REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 22

 

 

 I

Qual é o papel do intelectual na questão da exclusão das grandes massas do campo da cultura? Há legitimidade naquela literatura que procura representar os marginalizados, que estão afastados dos espaços sociais de produção discursiva e assim são sempre apresentados por meio de um olhar externo, de quem, bem posto da vida, procura se passar por um dos excluídos? É o que procuram discutir os 14 ensaios reunidos em Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea, de Regina Dalcastagnè e Paulo C. Thomaz, organizadores (Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 2011). 

ADELTO GONÇALVES

A vida vista pelas margens

PELAS MARGENS: REPRESENTAÇÃO NA NARRATIVA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA, de Regina Dalcastagnè e Paulo C. Thomaz (orgs.). Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 263 págs., 2011, R$ 39,00. Site: www.editorahorizonte.com.br E-mail:contato@editorahorizonte.com.br

 

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Escritos por pesquisadores do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, da Universidade de Brasília (UnB), liderado pela professora Regina Dalcastagnè, estes textos debruçam-se sobre questões que “envolvem a teorização crítica do que entendemos por representação, papel do intelectual nos domínios do exercício desta exclusão e os modos discursivos literários que formulam novas cenas para a ficção contemporânea”, como observam os organizadores na apresentação que escreveram para este livro.

A própria professora Regina Dalcastagnè, no segundo capítulo do livro, “Contas a prestar: o intelectual e a massa em A hora da estrela, de Clarice Lispector”, discute essa questão que, na literatura brasileira, vem desde que Machado de Assis (1839-1908) escreveu Dom Casmurro, criando um narrador altamente suspeito, pouco merecedor de crédito, em substituição à antiga figura do narrador todo-poderoso que tudo sabia e comandava. Para a ensaísta, um narrador suspeito sempre exige um leitor compromissado. E disposto a questioná-lo, acrescente-se.

A professora lembra que, em A hora da estrela, seu último livro, Clarice Lispector (1920-1977) preferiu esconder-se atrás de um narrador homem, Rodrigo S.M, para contar a história de Macabéa, uma nordestina pobre e sem atrativos. Talvez porque até àquela altura, ou seja, 1977, ano da publicação do livro, ela era ainda tida como praticante de uma literatura intimista, pois, afinal, suas protagonistas eram, em geral, mulheres da classe média ou da burguesia. Assim, Clarice coloca seu narrador dizendo que a existência de uma migrante nordestina no Rio de Janeiro só podia ser descrita com objetividade e clareza, o que só poderia ser feito por homens. Portanto, há aqui uma denúncia não só do preconceito contra a mulher e a escrita feminina como contra o pobre e sua presença na literatura, observa Regina Dalcastalgnè.

Para a ensaísta, o narrador de Clarice Lispector é duplamente suspeito – primeiro porque é um intelectual falando de uma mulher do povo e a reafirmando o seu preconceito e, depois, porque usa a miséria de sua protagonista para não parecer, ele mesmo, tão miserável. “É claro que essa suspeição não existe por si só, ela vai sendo construída junto e no discurso de Rodrigo. Ele é quem se denuncia, quem chama a atenção do leitor para suas contradições, seus temores. Ao lhe dar fala, Lispector o incumbiu também de ser humano: forte o suficiente para esmagar o outro, fraco o bastante para deixar cair a própria máscara (ou seria o contrário?)”, questiona.

                                                           II

Em “O escritor-personagem: considerações sobre um centro instável”, Igor Ximenes Graciano cita uma pesquisa feita pelo grupo de estudos dirigido pela professora Regina Dalcastagnè que traça o perfil do escritor brasileiro contemporâneo: na maior parte, homem, branco, com diploma universitário e morador num grande centro urbano e que, portanto, parte com seu olhar de uma perspectiva privilegiada. Depois, citando Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual o “o escritor não tira suas histórias de si mesmo nem usa a pobreza e a marginalidade como temas de impacto documental, colocando-se na pele de personagens bem diversas de si mesmo”, conclui que a autorrepresentação é um recurso largamente utilizado na narrativa brasileira atual.

Já Bruna Paiva de Lucena preferiu discutir as obras de dois outsiders da literatura brasileira do século XX: Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré (1909-2002), autor de Inspiração nordestina, e Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de Quarto de despejo. Como se sabe, ambos não eram intelectuais nem pessoas bem formadas quando irromperam na cena literária brasileira. Patativa era um homem do povo, autor de folhetos de cordel, como tantos outros que nunca mereceram uma linha ou citação em estudos acadêmicos.

Já Carolina Maria de Jesus, moradora numa favela em São Paulo, era uma catadora de lixo que registrava suas emoções em cadernos escolares, até que, um dia, foi “descoberta” pelo jornalista Audálio Dantas. Ambos tiveram livros publicados, que se inscreveram no circuito normal das livrarias, mas continuaram a ser recebidos pela academia e por aqueles leitores mais refinados com ressalvas, como autores de “literatura popular que não está em seu devido lugar”, diz Bruna Lucena, acrescentando, em suas conclusões, que “a literatura de Patativa e Carolina desafia os valores estéticos dominantes da tradição culta e letrada, bem como coloca em xeque os cânones literários dominantes”.

No ensaio “O espaço social da voz: preconceito e literatura”, Susana Moreira de Lima preferiu concentrar seu estudo em Carolina Maria de Jesus, definindo Quarto de despejo, livro publicado na década de 1960, como “um grito através do qual se ouve a voz legítima do excluído”. Mas observa que, ainda que haja autenticidade no relato, a narradora optou por tentar se aproximar do referencial canônico, buscando uma identificação com a linguagem aceita pela sociedade.

Diz a autora que, no romance, nem sempre as concordâncias (verbais) acompanham a elegância que Carolina procura dar ao discurso de sua personagem, caprichando no uso, às vezes correto, da colocação dos pronomes oblíquos. Seja como for, acrescenta, Carolina ousou fazer algo somente permitido a quem teve acesso à educação formal elitizada, a escrita. Ou seja, “Carolina acreditou que um dia seus escritos seriam lidos e não deixou de concretizá-los, ainda que de modo precário no uso da língua do ponto de vista da gramática tradicional”.

Para Susana Moreira de Lima, essa precariedade nas condições da escrita da autora denuncia a precariedade de sua vida e a de milhões de pessoas iguais a ela, com menos condição ainda, pois a maioria não é capaz de ler ou escrever nada. “Esse é o retrato de um país de excluídos. Um país que, como a própria personagem de Carolina diz, abriga uma parcela privilegiada de sua população na “sala de visitas” e grande parte de seus cidadãos vivem à margem, não só do conforto e do bem-estar, mas do processo de alfabetização integral, da educação formal adequada, enfim, do acesso aos bens culturais”, observa.

                                                           III

Por seu lado, no ensaio “A literatura negra no Brasil”, Cíntia Schwantes aborda uma questão ainda pouco discutida: a pouca visibilidade do escritor negro no Brasil. E lembra que, no País, literatura negra refere-se à produção de autores engajados que passaram a publicar de forma coletiva na esteira da organização do Movimento Negro Unificado, exatamente pelo pouco (ou nenhum) espaço que encontravam em editoras tradicionais, diga-se de passagem. Foi a partir de 1982 que o movimento Quilombhoje passou a publicar os Cadernos Negros, reunindo prosa e poesia de escritores afrobrasileiros, tendo à frente o escritor e jornalista Oswaldo Camargo.

Hoje, há um número expressivo de autores negros que estão publicando e pertencem a uma classe média ilustrada, diz a autora, mas sem especificá-los. Seja como for, a verdade é que esses autores ainda pouca visibilidade têm na mídia, da mesma forma que escritores afrodescendentes de expressão portuguesa pouca receptividade têm em editoras brasileiras – exceção, praticamente, para a Editora Ática com sua coleção Autores Africanos (1970-1980). Tanto que o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, um dos maiores escritores africanos de expressão portuguesa das últimas décadas, continua inédito no Brasil.

Já qualquer escritor lusodescendente nascido em África não enfrenta dificuldades para encontrar editora em Portugal e no Brasil e ganhar espaço generoso na universidade e na mídia, independente da qualidade de sua produção. Mas esta é uma discussão que ainda não ganhou força. Talvez porque aqueles que denunciam essa situação continuem também à margem dos espaços sociais de produção discursiva, enfim, dos meios de produção. E só agora com a Internet é que esse processo começa (ou pode) se reverter.

 

 

 

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

 

 

© Maria Estela Guedes
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