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Para o que nos interessa neste artigo
acrescentemos que Occam não nega a realidade do conceito, mas vê-o
apenas como algo mental, tendo, por conseguinte, uma consistência
exclusivamente subjectiva, determinada e… singular, com uma função
puramente significante; o conceito é um signo das coisas, algo que está
em lugar delas e é deste modo que o usamos nos juízos e nos raciocínios.
À luz destas posições (e sem desenvolvermos como muitas das teses
nominalistas irão depois reaparecer em Russell e Wittgenstein)
percebemos como, apesar do termo sexualidade do nosso título, se
possa dizer que na obra de Ozpetek – e, aliás, na linha do que muitos
sexólogos vêm actualmente defendendo – não existe um padrão unívoco da
heterossexualidade, mas sim heterossexualidades, nem tão-pouco um
arquétipo da homossexualidade, mas antes homossexualidades. Uma posição
deste tipo não nega as derivações interpretativas centradas no primado
do genótipo e/ou do hipotálamo, antes as integra, mas recusa-se a ver o
comportamento sexual dos humanos determinado exclusivamente por uma
orientação originária, mecanicista e inamovível.
A tendência para abrir o leque, ao nível
da observação e da análise, dos vários comportamentos humanos de tipo
sexual – desembocando muitas vezes no âmbito da bissexualidade –
aparece, de forma nítida, mas ainda num pequeno número de filmes da
cinematografia europeia da segunda metade do século XX, são disso
exemplos três dos maiores realizadores desse período: Pasolini com o seu
Teorema (1968), Fellini com a sua adaptação do Satyricon
de Petrónio (1969) , Visconti adaptando também a novela de Mann,
Morte em Veneza (1971), e, no seu penúltimo filme, Violência e
Paixão (1974), entregando a Burt Lancaster o papel do velho
professor que, retirado e rodeado de livros e obras de arte, se vê
subitamente envolvido com um grupo de novos vizinhos, vindo a
desenvolver um relacionamento ambíguo com um deles. É evidente
que a função primordial de qualquer destes filmes não é aquela que aqui
estamos a referir – por exemplo, em Teorema e em Violência e
Paixão o objectivo é antes a desmontagem de alguns valores
intrínsecos à burguesia bem comportada, bem como a algumas
instituições nomeadamente a família. Aliás, e como mero parêntesis,
digamos que é nesta preocupação de dissecar o quotidiano dos bem
comportados que entroncam também alguns filmes já do século XXI,
como por exemplo o “Tudo pode dar certo” de Woody Allen (2009), onde o
pai de Melodie corre para Nova Iorque na busca da mulher e da filha e
acaba envolvido com alguém que não é filha nem sequer mulher, ou ainda o
radical “Transamerica” onde a actriz Felicity Huffman é soberba na
interpretação daquela transexual, a quem a sua compreensiva psiquiatra
não concede a autorização final para a mudança de sexo, enquanto este
ele não disser toda a verdade ao filho (Kevin Zegers) que havia
feito a uma colega de faculdade e que a vida acabara de colocar no seu
caminho. Parecendo ser apenas um filme sobre a mudança de género,
“Transamerica” (2006) é também uma grande aula de psicanálise, sobretudo
se nos pusermos a dissecar a relação das agora duas irmãs com a
mãe. Mas, e recuando às duas últimas décadas do século XX, a História do
Cinema conheceu um verdadeiro boom com autênticos estudos de caso que
irão entrecruzar: orientação sexual/ valores dominantes e contingência,
e esse boom invadirá quer o drama quer a comédia; relativamente a esta
última não nos podemos esquecer da lésbica de Belle Époque (
filme de Fernando Trueba, 1992), exemplarmente interpretada por Ariadna
Gil, que, a certa altura, se sente atraída pela personagem de Jorge Sanz,
sobretudo quando o descobre fantasiado de criada. É fazendo rir
que Trueba demonstra que a imaginação e a fantasia desorientam o
que até então era tido como A orientação sexual, assim como
altera um percurso que se julgava de pendor fixista e fá-lo através de
outras variáveis ligadas à aprendizagem e ao social. Até a violência,
sobretudo a física, pode desencadear essas mudanças comportamentais,
essa desorientação da orientação, como na cena de pugilato
no Oito Mulheres, de Ozon, quando Catherine Deneuve e Fanny
Ardant se amarfanham pelo chão de uma enorme sala. A prostituição
masculina, que Andy Warhol já tinha exibido na sua célebre trilogia (Flesh,
Trash e Heat), mas de que se fala hoje muito mais do que há algumas
décadas, traz para a luz do dia outro tipo de variáveis ligadas agora ao
sócio-económico, ao estatutário e ao desejo do novo e do fantasiado;
todavia, se um acompanhante heterossexual se pode colocar ao
serviço de mulheres, como Josiane Balasko muito bem retratou no seu
filme “Cliente” com uma esplendorosa interpretação de Nathalie Baye (não
nos esqueçamos do papel de lésbica que Balasko tão bem levara a cabo, no
filme “Gazon Maudit”, chegando ao ponto de seduzir a
heterossexualíssima personagem desempenhada por Victoria Abril, que,
na película, acabará dividida entre o marido e a inesperada amante), o
que é um facto é que esse mesmo indivíduo poderá também colocar a sua
orientação sexual à disposição de homens (Cf. devassos no paraíso de
João Silvério Trevisan, sobretudo as páginas 410-414, onde se referem
entrevistas de alguns desses acompanhantes casados e que contam
com o apoio das próprias mulheres, ávidas de um qualquer suplemento
remuneratório que lhes suavize o quotidiano, aliás, esta derivação de
tipo económico é também enfatizada no filme realizado por Balasko;
todavia, este território está ainda pouco estudado, principalmente na
parte que leva a que esses indivíduos, muitas vezes, se apaixonem pelas
suas (ou pelos seus), clientes e, fenómeno igualmente já constatado
neste meio, que leva ao estabelecimento de um elo preferencial de tipo
afectivo-sexual entre dois elementos dessa mesma profissão). Seja
de que maneira for parece-nos que algum do cinema feito nas últimas
décadas, bem como muito do ensaísmo e da investigação científica parece
apontar para a ideia de que a orientação sexual não é coisa de
enjaular em espartilho de laboratório ou de compêndio, nem de funcionar,
ao modo de uma qualquer implicação lógica, como tabela de branco e
preto.
Herdeira de toda esta tradição, a obra
cinematográfica de Ferzan Ozpetek chama-nos a atenção para o papel que o
quotidiano e o adquirido têm sobre o desejo que sentimos pelo outro,
pela outra ou por ambos.
Oiçamos a filósofa Martha C.
Nussbaum: “Desire, in short, is in good part “in the head”. Here, of
course, is where culture and cultural variation play a major role.
Society shapes a great deal, if not all, of what is found erotically
desirable and social forms are themselves eroticized.
We see this quickly in the tremendous
variety of what is found erotically appealling in different societies
and, of course, by different individuals in different societies:
different attributes of bodily shape, of demeanor and gesture, of
clothing, of sexual behavior itself. Social constructions of an
attractive sexual object vary enormously, and with these, the social
meaning of sexual arousal and interaction themselves. “ ( In Sex,
preference, and family – essays on law and nature, p 26). Mas a
sociedade e a cultura não modelam somente o desejo e o objecto deste,
elas actuam do mesmo modo relativamente a outros sentimentos e emoções
decorrentes da concretização, ou não, desse mesmo desejo, nomeadamente a
vergonha e a culpa, como bem defende Jesús Ferrero: “ La verguenza y la
culpa son las pasiones más determinadas por la cultura en la que vive el
sujeto que las padece y por sus normas sociales y morales.
Básicamente se podría decir que sentimos
verguenza y culpa cuando nos descubren haciendo algo prohibido, o cuando
descubren que lo hemos hecho. La violencia que proyecta la mirada de los
otros ante nuestro delito penetra en nosotros como la púa de una
cerbatana, y nos odiamos a nosotros mismos y quisiéramos desaparecer
bajo tierra: enterrarnos. Pero solo sentimos culpa como un efecto de la
mirada acusadora de los otros? Desde luego que no. Todos llevamos una
conciencia llena de normas morales. La mirada interior puede proyectarse
sobre nuestros actos com más severidade y más rigor que la mirada de los
otros.” ( In Las experiencias del deseo, Eros y misos, p 133). É
impossível lermos este texto de Ferrero sem nos lembrarmos de um
capítulo de “L’étre et le néant” de Sartre – “Le regard”,e, por outro
lado, sem concluirmos que se o olhar do outro nos rotula, nos torna
“en-soi” como diria o filósofo francês, de um modo directo, também é
verdade que a minha auto-imagem é mediatizada por esse mesmo olhar que
me é alheio. Assim, a sociedade e a cultura em que me encontro inserido
tendem a orientar-me o desejo, o objecto que esse desejo visa e
ao périplo de paixões e emoções inerentes a todo o processo,
encontrando-me assim eu no seio de uma aporia fundamental: a minha
orientação sexual, que, por sua vez, subjaz às minhas atitudes e aos
meus comportamentos também de tipo sexual, é ela própria – apesar da
inscrição genética – orientada por condicionantes que lhe são
externas.
Como corolário das posições defendidas
poder-se-á dizer que elas desembocam necessariamente na forma como os
parceiros sexuais se procuram uns aos outros e entre si estabelecem todo
um universo convivencial. Hoje, na nossa sociedade, os modelos vigentes,
e os únicos legalmente aceites, são a monogamia heterossexual e a
monogamia homossexual, contudo, uma observação minuciosa do reino
animal, concretamente no caso dos mamíferos, poder-nos-á elucidar se
essas formas de convivência derivam de potencialidades inscritas no
património genético, ou se, pelo contrário, ela nos mostra outras
evidências onde, uma vez mais, uma orientação exterior (ética,
moral, religiosa, jurídica…) ao que somos nos tende a orientar
noutros sentidos. Acerca disso atentemos às investigações de David P.
Barah e Judith Eve Lipton: “Quando se trata de mamíferos, sabe-se há
muito tempo que a monogamia é uma raridade. De 4 mil espécies de
mamíferos, não mais do que algumas dezenas formam ligações de par
confiáveis, embora em muitos casos seja difícil caracterizá-los com
certeza porque a vida social e sexual dos mamíferos tende a ser mais
furtiva do que a das aves.” ( In O Mito da Monogamia, Fidelidade
e Infidelidade entre pessoas e animais, p 26).
Eis-nos, então, chegados a um ponto
crucial desta proposta de leitura da obra cinematográfica de Ferzan
Ozpetek: os factores genéticos e biológicos não são condicionantes
exclusivos, nem prioritários, da orientação sexual (e seria
interessante até discutir a pouca cientificidade deste último conceito,
adoptado pela comunidade científica para substituir a balbúrdia teórica
que o antecedeu: preferência sexual, opção sexual e outras enormidades
deste estilo!) nem do modo como os comportamentos sexuais ocorrem; as
diferenças – a vários níveis – dentro da heterossexualidade e da
homossexualidade são abissais; os modelos de convivência e/ou de
acasalamento monogâmicos podem funcionar para alguns seres humanos, mas
as “ligações verdadeiramente confiáveis” são raras; os sentimentos, as
emoções, os fracassos e os sucessos de uma vida afectivo-sexual podem
ser gravados em nós, mais pelo olhar do outro, do que por aquilo que,
nos nossos momentos de solidão e de auto-questionamento, apreendemos no
mais fundo de nós. E, como cúpula desta visão, a subtil mecânica do
jogo: umas vezes alienante e turbilhonar, como no caso dos “gays loucos”
de Mine Vaganti; outras, lúcido e desgastante como na avó da
mesma película.
Sabemos, todavia, que algumas tendências
dentro da psicologia e da psiquiatria têm vindo a substituir o conceito
de orientação pelo de identidade sexual, parecendo-nos até
com a finalidade de salvaguardar o território da imutabilidade e do
genético. Tais posições, varrem assim de cena a bissexualidade, eliminam
de imediato do ser e do idêntico toda a veleidade de um
qualquer ir-sendo e, por fim, ver-se-ão na necessidade de
defender que essa identidade do ser humano foi o que, nalguns
casos, nunca apareceu, tendo assim o eu vivido aquilo que
não era em-si, enquanto que a sua verdadeira identidade sexual
(?) acabou por nunca despertar, isto é, segundo esta linha teórica é
perfeitamente possível, o indivíduo, ao nível sexual, ir sendo aquilo
que não é, enquanto que o que ele é verdadeiramente continuará não sendo
até ao fim. Esta posição que reduz orientação e comportamento
sexuais ao quadriculado de um qualquer balancete genético não é a
adoptada por Ferzan Ozpetek, daí a atracção de Michele Mariani por
Antónia em Le Fate Ignoranti e, em Mine Vaganti, Tomaso
(Ricardo Scamarcio), apesar da relação fortemente apaixonada que vive
com Marco, não consegue esconder o fascínio que sente frente a Alba (Nicole
Grimaudo). Dito de outro modo: nos filmes de Ozpetek muitos são os casos
contemplados pela objectiva do realizador, mas no seu todo predominam as
influências do quotidiano, da aprendizagem entre grupos, dos esquemas
de género sexual aberto e do jogo; jogo esse que, nesta obra, jamais
tem uma função oportunista ou de destruição do outro, antes se
identifica com o cativar de Exupéry e com o platónico desejo de
complementaridade: busco no outro aquilo que me falta, para que ele
colha em mim o que lhe aprouver e achar por bem.
Partamos, então, desse conceito de jogo.
No início de Le Fate Ignoranti (2001) Ferzan Ozpetek
mostra-nos uma mulher vendo uma exposição. Ela está frente a um busto de
Antínoo. Um homem aproxima-se e tenta seduzi-la, critica aquele que a
deixou ali sozinha, já que menosprezou a sua beleza. Pela indumentária,
pelo discurso e pelo ritual de sedução o espectador percebe que está
frente a um par da burguesia média-alta. A perseverança do homem não
cessa. Ela continua sorrindo. E é só quando ele a abraça pela cintura
que nós percebemos que aquela etapa do jogo terminou – estamos frente a
marido e mulher; e mais: estamos frente a dois seres cúmplices e que
conseguem partilhar coisas importantes. Antónia, a mulher, é médica, e
dias depois, quando sentenciava um dos seus doentes de uma situação de
seropositividade, recebe o fatídico telefonema comunicando o
atropelamento, e morte, desse tal homem com quem vivera em harmonia
perfeita. A partir daqui a acção adquire um outro ritmo: Antónia (
Margherita Buy), mexendo nas coisas do marido, encontra um quadro que
tem uma dedicatória por trás: “A Massimo, pelos sete anos passados
juntos. Pela parte de ti que me falta e que eu jamais terei. Por todos
os momentos em que me disseste “não posso” e por todos os outros em que
me disseste “voltarei”. Poderei chamar à minha paciência amor? Mariani.”
Toda a consistência do universo de Antónia se estatela nessa casa onde
ela vivera, a dois, aquilo que não entendia já. Procurando Mariani, a
outra, Antónia vai ter a um apartamento onde coabitam os mais
diversificados tipos de pessoas: uma gentil e doce cinquentona que vive
com um negro, uma transexual, uma empregada de um super que nunca acerta
nos namorados, um casal de homossexuais masculinos… Mas Antónia insiste.
Quer conhecer a Sra. Mariani. Volta e volta àquele apartamento e… acaba
encontrando um rapaz, Michele Mariani (Stefano Accorsi). A relação que
se acaba estabelecendo entre Antónia e Michele não cabe nos canhenhos
dos inventariadores de orientações sexuais que se baseiam apenas
no genético para determinação destas, contudo – algo obsessivamente –
ela tenta saber se o marido ainda tinha mais alguém: “nem homem, nem
mulher – diz-lhe Michele. – Ele só nos teve a nós dois.” E assim ficam
presos um ao outro pela perda, pela memória, pela poesia de Hikmet e
talvez por algo mais, como se percebe no final do filme, pois, se havia
entre eles a crença de que sempre que se partia um copo era alguém que
também partia, após a tentativa de fuga de Antónia, Michele atira um
copo ao chão, mas… este não se parte.
Em 2003, com La Finestra di fronte,
Ferzan Ozpetek parece-nos querer homenagear Hitchcock pela semelhança
adoptada com um título de 1954 deste último realizador: também aqui a
janela indiscreta é o elemento primeiro e coadjuvante de todos os
mistérios que se irão tecendo. Ozpetek constrói uma narrativa
entrecruzada: a) uma acção passada em Roma, nos ínicios dos anos 40,
quando nazis e colaboracionistas decidem caçar os judeus da cidade; b)
uma outra, que se desenrola com um casal da pequena burguesia vivendo
pacatamente com os seus empregos, os seus filhos, as suas domésticas
desavenças e aspirações. Todavia, e mais uma vez, o meio vem jogar aqui
a sua cartada quando a mulher começa a espiar o vizinho da janela em
frente, é então que se percebe que a linearidade das vidas ritualizadas
tem muito mais no seu fundo do que à primeira vista se julgava ver, até
porque o observado já vinha sendo também observador. Os dois níveis da
narração acabam confluindo a partir de certa altura: o jovem que, em
1943, tivera de matar o patrão delator, que o mantinha vigiado, para ir
a correr salvar todos os outros judeus, é hoje um velho demenciado que
vai parar a casa de Giovanna (Giovanna Mezzogiorno) e Filippo (Filippo
Nigro) que, por sua vez, tentam, entregá-lo à polícia, embora sem
sucesso. Lorenzo (Raoul Boya), o vizinho da janela em frente, é também
sugado para dentro da estória deste velho cujos passado e presente
passam a invadir todas as personagens, descobrindo-se, finalmente, a sua
identidade: Davide Veroli (Massimo Girotti), aquele que em 1943 salvara
tantos dos que o apontaram e, por essa necessidade de demonstrar a sua
dignidade a quem o marginalizara, já não fora a tempo de salvar Simone,
o seu amigo e companheiro. Este é um dos filmes de Ozpetek onde as
preocupações sociais e políticas são mais vincadas, mas não descurando
nunca a abordagem das questões psicológicas, afectivas e relacionais,
por vezes até com alguma ironia, como quando uma das colegas de Giovanna
a espicaça para uma aventura extraconjugal, dizendo-lhe que o
casamento dela, com quinze anos, era quase incesto. É aqui que o
golpe de mestre de Ozpetek atinge um dos seus pontos mais altos,
cruzando a estória homossexual de Davide e Simone com a estória
heterossexual de Giovanna e Lorenzo através de uma cena emblemática:
Lorenzo, d’a janela em frente, narra a Giovanna uma crise
demencial de Davide a que acabara de assistir: “Amar-te-ei sempre… Temos
de nos amar em segredo…” Dissera Davide a Simone e diz também agora
Lorenzo, pelo telefone, de janela para janela, a uma Giovanna que ele
não deixa de fitar e que também o olha entre o êxtase e o pânico, pois
sabe que pode ser surpreendida pelo marido a qualquer instante. Esta
sobreposição dos planos remete-nos para o início deste artigo: o que é
universal (a frustração ante a perda, as concretizações
sub-reptícias, a mágoa de jamais se poder ser em absoluto, etc.) é
transversal a todos os seres humanos, assim, é sendo englobante que tem
a importância que tem, e que – eventualmente - até poderá ser muita, no
entanto, o que dói verdadeiramente é o processo de singularização, é ao
nível do concreto, é o modo como cada um vive essas experiências, e aí
cada qual é o seu mundo, não dependendo da cor, do credo religioso, do
género, da etnia, da orientação sexual ou ideológica. Há inúmeras
cenas nos filmes de Ozpetek (ligações inter-raciais, operárias chinesas,
domésticas budistas, burguesas caucasianas com amantes ocultos, etc.)
que fundamentam esta ideia do primado do particular, território
verdadeiramente real e objectivo, espaço a respeitar porque único,
irrepetível e não sujeito a permuta.
Com Mine Vaganti (2010) a intriga
torna-se muito mais complexa e o tipo de personagens mais diversificado,
no entanto, manter-se-á a fluidez narrativa bem como a clareza dos
propósitos, o que nos leva a continuar à distância do rocambolesco
precipitado de Almodovar, e talvez mais próximos da técnica, da
verosimilhança e do bom gosto de realizadores como Téchiné e Chéreau. O
palco deste filme é a burguesia industrial e financeira de Lecce com os
seus valores, as suas normas morais e, sobretudo, com o seu temor do
olhar do outro. A película circula sempre entre o rigor da análise e a,
aparentemente anódina, desmontagem do grotesco. Tudo começa quando
Tomaso ( Riccardo Scamarcio) diz a António, o irmão, que durante o
grande jantar dessa noite irá revelar à família a sua homossexualidade,
ali, sem anestesia, percebe-se de imediato que o que está em causa não é
bem o problema das orientações sexuais, mas a despótica figura
paterna. E isso é confirmado durante a refeição, pois quando Tomaso
pretende tomar a palavra, aquele mesmo António decide antecipar-se, e
faz ele a confissão da sua sexualidade, afinal tão idêntica à do irmão.
Tomaso recua e a violência verbal que se segue desemboca na expulsão de
António, pelo pai, do seio familiar. Este jantar, com visitas – Alba e a
família -, disseca toda uma panóplia de personalidades, trabalho esse
que será continuado durante um outro jantar, já após a vinda de Marco e
de alguns amigos de Tomaso. Naquela casa cruzar-se-ão as mais
diversificadas formas de cada um desempenhar a sua orientação
sexual, por conseguinte, poder-se-á perguntar: o que há de comum entre a
heterossexualidade de uma mãe apagada e submissa e a da sua cunhada
ávida de experiências e desajustada em relação àquela ordem repressiva?
Nada! O que há de comum entre a homossexualidade viril de Tomaso e Marco
e as superficiais tontas vindas de Roma? Nada! Ozpetek usa esta
família como em Sociologia, ou em Psicologia Social, se usam as
amostras, para a verificação de uma qualquer hipótese, e a observação,
aqui nitidamente provocada, tem por função dissecar algo dinâmico e
multidireccional: o funcionamento e os efeitos do processo de
normalização. Ozpetek, durante uma entrevista que concedeu, tem mesmo o
cuidado de substituir, corrigindo, o conceito de normalidade pelo
de normalização.
Quais as plataformas de estabilidade
possíveis durante um processo de normalização que é ele
acidentado e aberto ao imprevisto? Apenas dois exemplos: uma das
loucas de Roma não caça o tio de Tomaso porque a mulher deste
está sempre atenta; Tomaso não investe mais em Alba porque a sua relação
com Marco funciona plenamente, contudo aqui mantém-se sempre uma certa
ambiguidade, ilustrada pela cena da praia quando Marco e Alba cabriolam
na rebentação das ondas, e Tomaso, do alto da duna, olha ambos com o ar
de um homem que tem ante si tudo, e nada mais pode desejar, aliás, o ele
decidir juntar-se às brincadeiras dos dois tem uma simbologia bastante
clara.
É evidente que Salvatore, o tio de Tomaso,
se mantém com a mulher; é evidente que Alba não destrona Marco, mas o
que aparece claro no cinema de Ferzan Ozpetek é que são várias as formas
de cada um vivenciar a sua orientação sexual e não parece que os
mecanismos de índole genética sejam os únicos responsáveis pela
orientação da orientação, ou da identidade sexual se
se preferir este caminho. Claude Aron, na sua função de académico mas
também de fisiologista da reprodução, fala assim das experiências de
Hamer com gémeos homossexuais: “(…) mais Hammer reconnut lui-même que d’autres
facteurs sont nécessairement impliqués dans le déterminisme de l’homosexualité
puisque certains sujets expriment cette orientation sexuelle en l’absence
du gene qui chez d’autres en serait responsable. Ce gene restera d’ailleurs
hypothétique jusqu’à ce qu’il soit cloné et donc identifié; et surtout
retrouvé dans d’autres enquêtes familiales. Je conçois mal les
mécanismes d’action d’un gene de l’homosexualité. S’éxprime-t-il dans l’
INAH3? Quelle vision simplificatrice à l’égard de la complexitè des
mécanismes de la bisexualité chez l’animal! Je raisonne en physiologiste
et non pas en psychanalyste. Pourtant je me refuse à un reductionisme
biologique qui ferait une part moins belle chez l’Homme que chez l’
animal aux facteurs de l’environnement dans les conduites sexueles.” (
In La bisexualité et l’ordre de la nature, pp 271-272. Ao longo
de toda esta obra Aron chama a atenção para inúmeros factores
bio-fisiológicos que estão na base da orientação sexual,
ironizando mesmo – nas páginas 281/2 sobre o gene da heterossexualidade
– e na página 282 é irredutível: “Le concept de bisexualité de la gonade
a été le fruit de longues et patientes recherches embryologiques. Celui
de bisexualité comportamentale a des racines mythologiques.” Numa
perspectiva sociológica é também importante a leitura de “Dupla
Atracção” de Martin S. Weinberg, Colin J. Williams e Douglas W. Pryor,
sobretudo, na edição portuguesa, das páginas 183-186. Se se pretender –
nesta tentativa de se recusar a exclusividade do genético na
determinação mecânica da orientação sexual – encetar uma
abordagem a partir da História, são importantes as obras de autores como
John Boswell e William Naphy. Pesquisar também, na net, o artigo
“Heteroinquisidores” de Debora Diniz – antropóloga, investigadora e
professora na Universidade de Brasilia -, é um texto muito interessante
sobre a interdição do corpo do pai ao filho – fenómeno que não acontece
na relação mãe/filha – e que orientará o modo como a maioria dos
homens passará a ver/ sentir o corpo dos outros homens, aqui seria
importante comparar depois o modo como o afável Lorenzo de La
finestra di fronte abraça/acolhe o velho Davide e como, por
oposição, em Mine Vaganti, o tirânico pai se refere ao corpo
masculino, sobretudo no monólogo da confeitaria).
À tese de Tomás de Aquino, depois retomada
por certos movimentos estéticos nomeadamente o neorrealismo, de que a
arte tinha por função a imitação da natureza – no segundo caso da
natureza humanizada na sua vertente social, económica e política –
acrescentou-se hoje a noção de que a realidade imita ela o cinema, sendo
assim, e um pouco na linha de Claude Aron, cabe-nos a estupefacção de
que um comportamento tão complexo, como é o sexual, de que uma função
tão determinante como é a orientação sexual possam, para alguns,
ser submetidos a um processo explicativo afinal tão simples e primário,
com toda a conotação pejorativa que o termo transmite, como aquele que
tem sido defendido por alguns investigadores mais ligados ao campo da
biologia e da genética. Talvez não fosse despiciente um olhar para os
trabalhos de outras ciências, para as reflexões de tipo filosófico e –
porque não? – para o que acontece mesmo ao nosso lado, nas ruas e… no
cinema. |