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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Num
destes sábados de Agosto, acompanhei amigos de Britiande, a minha terra,
até às praias da região do Porto, num passeio promovido pela Junta de
Freguesia. Visitámos o santuário do Bom Jesus de Matosinhos, que não
conhecia. Conhecia, isso sim, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos,
mas em Congonhas. Congonhas, a Cidade dos Profetas, em Minas Gerais, com as suas famosas
estátuas no recinto exterior, saídas das mãos do Aleijadinho. Foram as
estátuas dos profetas que deram fama à cidade. No fim
do mês volto ao Brasil, para várias intervenções - «intervenção» é um
termo a repetir, neste contexto -, as primeiras das quais na VIII Bienal Internacional do
Livro de Pernambuco, subordinada ao tema «Literatura e Cidadania». Ora que
relação existirá entre comunicações no Estado de Pernambuco sob o tema
da cidadania na literatura, e um passeio às praias de Matosinhos e de Leça,
onde se reuniam, na sua adolescência, o poeta António Nobre,
o seu irmão, Augusto
Nobre, zoólogo promotor da oceanografia em Portugal, o
explorador Francisco Newton, e outros intelectuais, progressivamente menos conhecidos, a
quem chamavam «os meninos de Leça»? |
EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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MARIA ESTELA GUEDES
Literatura e cidadania:
pombos e pobres?
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Foto: Ed. Guimarães |
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A relação estabelece-se a partir do momento em que,
de cabeça às voltas com um tema tão antigo e controverso, olho para a
cúpula das árvores e vejos os pombos ainda a dormir nelas, baixo os
olhos para a terra e verifico, sem grande espanto, que há outros
moradores clandestinos no recinto do Santuário, e que esses já se
levantaram da cama e foram à vida. Não há pedintes à vista, mas a
máquina fotográfica não engana ninguém: de noite, dormem pessoas em camas
improvisadas nas grutas ornamentais, algumas levaram para lá colchões de
praia, noutras, acende-se o lume. Latas de sardinha vazias asseguram que
não são os pombos quem acende o lume, junta uns trapos para dormir mais
aconchegado, e come conservas à falta de cozinha com as suas alfaias
próprias.
Estamos assim, em Portugal, e parece que a Igreja,
como parte da caridade que sempre praticou, revela agora a de não
expulsar do parque os seus inquilinos que não pagam renda: os pombos,
certo? Deviam ser só os pombos, mas vamos em um milhão de pobres em dez
milhões de portugueses, outros aumentam para dois milhões e fornecem a
competente percentagem. Arrepiante.
Eu faço parte daquele número de artistas que reclamam
liberdade total para a arte, o direito à arte pela arte, que acusam a
arte engajada de ser propaganda e não arte, que recuam perante a
hipótese de a arte ficar na dependência de deliberações partidárias,
etc.. Ou seja, nas situações de criação, ou na zona do cérebro em que
defendo esta posição de princesa na sua torre de marfim, aproximo-me de
pessoas que aliás bem conheceram a região de Matosinhos, como José
Régio, que no seu tempo foi bem mais intempestivo do que eu a defender a
arte pura, face à arte de combate, diretamente ligada a partidos e ideologias
políticas, como era a neo-realista.
Acontece entretanto que nos Matosinhos deste mundo os
pobres dormem, como os pombos, ao relento, e que nenhuma inspiração me
vem dos pombos hoje em dia, seja como símbolos do Espírito Santo, seja como
híbridos cujas variantes Darwin ajudou a criar, nem dos plátanos, como
personagens da realeza florestal. O que nos últimos anos me tem movido à
escrita relaciona-se tão pouco com a arte pela arte que nem considero
poesia os poemas que agora escrevo. Porque a verdade continua a ser
essa: quanto mais um texto se torna claro, explícito, desataviado de
retóricas, tanto menos literatura é.
Será isso a cidadania, o imperativo de olhar para os
outros e para o estado das coisas em geral. Porque soluções, quem as
tem? As soluções desaparecem num nevoeiro sem Messias,
definindo-se, grosso modo, pela poupança. Se gerirmos a Terra sob o signo da
economia, isso equivale a ter o fim à vista, mais não conseguindo as
soluções do que adiá-lo.
Se os políticos, peritos que deviam ser em tal
matéria, conhecem as soluções, não se nota que as ponham em ação. Em
consequência, pela milionésima vez, uma pergunta se impõe na torre de
marfim da arte: escrever para quê? Ou para quem?
Em Casa na Duna, uma personagem de Carlos de
Oliveira, o mais sofisticado dos neo-realistas portugueses, explode:
«Pois bem, quero
chegar a isto: esses homens fazem as fortunas dos grandes lavradores
ribatejanos e vêm acabar a Corrocovo sem um naco de broa, sem
enxerga, sem a porcaria dumas drogas. Não falo já doutras
aspirações, de alegria, de felicidade, dum destino digno. Falo das
coisas primárias, inadiáveis: alimentação, cobertores, remédios.
Aponto simplesmente os factos, não indico nenhuma solução, não digo
que o comunismo resolva ou deixe de resolver. Aquilo de que falo,
toda a gente o tem debaixo do nariz, e toda a gente finge que não
vê.»
Talvez a palavra tenha poder maior que o de revelar
aos que fingem não ver. Talvez a palavra não chegue a ser a «arma» de
que fala a literatura de intervenção. Mas tem decerto algum poder, e
nós, que usamos a palavra, podemos não salvar com ela o mundo, mas não
podemos ficar à margem do nosso próprio devir histórico. A espécie
humana caminha para o suicídio. A pobreza que alastra é apenas um dos
sintomas da decadência. Todos os sinais estão aí, terrenos, palpáveis,
legíveis. Letreiros nos fontanários a avisar que a água é imprópria para
beber, tartarugas marinhas que dão à praia, mortas, porque comeram
plásticos no mar alto, confundindo-os com medusas, significando isto que
os mares estão poluídos; cada vez menos
pássaros nos campos, cada vez mais raros os indivíduas de certas
espécies; o aumento da temperatura global atrai tubarões para as praias
algarvias, provoca o descongelamento dos gelos polares. Tanto aviso,
tanto sinal, tanta matéria inspiradora para um Apocalipse pós-moderno. E
essa é a única diferença no conteúdo dos debates sobre esta temática tão
antiga, entre a autonomia total da arte e a sua interação com os
assuntos sociais: no tempo de Carlos de Oliveira, autor que vou levar à
Bienal de Pernambuco, os artistas combatiam contra a ditadura, a favor
da implantação da democracia. Hoje, além de todos os problemas ainda não
resolvidos, que vêm do passado, e implicam a inexistência de democracia
ou a democracia corrupta em tantos países, temos muito mais para ver: o
desgaste que praticamos no próprio corpo de Gaia, a Terra. Duas
palavras para uma mesma atitude, de indumentária ligeiramente diversa: a
arte de intervenção relacionava-se com o comunismo e com o socialismo. A
cidadania, hoje, ultrapassa os partidos para se relacionar com mudanças
de paradigma, novas formas de conviver com a Terra.
Leonardo Boff, que nos honra com o seu companheirismo
nas paragens triplovianas, detém uma esperança operativa que nos mostra alguns caminhos
ecológicos. O seu mais recente artigo aponta, por exemplo, a necessidade
de aprendermos a ter respeito: «Primeiro, para com a natureza, tratada
como um torturador trata a sua vítima com o propósito de arrancar-lhe
todos os segredos» (1). Ao menos isso,
cumpre-nos, como artistas, para os que se fingem cegos:
iluminar. |
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Leonardo Boff, «A falta que o respeito faz». In:
http://www.triplov.com/boff/2011/respeito.html |
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Casa dos Banhos, 29 de Agosto de 2011 |
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No Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, na região do
Porto |
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O parque, com as suas
majestosas árvores, fontes e grutas ornamentais |
As portas, de ricas madeiras,
belamente lavradas com símbolos |
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Sumptuoso cadeiral, numa nave
lateral |
Esplendor barroco do altar-mor |
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No parque, os recantos de pedra estão ocupados com
colchões, roupa e lenha |
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Nesta gruta ornamental, há quem acenda o lume para se
aquecer |
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Os pombos também dormem no parque |
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O ocupante deste quarto saiu de manhã cedo sem fazer a
cama |
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de
Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011. TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |
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PORTUGAL |
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