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(
I )
Face
a uma obra como esta __ Flor de Um Dia / Poesia inédita reunida,
Edições Sempre em Pé, 2009, 571 páginas __ a posição de um homem como eu
só pode ser de respeito e admiração. E não poderei pretender mais do que
chamar um pouco a atenção sobre ela __ e assim contribuir, modestamente
embora, para sobre ela, e a dedicação do poeta que a escreveu, fazer a
justiça possível.
Face
à extrema variedade e extensão desta poesia não poderei, na verdade,
aspirar a mais do que fazer uma espécie de viagem aérea __ como quem a
vê de longe, realçando os seus aspectos formais e exteriores, não me
atrevendo à profundidade de análise e valorização para que me faltam as
necessárias habilitações. Outros, mais dotados __ pelo menos na
capacidade de síntese __, poderão ir por esses caminhos mais
especificamente literários. Pela minha parte é um entusiasmado
testemunho que aqui trago, com a esperança que o mesmo possa frutificar
através de uma maior divulgação desta poesia __ que bem merece.
Respeito e admiração comecei por dizer, e agora desenvolvo. Em primeiro
lugar pela dedicação à poesia que foi toda a vida do Autor. Aurélio
Porto nasceu em 1945, em Maio, no dia em que se assinou o armistício da
segunda guerra mundial, e este livro reúne poemas desde o início dos
anos sessenta __ nem o poeta os consegue datar lá muito bem, o que é
compreensível __ até à actualidade, Julho de 2006. É, de facto, meio
século de vida que aqui se acha poeticamente representada. E a sua vida,
admite-se perfeitamente, poderá não ter sido fácil __ mas, sobretudo,
foi muito variada em termos geográficos.
Essa
vida, quase nómada, foi resultado de uma actividade profissional __ pelo
menos nos últimos tempos __ de tradutor e intérprete nas instâncias
comunitárias em Bruxelas. Ela deu-lhe muito mundo e o conhecimento de
variados autores que não serão, talvez, os mais divulgados. Aurélio
Porto faz preceder a sua poesia de uma série de citações alheias, mais
exactamente 18 de 17 autores. Eis os seus nomes, por ordem alfabética:
Bernanos ( 2 ), Buffon, René Guy Cadou, René Char, Coleridge, T. S.
Eliot, Edvard Grieg, Hermann Hesse, Holderlin, Arne Naess, Vitorino
Nemésio, Nietzche, Aquilino Ribeiro, Shelley, Miguel de Unamuno, Simone
Weil e William Woodsworth.
Através das epígrafes de alguns livros poderemos acrescentar a esta
relação os nomes de Leonid Borodin, Bernard Charbonneau, Keats, Rina
Lasnier, Alexandre O’Neill e Antero de Quental. Um dos conjuntos tem
como título «Uma leitura de Sebastião da Gama», com poemas referentes a
cada um dos livros do poeta da Arrábida. Não falo nas dedicatórias,
referências ou epígrafes apostos num ou noutro poema específico e de
que, às vezes, as notas no final do volume se fazem eco. ( É uma outra
guerra, essa das notas finais. Lá iremos. )
Em
minha opinião o envolvimento vital de Aurélio Porto com a poesia pode
ser aferido através da sua fortuna editorial, isto é, das diligências
que, com sucesso variável, fez para editar a sua obra.
Esta
girou à volta de quatro momentos fundamentais: no final dos anos 60,
entre os 23 e os 25 anos, começou Aurélio Porto a sua carreira
literária, digamos assim. Em 1968 fez sair uma plaquete __ Despedida
e viagem através de um país de amigos e de chuva __ cuja divulgação
não ultrapassou a meia dúzia de amigos. ( Ele fala em 7 ou 8 cópias a
papel químico. Mesmo que cada um desses amigos o tivesse dado a conhecer
a mais três não teria sido grande a «saída» do jovem poeta. ) Francisco
Sá-Carneiro ajudou-lhe a editar o livro Sétimo Outubro de Guerra
com uma tiragem normal ( 250 exemplares ). Composto e impresso na
Tipografia do Colégio dos Órfãos do Porto o seu custo foi de 3 000
escudos. A intervenção anti-guerra colonial é evidente, e bem
compreensível dada a então escassa idade do lírico.
No
ano seguinte regista-se a colaboração na revista do Porto Erguer a voz e
cantar __ com o poema em prosa, em vários parágrafos, O amor é tudo o
que precisam __ e a publicação de uma segunda plaquete, já a stencil e
rodando as duas centenas de exemplares, Vinte e quatro vezes Maio
( era, de facto, a idade do poeta. ) Em 1970, a terceira plaquete deste
primeiro conjunto, Breve luz nos morde, em Lisboa, através da
Livraria Nosso Tempo ( que já não existe ).
Segue-se um longo intervalo e só depois de dobrado o cabo dos quarenta
Aurélio Porto volta à carga, esgotado que fora, também, o seu primeiro
ciclo de intervenção nas coisas ambientais. 1986 deve ter sido um ano
mau para o poeta dado que, por falência da Moraes, o livro que para essa
chancela acordara com o Pedro Tamen __ Verão chegando cedo na
montanha, então com o subtítulo de 204 tercetos __ acabou por não
ser publicado. Aurélio Porto vingar-se-ia, três anos depois, desse azar
editorial.
Em
1989 publica Investigação da Alegria __ o qual incluiu
praticamente toda a «produção» poética do Autor até à data, recuperando
os projectos acima indicados ( e calculo que também o livro «aprovado»
pelo Pedro Tamen. Esse livro viria a ser, aliás, objecto de uma
referência crítica de Manuel Frias Martins na Colóquio-Letras que
Flor de Um Dia transcreve na sua última página, dita Marginália. )
Apenas vinte anos mais tarde __ dado que também os títulos anunciados na
DiVersos números 1 e 3, em 1998/99, não tiveram concretização __ , aos
65, ele conseguiu reunir e publicar, finalmente, a poesia da sua vida. (
Esperemos que haja acrescentos, evidentemente. Mas essa é outra questão;
e se for trabalho para herdeiros isso só provará a desejável vitalidade
do nosso vate ).
Respeito e admiração falei no início __ e creio que quanto à dedicação
de Aurélio Porto à causa da poesia ela está mais do que justificada. O
poeta dedicou-lhe, na verdade, o melhor da sua vida __ e essa coerência
é digna do maior apreço. Mas são sentimentos igualmente justificados
face à obra efectivamente produzida, e ainda mais intensos depois de
termos beneficiado da sua leitura.
Flor de Um Dia recolhe, na
verdade, quase toda a poesia escrita ao longo deste longo período.
Basicamente partiu do tempo mais recente para o mais antigo; primeiro a
poesia inédita e a seguir a anteriormente publicada. Organizou a sua
obra em 28 conjuntos __ os quais, de alguma forma, se poderão considerar
outros tantos livros, 22 na primeira parte e 6 na segunda.
No
total estão aqui reunidos 1127 poemas __ e a sua variedade formal e
temática é o que primeiro impressiona, nem sequer se podendo dizer que
houve uma evolução nítida em termos qualitativos. Em extensão
encontramos desde o díptico de dois versos até ao poema torrencial de
quase duas páginas; desde o poema inteiramente livre até ao soneto mais
conseguidamente clássico; alguns poemas têm título mas a maioria deles
prescinde. A obra não dispõe de índice dos poemas, mas apenas dos vários
livros que o constituem. O mesmo é, no emtanto, substituído, de alguma
forma, pela numeração sequencial dos poemas ( e das notas que lhes dizem
respeito ).
Por
tudo isto me é difícil, face a um tão vasto universo, realçar o que
seriam as suas linhas dominantes __ é que se estas são válidas para um
livro ou outro poderão ser já desadequadas para os restantes. Mesmo
assim, e decerto que bem atrevidamente, eu direi que do conjunto desta
poesia ressalta a consciência política __ e ecológica __ de Aurélio
Porto, o seu modo tão peculiar de invocar as crianças ou de se dirigir
aos amigos.
(
II )
Feitas estas observações gerais podemos entrar no magno capítulo das
notas. Flor de Um Dia recolhe, como dissemos, 1127 poemas.
Aurélio Porto faz notas, no final do volume, a pelo menos 184 __ e o
carácter dubitativo da contagem vem de que, às vezes, umas remetem para
outras; mas também as há que dizem respeito a mais do que um poema. Ora
isto, com vénia do poeta, parece-nos um franco exagero.
Eu
compreendo que Aurélio Porto quisesse encerrar de vez a questão e por
isso tivesse preferido falar de mais do que de menos. Em notas
transcreveu, por exemplo, os prefácios, notas ou dedicatórias que
determinados poemas ou livros tiveram na sua edição original, ou quando
foram organizados com essa finalidade. É mais matéria de arquivo do que
propriamente informação com interesse geral relevante mas compreende-se:
o poeta ficou aliviado, muitas daquelas notas são certamente para a sua
própria memória futura, e o leitor, se assim o entender, pode passar à
frente, como aconselhava o Régio. Também ainda se aceita a explicação do
significado de alguns termos mais particulares ou regionais.
Demasiado escrupuloso já às vezes me parece quando refere, num ou noutro
poema, o eco ou a lembrança de algum outro poeta específico. Se se trata
da identificação de um ou outro verso que assim tomou emprestado ainda
vá que não vá; mas quando se trata de uma reminiscência mais vaga ou
generalizada parece-me contraproducente o esforço. E inútil porque a
cultura geral que assim se contribui para divulgar não se obtém por essa
via __ mas tão somente pela leitura das obras referidas.
Onde
eu estou frontalmente contra, digamos assim, é naquelas notas em que o
poeta explica as circunstâncias em que escreveu uma ou outra poesia e em
quem pensa ao usar uma ou outra expressão: o conhecimento desse real de
partida pode aumentar a nossa compreensibilidade do mesmo mas
implicitamente diminui a carga poética de mistério e polivalência que
lhe deveria estar inerente. É este o «pecado» de muitas das notas de
Aurélio Porto.
Apesar da extensão que este trabalho já leva não resisto, ainda, a fazer
algumas considerações gerais sobre o soneto. Aurélio Porto pratica-o na
sua versão clássica, e italiana, de duas quadras e dois tercetos. Nem
sempre, no entanto, respeita rigorosamente a exigência de rima no final
dos versos ou a medida tradicional dos mesmos. São três os livros em que
o poeta privilegia o recurso ao soneto: Lei do amor, amor sem lei
e Calendário de cal e azul ( a que em subtítulo, na versão
publicada em 2002, chamava sonetos irregulares, qualificativo que logo
contestei ).Em Os limites da economia __ um livro também
praticamente de sonetos, uma vez que a excepção é o poema de abertura,
curiosamente intitulado John Stuart Mill __ dá a impressão de o discurso
ser único e a divisão em estrofes um tanto artificial.
Verifica-se igualmente o facto de Aurélio Porto, em alguns casos, grafar
os nomes das pessoas em minúsculas, quiçá antecipando comportamentos
futuros de autores que desta originalidade fariam imagem __ e nome __ de
marca. ( Ou poderá ter sido apenas gralha, acidente de tipografia. ) É
curioso, por outro lado, como o poeta demonstra ser capaz de escrever um
belo soneto sobre uma teoria científica, aparentemente árida e nos
antípodas da poesia. Sirva de exemplo, porque há mais, o poema nº. 520,
significativamente intitulado Big Bang.
Há
alguns livros que, por razões várias, particularmente me impressionaram.
A terra toda, a terra em que vivemos, é um dos mais formalmente
homogéneos de todo o conjunto, tanto estilística como formalmente. A
lágrima primitiva creio que se tenta aproximar das grandes odes de
Álvaro de Campos, ou talvez da poesia de Jorge de Sena desse tempo,
nomeadamente a vertida na coimbrã Êxodo. Esquisito, por variado e
desigual, me parece um livro como Branco, azul e canela. Mas é
nele que se encontram poemas muito conseguidos sobre árvores ( de fruto
). E nas composições mais curtos, próximas do hai-ku, ou do terceto na
nossa tradição ocidental, nem sempre a taxa de sucesso __ se a expressão
é legítima __ me parece particularmente elevada. ( Mas isso é um tanto
inevitável. ) É o caso de livros como Verão quente em país frio,
Despedida, Verão chegando cedo na montanha e Breve luz
nos morde.
Mais
relevante, e rara em termos gerais, é a preocupação expressa por Aurélio
Porto em escrever à portuguesa determinadas palavras estrangeiras.
Sirvam de exemplo dois poemas: no 540, retirado do livro Os limites
da economia podemos ler lanjerias, náilone, chifre dos aferes,
autedores, clipe, estripetize, pruderies. O próprio poema se intitula
márquetim. Mas já antes, no poema 641, a lição era idêntica: disáineres,
butiqueiros, xopincentros, draguestores. Curiosamente o latim __ urbi et
orbi __ mantém-se puro. Mais do que aplaudir a opção __ já que discorrer
sobre ela exigiria mais vastas considerações __ há que realçar a
originalidade e a coerência do poeta. É um caminho perfeitamente
legítimo, sem dúvida.
Menos
importantes__ embora inevitáveis em recolha desta envergadura __ são
alguns pequenos erros de ortografia, gralhas evidentemente. Dou apenas
um exemplo: no poema 846 está dansando ( quando deveria ser dançando ).
No poema 1044 há uma falta de correspondência em número: Abriam as
palavras nas nossas mão. Falta, claramente, um s no final. O que também
faz falta, em alguns casos, é a pontuação clássica. A sua inexistência
torna ambíguo, por exemplo, o poema número 138: os versos 8 e 9
pertencem, parece-me, ao coração que repousa no verso anterior __ mas
conviria que este entendimento, se é o correcto, fosse explicitamente
assumido pelo autor.
O
poema número 1049 __ …/ esperança ganha depois da esperança / pequena
mão de carne / teimosa , frágil / pertinaz __ terá tido origem no
nascimento de algum filho?! ( Circunstância da vida privada do poeta,
claro. ) Há três notas que são anunciadas __ mas não existem. É o caso
dos poemas 310 e 544 nas páginas 103 e 306 __ mas sobre qualquer deles
nada consta na relação final dessas observações. Na nota ao poema 1003
remete-se para uma nota no poema 1076. Mas ela não existe: nem asterisco
nem nota.
Em
resumo e em conclusão: se me pedissem para escolher um poema, desta
Flor de Um Dia, que fosse representativo do génio do poeta ser-me-ia
impossível responder. Na verdade a extrema variedade formal dos versos
aqui reunidos por Aurélio Porto não tornaria honesta uma tal síntese. O
que se dissesse pecaria sempre por defeito.
E
chego ao fim, oh meus amigos, de alguma forma __ e a vários títulos __
impressionado com a magnitude do envolvimento poético de Aurélio Porto.
O bardo merece bem ser conhecido e lido __ e é tão somente para esse
resultado que eu pretendo contribuir. Se um só leitor lhe dispensar a
atenção com que eu acabei de o ler __ porque amplamente a merece __ já
me dou por satisfeito. E decerto que os nossos dias serão, após essa
leitura, bem mais floridos.
Cristino Cortes
Linda-a-Velha,
2/8/2010 |