a escreveu, fazer a justiça possível.  

Face à extrema variedade e extensão desta poesia não poderei, na verdade, aspirar a mais do que fazer uma espécie de viagem aérea __ como quem a vê de longe, realçando os seus aspectos formais e exteriores, não me atrevendo à profundidade de análise e valorização para que me faltam as necessárias habilitações. Outros, mais dotados __ pelo menos na capacidade de síntese __, poderão ir por esses caminhos mais especificamente literários. Pela minha parte é um entusiasmado testemunho que aqui trago, com a esperança que o mesmo possa frutificar através de uma maior divulgação desta poesia __ que bem merece. 

Respeito e admiração comecei por dizer, e agora desenvolvo. Em primeiro lugar pela dedicação à poesia que foi toda a vida do Autor. Aurélio Porto nasceu em 1945, em Maio, no dia em que se assinou o armistício da segunda guerra mundial, e este livro reúne poemas desde o início dos anos sessenta __ nem o poeta os consegue datar lá muito bem, o que é compreensível __ até à actualidade, Julho de 2006. É, de facto, meio século de vida que aqui se acha poeticamente representada. E a sua vida, admite-se perfeitamente, poderá não ter sido fácil __ mas, sobretudo, foi muito variada em termos geográficos. 

Essa vida, quase nómada, foi resultado de uma actividade profissional __ pelo menos nos últimos tempos __ de tradutor e intérprete nas instâncias comunitárias em Bruxelas. Ela deu-lhe muito mundo e o conhecimento de variados autores que não serão, talvez, os mais divulgados. Aurélio Porto faz preceder a sua poesia de uma série de citações alheias, mais exactamente 18 de 17 autores. Eis os seus nomes, por ordem alfabética: Bernanos ( 2 ), Buffon, René Guy Cadou, René Char, Coleridge, T. S. Eliot, Edvard Grieg, Hermann Hesse, Holderlin, Arne Naess, Vitorino Nemésio, Nietzche, Aquilino Ribeiro, Shelley, Miguel de Unamuno, Simone Weil e William Woodsworth.  

Através das epígrafes de alguns livros poderemos acrescentar a esta relação os nomes de Leonid Borodin, Bernard Charbonneau, Keats, Rina Lasnier, Alexandre O’Neill e Antero de Quental. Um dos conjuntos tem como título «Uma leitura de Sebastião da Gama», com poemas referentes a cada um dos livros do poeta da Arrábida. Não falo nas dedicatórias, referências ou epígrafes apostos num ou noutro poema específico e de que, às vezes, as notas no final do volume se fazem eco. ( É uma outra guerra, essa das notas finais. Lá iremos. ) 

Em minha opinião o envolvimento vital de Aurélio Porto com a poesia pode ser aferido através da sua fortuna editorial, isto é, das diligências que, com sucesso variável, fez para editar a sua obra.  

Esta girou à volta de quatro momentos fundamentais: no final dos anos 60, entre os 23 e os 25 anos, começou Aurélio Porto a sua carreira literária, digamos assim. Em 1968 fez sair uma plaquete __ Despedida e viagem através de um país de amigos e de chuva __ cuja divulgação não ultrapassou a meia dúzia de amigos. ( Ele fala em 7 ou 8 cópias a papel químico. Mesmo que cada um desses amigos o tivesse dado a conhecer a mais três não teria sido grande a «saída» do jovem poeta. ) Francisco Sá-Carneiro ajudou-lhe a editar o livro Sétimo Outubro de Guerra com uma tiragem normal ( 250 exemplares ). Composto e impresso na Tipografia do Colégio dos Órfãos do Porto o seu custo foi de 3 000 escudos. A intervenção anti-guerra colonial é evidente, e bem compreensível dada a então escassa idade do lírico. 

No ano seguinte regista-se a colaboração na revista do Porto Erguer a voz e cantar __ com o poema em prosa, em vários parágrafos, O amor é tudo o que precisam __ e a publicação de uma segunda plaquete, já a stencil e rodando as duas centenas de exemplares, Vinte e quatro vezes Maio ( era, de facto, a idade do poeta. )  Em 1970, a terceira plaquete deste primeiro conjunto, Breve luz nos morde, em Lisboa, através da Livraria Nosso Tempo ( que já não existe ).  

Segue-se um longo intervalo e só depois de dobrado o cabo dos quarenta Aurélio Porto volta à carga, esgotado que fora, também, o seu primeiro ciclo de intervenção nas coisas ambientais. 1986 deve ter sido um ano mau para o poeta dado que, por falência da Moraes, o livro que para essa chancela acordara com o Pedro Tamen __ Verão chegando cedo na montanha, então com o subtítulo de 204 tercetos __ acabou por não ser publicado. Aurélio Porto vingar-se-ia, três anos depois, desse azar editorial.  

Em 1989 publica Investigação da Alegria __ o qual incluiu praticamente toda a «produção» poética do Autor até à data, recuperando os projectos acima indicados ( e calculo que também o livro «aprovado» pelo Pedro Tamen. Esse livro viria a ser, aliás, objecto de uma referência crítica de Manuel Frias Martins na Colóquio-Letras que Flor de Um Dia transcreve na sua última página, dita Marginália. )  

Apenas vinte anos mais tarde __ dado que também os títulos anunciados na DiVersos números 1 e 3, em 1998/99, não tiveram concretização __ , aos 65, ele conseguiu reunir e publicar, finalmente, a poesia da sua vida. ( Esperemos que haja acrescentos, evidentemente. Mas essa é outra questão; e se for trabalho para herdeiros isso só provará a desejável vitalidade do nosso vate ).  

Respeito e admiração falei no início __ e creio que quanto à dedicação de Aurélio Porto à causa da poesia ela está mais do que justificada. O poeta dedicou-lhe, na verdade, o melhor da sua vida __ e essa coerência é digna do maior apreço. Mas são sentimentos igualmente justificados face à obra efectivamente produzida, e ainda mais intensos depois de termos beneficiado da sua leitura. 

Flor de Um Dia recolhe, na verdade, quase toda a poesia escrita ao longo deste longo período. Basicamente partiu do tempo mais recente para o mais antigo; primeiro a poesia inédita e a seguir a anteriormente publicada. Organizou a sua obra em 28 conjuntos __ os quais, de alguma forma, se poderão considerar outros tantos livros, 22 na primeira parte e 6 na segunda. 

No total estão aqui reunidos 1127 poemas __ e a sua variedade formal e temática é o que primeiro impressiona, nem sequer se podendo dizer que houve uma evolução nítida em termos qualitativos. Em extensão encontramos desde o díptico de dois versos até ao poema torrencial de quase duas páginas; desde o poema inteiramente livre até ao soneto mais conseguidamente clássico; alguns poemas têm título mas a maioria deles prescinde. A obra não dispõe de índice dos poemas, mas apenas dos vários livros que o constituem. O mesmo é, no emtanto, substituído, de alguma forma, pela numeração sequencial dos poemas ( e das notas que lhes dizem respeito ).  

Por tudo isto me é difícil, face a um tão vasto universo, realçar o que seriam as suas linhas dominantes __ é que se estas são válidas para um livro ou outro poderão ser já desadequadas para os restantes. Mesmo assim, e decerto que bem atrevidamente, eu direi que do conjunto desta poesia ressalta a consciência política __ e ecológica __ de Aurélio Porto, o seu modo tão peculiar de invocar as crianças ou de se dirigir aos amigos. 

 

( II ) 

 

Feitas estas observações gerais podemos entrar no magno capítulo das notas. Flor de Um Dia recolhe, como dissemos, 1127 poemas. Aurélio Porto faz notas, no final do volume, a pelo menos 184 __ e o carácter dubitativo da contagem vem de que, às vezes, umas remetem para outras; mas também as há que dizem respeito a mais do que um poema. Ora isto, com vénia do poeta, parece-nos um franco exagero. 

Eu compreendo que Aurélio Porto quisesse encerrar de vez a questão e por isso tivesse preferido falar de mais do que de menos. Em notas transcreveu, por exemplo, os prefácios, notas ou dedicatórias que determinados poemas ou livros tiveram na sua edição original, ou quando foram organizados com essa finalidade. É mais matéria de arquivo do que propriamente informação com interesse geral relevante mas compreende-se: o poeta ficou aliviado, muitas daquelas notas são certamente para a sua própria memória futura, e o leitor, se assim o entender, pode passar à frente, como aconselhava o Régio. Também ainda se aceita a explicação do significado de alguns termos mais particulares ou regionais. 

Demasiado escrupuloso já às vezes me parece quando refere, num ou noutro poema, o eco ou a lembrança de algum outro poeta específico. Se se trata da identificação de um ou outro verso que assim tomou emprestado ainda vá que não vá; mas quando se trata de uma reminiscência mais vaga ou generalizada parece-me contraproducente o esforço. E inútil porque a cultura geral que assim se contribui para divulgar não se obtém por essa via __ mas tão somente pela leitura das obras referidas.  

Onde eu estou frontalmente contra, digamos assim, é naquelas notas em que o poeta explica as circunstâncias em que escreveu uma ou outra poesia e em quem pensa ao usar uma ou outra expressão: o conhecimento desse real de partida pode aumentar a nossa compreensibilidade do mesmo mas implicitamente diminui a carga poética de mistério e polivalência que lhe deveria estar inerente. É este o «pecado» de muitas das notas de Aurélio Porto.  

Apesar da extensão que este trabalho já leva não resisto, ainda, a fazer algumas considerações gerais sobre o soneto. Aurélio Porto pratica-o na sua versão clássica, e italiana, de duas quadras e dois tercetos. Nem sempre, no entanto, respeita rigorosamente a exigência de rima no final dos versos ou a medida tradicional dos mesmos. São três os livros em que o poeta privilegia o recurso ao soneto: Lei do amor, amor sem lei e Calendário de cal e azul ( a que em subtítulo, na versão publicada em 2002, chamava sonetos irregulares, qualificativo que logo contestei ).Em Os limites da economia __ um livro também praticamente de sonetos, uma vez que a excepção é o poema de abertura, curiosamente intitulado John Stuart Mill __ dá a impressão de o discurso ser único e a divisão em estrofes um tanto artificial.  

Verifica-se igualmente o facto de Aurélio Porto, em alguns casos, grafar os nomes das pessoas em minúsculas, quiçá antecipando comportamentos futuros de autores que desta originalidade fariam imagem __ e nome __ de marca. ( Ou poderá ter sido apenas gralha, acidente de tipografia. ) É curioso, por outro lado, como o poeta demonstra ser capaz de escrever um belo soneto sobre uma teoria científica, aparentemente árida e nos antípodas da poesia. Sirva de exemplo, porque há mais, o poema nº. 520, significativamente intitulado Big Bang. 

Há alguns livros que, por razões várias, particularmente me impressionaram. A terra toda, a terra em que vivemos, é um dos mais formalmente homogéneos de todo o conjunto, tanto estilística como formalmente. A lágrima primitiva creio que se tenta aproximar das grandes odes de Álvaro de Campos, ou talvez da poesia de Jorge de Sena desse tempo, nomeadamente a vertida na coimbrã Êxodo. Esquisito, por variado e desigual, me parece um livro como Branco, azul e canela. Mas é nele que se encontram poemas muito conseguidos sobre árvores ( de fruto ). E nas composições mais curtos, próximas do hai-ku, ou do terceto na nossa tradição ocidental, nem sempre a taxa de sucesso __ se a expressão é legítima __ me parece particularmente elevada. ( Mas isso é um tanto inevitável. ) É o caso de livros como Verão quente em país frio, Despedida, Verão chegando cedo na montanha e Breve luz nos morde

Mais relevante, e rara em termos gerais, é a preocupação expressa por Aurélio Porto em escrever à portuguesa determinadas palavras estrangeiras. Sirvam de exemplo dois poemas: no 540, retirado do livro Os limites da economia podemos ler lanjerias, náilone, chifre dos aferes, autedores, clipe, estripetize, pruderies. O próprio poema se intitula márquetim. Mas já antes, no poema 641, a lição era idêntica: disáineres, butiqueiros, xopincentros, draguestores. Curiosamente o latim __ urbi et orbi __ mantém-se puro. Mais do que aplaudir a opção __ já que discorrer sobre ela exigiria mais vastas considerações __ há que realçar a originalidade e a coerência do poeta. É um caminho perfeitamente legítimo, sem dúvida. 

Menos importantes__ embora inevitáveis em recolha desta envergadura __ são alguns pequenos erros de ortografia, gralhas evidentemente. Dou apenas um exemplo: no poema 846 está dansando ( quando deveria ser dançando ). No poema 1044 há uma falta de correspondência em número: Abriam as palavras nas nossas mão. Falta, claramente, um s no final. O que também faz falta, em alguns casos, é a pontuação clássica. A sua inexistência torna ambíguo, por exemplo, o poema número 138: os versos 8 e 9 pertencem, parece-me, ao coração que repousa no verso anterior __ mas conviria que este entendimento, se é o correcto, fosse explicitamente assumido pelo autor.  

O poema número 1049 __ …/ esperança ganha depois da esperança / pequena mão de carne / teimosa , frágil / pertinaz __ terá tido origem no nascimento de algum filho?! ( Circunstância da vida privada do poeta, claro. ) Há três notas que são anunciadas __ mas não existem. É o caso dos poemas 310 e 544 nas páginas 103 e 306 __ mas sobre qualquer deles nada consta na relação final dessas observações. Na nota ao poema 1003 remete-se para uma nota no poema 1076. Mas ela não existe: nem asterisco nem nota. 

Em resumo e em conclusão: se me pedissem para escolher um poema, desta Flor de Um Dia, que fosse representativo do génio do poeta ser-me-ia impossível responder. Na verdade a extrema variedade formal dos versos aqui reunidos por Aurélio Porto não tornaria honesta uma tal síntese. O que se dissesse pecaria sempre por defeito. 

E chego ao fim, oh meus amigos, de alguma forma __ e a vários títulos __ impressionado com a magnitude do envolvimento poético de Aurélio Porto. O bardo merece bem ser conhecido e lido __ e é tão somente para esse resultado que eu pretendo contribuir. Se um só leitor lhe dispensar a atenção com que eu acabei de o ler __ porque amplamente a merece __ já me dou por satisfeito. E decerto que os nossos dias serão, após essa leitura, bem mais floridos.

 

Cristino Cortes

Linda-a-Velha, 2/8/2010

 

 

 

 

 

Cristino Cortes nasceu em Fiães (1953), uma pequena aldeia do concelho de Trancoso. Licenciado em Economia, reside em Lisboa desde 1971. A sua actividade profissional decorreu, quase toda, no Ministério da Cultura. Fundamentalmente poeta, publicou 10 livros desde 1985.Havendo de destacar alguns citaremos: Ciclo do Amanhecer, por ter sido o primeiro; 33 Sonetos de Amor e Circunstância, em 1987, por ter tido uma segunda edição em 1993; Poemas de Amor e Melodia, em 1999, pela mesma razão, dez anos mais tarde, em versão aumentada e definitiva; O Livro do Pai, em 2001, por ter sido traduzido em francês ( 2006 ) e em castelhano ( 2011 ), tendo tido uma segunda edição bilingue no primeiro caso; Sonetos (In)temporais, em 2004, por ser uma edição exclusivamente para o Brasil; e Música de Viagem, em 2008, por ter sido o último.
  Tem, também, versado outras modalidades ( o conto, a crónica, o artigo de opinião, a página de diário ) em vários jornais e revistas, nacionais e estrangeiras, tendo reunido alguns desses trabalhos em quatro livros. Para a Universitária Editora organizou, ainda, duas antologias. Apresentou publicamente livros e proferiu conferências. A sua obra tem tido algum eco em países estrangeiros ( Espanha e França, sobretudo, mas ultimamente também na Alemanha, na Bélgica e no Brasil ) e ele próprio, tem traduzido e publicado poemas em francês. Os seus livros tiveram apresentações públicas em diversos locais do País. Está representado em várias antologias e livros colectivos. A sua obra tem sido objecto de alguma atenção crítica destacando-se, em forma de livro, José Fernando Tavares, Júlio Conrado e Isabel Gouveia.

 

 

© Maria Estela Guedes
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