|
Escritos por pesquisadores do Grupo de Estudos em
Literatura Brasileira Contemporânea, da Universidade de Brasília (UnB),
liderado pela professora Regina Dalcastagnè, estes textos debruçam-se
sobre questões que “envolvem a teorização crítica do que entendemos por
representação, papel do intelectual nos domínios do exercício desta
exclusão e os modos discursivos literários que formulam novas cenas para
a ficção contemporânea”, como observam os organizadores na apresentação
que escreveram para este livro.
A própria professora Regina Dalcastagnè, no segundo
capítulo do livro, “Contas a prestar: o intelectual e a massa em A hora
da estrela, de Clarice Lispector”, discute essa questão que, na
literatura brasileira, vem desde que Machado de Assis (1839-1908)
escreveu Dom Casmurro, criando um narrador altamente suspeito, pouco
merecedor de crédito, em substituição à antiga figura do narrador
todo-poderoso que tudo sabia e comandava. Para a ensaísta, um narrador
suspeito sempre exige um leitor compromissado. E disposto a
questioná-lo, acrescente-se.
A professora lembra que, em A hora da estrela, seu
último livro, Clarice Lispector (1920-1977) preferiu esconder-se atrás
de um narrador homem, Rodrigo S.M, para contar a história de Macabéa,
uma nordestina pobre e sem atrativos. Talvez porque até àquela altura,
ou seja, 1977, ano da publicação do livro, ela era ainda tida como
praticante de uma literatura intimista, pois, afinal, suas protagonistas
eram, em geral, mulheres da classe média ou da burguesia. Assim, Clarice
coloca seu narrador dizendo que a existência de uma migrante nordestina
no Rio de Janeiro só podia ser descrita com objetividade e clareza, o
que só poderia ser feito por homens. Portanto, há aqui uma denúncia não
só do preconceito contra a mulher e a escrita feminina como contra o
pobre e sua presença na literatura, observa Regina Dalcastalgnè.
Para a ensaísta, o narrador de Clarice Lispector é
duplamente suspeito – primeiro porque é um intelectual falando de uma
mulher do povo e a reafirmando o seu preconceito e, depois, porque usa a
miséria de sua protagonista para não parecer, ele mesmo, tão miserável.
“É claro que essa suspeição não existe por si só, ela vai sendo
construída junto e no discurso de Rodrigo. Ele é quem se denuncia, quem
chama a atenção do leitor para suas contradições, seus temores. Ao lhe
dar fala, Lispector o incumbiu também de ser humano: forte o suficiente
para esmagar o outro, fraco o bastante para deixar cair a própria
máscara (ou seria o contrário?)”, questiona.
II
Em “O escritor-personagem: considerações sobre um
centro instável”, Igor Ximenes Graciano cita uma pesquisa feita pelo
grupo de estudos dirigido pela professora Regina Dalcastagnè que traça o
perfil do escritor brasileiro contemporâneo: na maior parte, homem,
branco, com diploma universitário e morador num grande centro urbano e
que, portanto, parte com seu olhar de uma perspectiva privilegiada.
Depois, citando Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual o “o escritor não
tira suas histórias de si mesmo nem usa a pobreza e a marginalidade como
temas de impacto documental, colocando-se na pele de personagens bem
diversas de si mesmo”, conclui que a autorrepresentação é um recurso
largamente utilizado na narrativa brasileira atual.
Já Bruna Paiva de Lucena preferiu discutir as obras
de dois outsiders da literatura brasileira do século XX: Antônio
Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré (1909-2002), autor de
Inspiração nordestina, e Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de
Quarto de despejo. Como se sabe, ambos não eram intelectuais nem pessoas
bem formadas quando irromperam na cena literária brasileira. Patativa
era um homem do povo, autor de folhetos de cordel, como tantos outros
que nunca mereceram uma linha ou citação em estudos acadêmicos.
Já Carolina Maria de Jesus, moradora numa favela em
São Paulo, era uma catadora de lixo que registrava suas emoções em
cadernos escolares, até que, um dia, foi “descoberta” pelo jornalista
Audálio Dantas. Ambos tiveram livros publicados, que se inscreveram no
circuito normal das livrarias, mas continuaram a ser recebidos pela
academia e por aqueles leitores mais refinados com ressalvas, como
autores de “literatura popular que não está em seu devido lugar”, diz
Bruna Lucena, acrescentando, em suas conclusões, que “a literatura de
Patativa e Carolina desafia os valores estéticos dominantes da tradição
culta e letrada, bem como coloca em xeque os cânones literários
dominantes”.
No ensaio “O espaço social da voz: preconceito e
literatura”, Susana Moreira de Lima preferiu concentrar seu estudo em
Carolina Maria de Jesus, definindo Quarto de despejo, livro publicado na
década de 1960, como “um grito através do qual se ouve a voz legítima do
excluído”. Mas observa que, ainda que haja autenticidade no relato, a
narradora optou por tentar se aproximar do referencial canônico,
buscando uma identificação com a linguagem aceita pela sociedade.
Diz a autora que, no romance, nem sempre as
concordâncias (verbais) acompanham a elegância que Carolina procura dar
ao discurso de sua personagem, caprichando no uso, às vezes correto, da
colocação dos pronomes oblíquos. Seja como for, acrescenta, Carolina
ousou fazer algo somente permitido a quem teve acesso à educação formal
elitizada, a escrita. Ou seja, “Carolina acreditou que um dia seus
escritos seriam lidos e não deixou de concretizá-los, ainda que de modo
precário no uso da língua do ponto de vista da gramática tradicional”.
Para Susana Moreira de Lima, essa precariedade nas
condições da escrita da autora denuncia a precariedade de sua vida e a
de milhões de pessoas iguais a ela, com menos condição ainda, pois a
maioria não é capaz de ler ou escrever nada. “Esse é o retrato de um
país de excluídos. Um país que, como a própria personagem de Carolina
diz, abriga uma parcela privilegiada de sua população na “sala de
visitas” e grande parte de seus cidadãos vivem à margem, não só do
conforto e do bem-estar, mas do processo de alfabetização integral, da
educação formal adequada, enfim, do acesso aos bens culturais”, observa.
III
Por seu lado, no ensaio “A literatura negra no
Brasil”, Cíntia Schwantes aborda uma questão ainda pouco discutida: a
pouca visibilidade do escritor negro no Brasil. E lembra que, no País,
literatura negra refere-se à produção de autores engajados que passaram
a publicar de forma coletiva na esteira da organização do Movimento
Negro Unificado, exatamente pelo pouco (ou nenhum) espaço que
encontravam em editoras tradicionais, diga-se de passagem. Foi a partir
de 1982 que o movimento Quilombhoje passou a publicar os Cadernos
Negros, reunindo prosa e poesia de escritores afrobrasileiros, tendo à
frente o escritor e jornalista Oswaldo Camargo.
Hoje, há um número expressivo de autores negros que
estão publicando e pertencem a uma classe média ilustrada, diz a autora,
mas sem especificá-los. Seja como for, a verdade é que esses autores
ainda pouca visibilidade têm na mídia, da mesma forma que escritores
afrodescendentes de expressão portuguesa pouca receptividade têm em
editoras brasileiras – exceção, praticamente, para a Editora Ática com
sua coleção Autores Africanos (1970-1980). Tanto que o moçambicano
Ungulani Ba Ka Khosa, um dos maiores escritores africanos de expressão
portuguesa das últimas décadas, continua inédito no Brasil.
Já qualquer escritor lusodescendente nascido em
África não enfrenta dificuldades para encontrar editora em Portugal e no
Brasil e ganhar espaço generoso na universidade e na mídia, independente
da qualidade de sua produção. Mas esta é uma discussão que ainda não
ganhou força. Talvez porque aqueles que denunciam essa situação
continuem também à margem dos espaços sociais de produção discursiva,
enfim, dos meios de produção. E só agora com a Internet é que esse
processo começa (ou pode) se reverter. |