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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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INTRODUÇÃO
Organizei este pequeno
ensaio em duas entradas num período em que o meu país saía de uma grave
situação que num futuro podia ter caído em algo irreversível. Um período
em que sucessivos esqueletos saltam dos armários anteriormente
construídos por uma administração pública liderada por aventureiros
políticos que visou – percebemo-lo agora claramente – estabelecer um
ambiente autoritário/cleptocrático de tipo peculiar, ainda que não
original e que George Orwell aflorou, embora com recorrências
imaginativas, numa das suas encenações literárias.
Eu poderia dizer, parafraseando
ironicamente Georges Arnaud, o famoso autor de “O salário do medo”, que
“Esta sociedade, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá”.
Como na obra de Samuel Beckett
“Malone está a morrer” é referido a dada altura, “O que interesa é só
prestar atenção aos sobressaltos”. Ou, para citarmos Jules Morot no
seu “O espírito do bem”, “A casa/ou da vida ou da morte/ costuma
sempre ficar um bocadinho mais ao lado”.
Por outras palavras menos
simbólicas, mais chãs e terra a terra: se estamos vivos já nem sequer é
por acaso, como assinalava algures Jean Rostand, mas sim porque os
senhores do mundo nos consentem, por altamente lhes convir, que
existamos em todos os pontos cardeais…E o resto é conversa.
As 2 análises seguintes, ainda que
se refiram a livros diferentes de autores de diferentes origens, apontam
para algo que lhes é comum e que, a meu ver, explica um específico
universo conceptual e societário em que hoje existimos nesta parte do
mundo - a violência camuflada da parte de sectores privados, a “suave
brutalidade” de cunho estatal e, por último, o que num geral mundial se
apresenta inquietantemente às consciências: o relativo desconhecimento
da insídia e dos manejos nefandos de seres criadores/dependentes de um
mundo pervertido pela desrazão que subscrevem.
Não é por acaso que todos eles têm
por cenário ou invólucro a escrita e as suas diversas faces do eventual
conhecimento, de potencial acesso à sabedoria (ou a sua negação
absoluta) e as armadilhas e perversões que eles podem possibilitar ou
esconder.
Dito isto, comecemos. |
EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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NICOLAU SAIÃO
Duas incursões no escuro
da noite e do sol |
“A mais bela artimanha do diabo é a de persuadir-nos
de que não existe” – Baudelaire |
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1. SOBRE “VERSÃO ORIGINAL”
ENTRE OS FUMOS DO AMOR E DA MORTE DE BILL BALLINGER |
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“Obrigam-nos a
engraxar sapatos e depois alegam que só servem para engraxadores” –
Langston Hughes |
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Chega-se
ao fim desta novela discretamente temerosa, uma das mais belas e
perturbadoras da literatura de mistério, com uma sensação de perda e de
amargura. De relativa surpresa, que contudo possui uma indicação
norteadora.
Nesta tragédia
poderosamente encenada e magnificamente urdida na sua progressão
enquanto matéria escrita, o acento tónico recai sobre a questão das
realidades e dos enganos que estas podem ter em si, uma vez que não é
dado ao Homem saber o que está além do que se toma por verdadeiro e
afinal contém todo um universo de falsos indícios, de falsas indicações,
de desconhecimento dos sentimentos que realmente forjam as relações
entre os seres. E que num outro contexto tudo teriam de criativo e de
salubre ultrapassando a fábula dos desencontros.
“Se abro o
bico sem ser com um tipo fixe, estou liquidado. E, além disso, quem
acreditaria em mim?” pergunta-se o protagonista logo na abertura
desta ópera de dois tons em que o discurso pessoal é contrapontado no
itálico dos capítulos que explicitam o que, para além dele, vai
sucedendo no quotidiano que o ultrapassa. “A coisa não faz sentido.
Não faz mesmo nenhum sentido. Tenho pensado no assunto vezes sem conta,
debatido a coisa comigo mesmo. E no fim só consigo obter vagas imagens”
– continua Dan April (Abril, significativo nome de mês) a questionar-se
numa tentativa de entender os acontecimentos que o rodearam e que
se transformaram num “retrato de fumo” (o título original é esse)
iniciado numa noite do Illinois, nessa Chicago enevoada ou ardente de
sol, “quente e preguiçosa”, essa cidade também brumosa devastada
anos atrás por um incêndio que a História registou.
Mas a breve
trecho o leitor suspeita, e acaba por concluir devido ao seu estatuto,
que a coisa de facto faz sentido, ou melhor: que há um sentido
singular, ainda que temível, oculto nesta novela que por seu turno, ao
contrário da primeira que analisámos, resulta dos próprios limites do
conhecimento ou se debruça, digamo-lo desta maneira, sobre o que
se pensa saber.
É por assim
dizer, simbolicamente, uma representação desse labirinto ou desse
fumo sulfuroso que se depara ao ”laborator per ignem” numa
fase em que este caminha para a Segunda Obra e em cujos meandros tem de
enfrentar as figuras enganadoras ou sinistras dos dragões velhos
cuspindo lava ou lamas mefíticas.
“Krassy
Almauniski abriu os olhos e distendeu-se na cama. Ficou quieta uns
momentos antes de se espreguiçar de novo. – Dezassete de Março…Dia de
São Patrick – disse para si mesma com satisfação – o dia dos meus anos!
– Saltou da cama e caminhou sobre o soalho nu até junto dum pequeno
espelho que estava suspenso de um fio passado num gancho pregado à
parede. Desabotoou a camisa de seda de homem, passajada, que lhe chegava
até quase aos pés e despiu-a.
- A partir de hoje
– disse para si mesma – as coisas vão modificar-se”.
Por representação,
enquanto Dan é a parte de sonho Krassy é a parte de realidade prática
que a novela vai explicitar enquanto progride.
Citemos para melhor compreensão, sem
irmos demasiado longe – o que retiraria ao leitor a supresa da sequencia
do relato – o texto de apresentação inserido na contracapa: “Ao
percorrer os arquivos da Agência de Cobranças que comprara no dia
anterior, Danny April encontrou o retrato de uma rapariga.
Mas ele conhecera
aquela rapariga…dez anos antes…Que seria feito dela?
A ideia de a ver
novamente tornou-se uma obcessão…Finalmente encontra-lhe a pista. Mas
essa pista onde o conduz? À rapariga de outrora, que ele sonhava meiga e
delicada, ou a uma criminosa que, à custa dos mais pérfidos ardis,
subira, partindo do nada, até à mais elevada situação financeira e
social?
A acção passa-se
em Chicago, a cidade dos mil contrastes, e decorre durante e após a 2ª
guerra mundial”.
Deste núcleo, à
volta dessa busca que o protagonista enceta com esperança e a pouco e
pouco se transforma em encontro e, depois, em desespero, o autor
pinta-nos um fresco sugestivo de situações, de personagens e de imagens
que nos subjugam através da progressão do relato.
Nem sempre o que
parece é ou, de forma ainda mais cruel (o que é constitui a verdadeira
face do drama mas noutro espaço e num outro tempo, daí o itálico em que
esses capítulos estão vasados) Dan April é a figuração clara do
mal-amado, do indivíduo cuja existência nunca poderia, num mundo cuja
hostilidade a todo o momento se manifesta a despeito das aparências, ir
dar aos lugares de felicidade que se lhe antolhava merecer.
Neste relato, ao
contrário do que sucede noutras novelas policiais, não é o autor que
funciona como “deus ex machina” mas sim o leitor – que assiste a
tudo sem nada no entanto poder fazer. O enigma não se apresenta ante o
leitor mas ante a personagem masculina, limitada pelos sentimentos que a
envolvem.
Personagem
trágica, tem sem que o suspeite, do outro lado, outra trágica personagem
que se desconhece enquanto tal, que não pôde ou não soube guindar-se a
um patamar de salutar formulação. Por outras palavras: Danny, ser
vencido de antemão, conserva contudo a pureza dos que se lançam na vida
com toda a carga de boa-fé, de decência pessoal e de lealdade que
confere humanidade à existência, numa mistura de coração e de razão que
frequentemente acaba mal. A razão de Krassy é contudo outra e é essa
razão, estranhamente – porque não caldeada pelo coração - que irá
provavelmente (digamo-lo desta forma) destruir a ambos ainda que por
vias dissemelhantes.
Fábula dos desencontros? Mais lhe chamaria fábula sobre a
impossibilidade de, num determinado contexto, a matéria se unir ao
espírito – usando esta metáfora dos antigos alquimistas. O que é, na
verdade, como os nossos tempos mostram à saciedade e esta novela confere
com aprumo, arte e evidente desembaraço, muito mais vulgar do que as
diversas moralidades procuram estabelecer ou escamotear… |
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2. A PROPÓSITO DE “EXTERMÍNIO NO 31º ANDAR”
A AURORA BOREAL DE PER WAHLOO |
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“Porque vos ensinam
eles a amá-los, se é para vos tratar assim?
Porque não vos deixam eles em paz?” – William Irish
“O homem é perecível;
pode ser. Mas pereçamos resistindo – e se ao fim
o que nos reservam é o vazio e o nada, façamos com que isso seja
uma injustiça” – Étienne de Senancour |
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Há
livros assustadores. Uns pelo espírito, como por exemplo o “Lázaro” de
Andreiev, que nos coloca de chofre e sem complacências em frente do
facto de que uma vida de ressuscitado seria, afinal, tão angustiante e
repugnante como a degustação de uma refeição apodrecida. Outros pela
letra, como o “Drácula” de Bram Stoker sobre o qual já se disse que só
um leitor completamente destituído de sensibilidade conseguirá ler numa
casa deserta e pelas horas mortas da noite.
Outros, por seu turno – e é o caso
desta “utopia negra” vasada nas luzes boreais que conformam as
sociedades escandinavas – porque o que neles se encena está a
acontecer paulatinamente. E não só naqueles rincões.
O caso sucedido há um par de
semanas na politicamente correcta Noruega, onde os monstros particulares
são produto de uma administração cuja tenaz cegueira é a prova do seu
cinismo suave e perito em enterrar a cabeça na neve (e já não, como
os avestruzes, na areia do deserto) para sagração de um oportunismo que
finge supor que os cidadãos são um resíduo angélico para que se
não vejam as partes demoníacas do seu poder governativo, mostra-o sem
véus e sem disfarces.
Nesta obra de entrecho quase
linear, duma secura de estilo necessária para que a sugestão
resulte, Per Wahloo (que com sua mulher Maj Sjowal deu na época a lume
um belo punhado de polars bem inseridos no género, mas com um
timbre de novidade que os distinguiu) segue passo a passo os sete dias
duma investigação que um inspector da polícia efectua para que naquela
sociedade pacífica e onde o Estado mais ou menos cordial procura
que o cidadão viva sem traumas (e onde o único crime significativo e
punido aliás sem muita violência expressa é a embriaguês, que
entretanto se multiplica) tudo continue a ser sereno.
Nesta sociedade o controle é
exercido pela leitura: leitura de revistas e de jornais com visão
positiva, onde o próprio fenómeno desportivo (fautor de paixões e
frequentemente de conflitos) não recebe muita atenção a não ser a que
possibilita que se possa epigrafar televisivamente o sucesso das vedetas
que o integram.
O consórcio que o domina é
constituído por gente esclarecida e de “boa formação” partidária e
propugnadora de uma igualdade social estabelecida de maneira
amena e que até quando despede dos empregos o faz cordatamente: o
indivíduo ou indivídua em causa recebe uma reforma razoável e um diploma
por bons serviços, assinado por altas individualidades. E o além está
muito longe…mesmo quando ao virar da esquina.
Mas há sempre alguém que, com
impetuosidade maldosa, “sem olhar à felicidade social a que se
conseguiu chegar” (sic), resolve meter um pauzinho na engrenagem.
Por puro sadismo (como se diz neste ocidente cristão, civilizado
e culto) ou por maldoso anarquismo (como há dias disse
publicamente um comandante da polícia metropolitana inglesa, que ao
mesmo tempo solicitou aos cidadãos britânicos que, e cito, denunciassem
os vizinhos que soubessem que perfilhavam ideias anarquistas – o
que quer que isto seja…)? Ou, ainda, por impiedade, como se diz
naqueles países do oriente que têm a dita de existir em teocracias?
Alguém, portanto, usando
precisamente uma folha anexa não preenchida dum desses diplomas, (uma
vez que o papel é pacificamente controlado), endereçou às autoridades
uma carta inquietante, sugerindo que inquietantes acontecimentos iriam
dar-se. E embora as forças vivas tenham essa carta por eventual simples
brincadeira, tal como uma outra insistência significante, nunca fiando –
a própria brincadeira indicaria já um escabroso, quiçá injusto, desvio e
Jensen - polícia compenetrado e eficiente sofrendo no entanto de um
doloroso e crónico desarranjo gástrico que nem a comida cientificamente
confeccionada e posta à disposição dos cidadãos pelo ministério da saúde
que tem a seu cargo as dietas racionais consegue tranquilizar – mergulha
num universo de entrevistas e de encontros que pouco a pouco lhe
patenteia os meandros do jornalismo, se jornalismo se lhe pode chamar, e
da criação escrita quando a criação escrita é apenas um simulacro
que ora leva ao suicídio dissimulado (ou assistido) ora à entrega a um
ambiente de mundanidade, de sucesso e de notoriedade bastante
semelhantes ao que usa utilizar-se nesta Europa das pátrias e,
suspeito-o com alguns tremores relativos, nas sociedades alfabetizadas
de outros continentes…
Homem sério e bom profissional,
ético tanto quanto as circunstancias peculiares o permitem, nesta viagem
iniciática de uma semana nem sequer negra em que a desesperança do
protagonista é irmã colaça da desesperança sentida pelo leitor enquanto
mergulha na naturalidade do relato, a regra da “detective novel”
é subvertida, ou melhor: invertida. Os chefes que o comandam preferiam
não saber e a demanda de Jensen dirige-se não à descoberta mas à
ocultação. Nas sociedades racionalmente policiadas, como por
exemplo a sociedade lusa, o polícia, (que funciona como Némesis
justiceiro) age preferencialmente como aquele que camufla o enigma
ou, dizendo ainda mais esclarecedoramente, faz com que o enigma seja
uma camuflagem que garante ou sustenta o “equilíbrio” entre as
classes, para que a paz e o progresso coabitem salutar e airosamente…
No entanto, nem nestas mansões
quase celestiais as coisas são como deviam ser (ou se esperava que
fôssem).
Dizia António Maria Lisboa, numa
frase bem respigada por Cesariny, que “Todo o acto premeditado ou
todo o acto leviano tem a sua guilhotina própria”.
A mim sempre me pareceu que ele
tinha razão ao cunhar este conceito. E, se o pudesse ter lido, creio que
Jensen – e muito mais os seus chefes – teriam dolorosamente entendido a
verdade que assistia ao infausto poeta surrealista lusitano.
À sua deles própria custa – mas
isso seria já uma outra estória…
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NICOLAU
SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
[Monforte do
Alentejo,1949, Portugal]
Poeta,
publicista, actor-declamador e
artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art
e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”,
“Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O
armário de Midas”, “Escrita e o seu
contrário” (a publicar). Tem
colaboração dispersa por jornais e
revistas nacionais e estrangeiros
(Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTACTO:
nicolau49@yahoo.com |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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