REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 

 

 

Num destes sábados de Agosto, acompanhei amigos de Britiande, a minha terra, até às praias da região do Porto, num passeio promovido pela Junta de Freguesia. Visitámos o santuário do Bom Jesus de Matosinhos, que não conhecia. Conhecia, isso sim, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, mas em Congonhas. Congonhas, a Cidade dos Profetas, em Minas Gerais, com as suas famosas estátuas no recinto exterior, saídas das mãos do Aleijadinho. Foram as estátuas dos profetas que deram fama à cidade.

No fim do mês volto ao Brasil, para várias intervenções - «intervenção» é um termo a repetir, neste contexto -, as primeiras das quais na VIII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, subordinada ao tema «Literatura e Cidadania». Ora que relação existirá entre comunicações no Estado de Pernambuco sob o tema da cidadania na literatura, e um passeio às praias de Matosinhos e de Leça, onde se reuniam, na sua adolescência, o poeta António Nobre, o seu irmão, Augusto Nobre, zoólogo promotor da oceanografia em Portugal, o explorador Francisco Newton, e outros intelectuais, progressivamente menos conhecidos, a quem chamavam «os meninos de Leça»?

EDITOR | TRIPLOV

 
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MARIA ESTELA GUEDES

Literatura e cidadania:

pombos e pobres?

 

Foto: Ed. Guimarães                                                    

 

A relação estabelece-se a partir do momento em que, de cabeça às voltas com um tema tão antigo e controverso, olho para a cúpula das árvores e vejos os pombos ainda a dormir nelas, baixo os olhos para a terra e verifico, sem grande espanto, que há outros moradores clandestinos no recinto do Santuário, e que esses já se levantaram da cama e foram à vida. Não há pedintes à vista, mas a máquina fotográfica não engana ninguém: de noite, dormem pessoas em camas improvisadas nas grutas ornamentais, algumas levaram para lá colchões de praia, noutras, acende-se o lume. Latas de sardinha vazias asseguram que não são os pombos quem acende o lume, junta uns trapos para dormir mais aconchegado, e come conservas à falta de cozinha com as suas alfaias próprias.

Estamos assim, em Portugal, e parece que a Igreja, como parte da caridade que sempre praticou, revela agora a de não expulsar do parque os seus inquilinos que não pagam renda: os pombos, certo? Deviam ser só os pombos, mas vamos em um milhão de pobres em dez milhões de portugueses, outros aumentam para dois milhões e fornecem a competente percentagem. Arrepiante.

Eu faço parte daquele número de artistas que reclamam liberdade total para a arte, o direito à arte pela arte, que acusam a arte engajada de ser propaganda e não arte, que recuam perante a hipótese de a arte ficar na dependência de deliberações partidárias, etc.. Ou seja, nas situações de criação, ou na zona do cérebro em que defendo esta posição de princesa na sua torre de marfim, aproximo-me de pessoas que aliás bem conheceram a região de Matosinhos, como José Régio, que no seu tempo foi bem mais intempestivo do que eu a defender a arte pura, face à arte de combate, diretamente ligada a partidos e ideologias políticas, como era a neo-realista.

Acontece entretanto que nos Matosinhos deste mundo os pobres dormem, como os pombos, ao relento, e que nenhuma inspiração me vem dos pombos hoje em dia, seja como símbolos do Espírito Santo, seja como híbridos cujas variantes Darwin ajudou a criar, nem dos plátanos, como personagens da realeza florestal. O que nos últimos anos me tem movido à escrita relaciona-se tão pouco com a arte pela arte que nem considero poesia os poemas que agora escrevo. Porque a verdade continua a ser essa: quanto mais um texto se torna claro, explícito, desataviado de retóricas, tanto menos literatura é.

Será isso a cidadania, o imperativo de olhar para os outros e para o estado das coisas em geral. Porque soluções, quem as tem? As soluções desaparecem num nevoeiro sem Messias, definindo-se, grosso modo, pela poupança. Se gerirmos a Terra sob o signo da economia, isso equivale a ter o fim à vista, mais não conseguindo as soluções do que adiá-lo.

Se os políticos, peritos que deviam ser em tal matéria, conhecem as soluções, não se nota que as ponham em ação. Em consequência, pela milionésima vez, uma pergunta se impõe na torre de marfim da arte: escrever para quê? Ou para quem?

Em Casa na Duna, uma personagem de Carlos de Oliveira, o mais sofisticado dos neo-realistas portugueses, explode:

«Pois bem, quero chegar a isto: esses homens fazem as fortunas dos grandes lavradores ribatejanos e vêm acabar a Corrocovo sem um naco de broa, sem enxerga, sem a porcaria dumas drogas. Não falo já doutras aspirações, de alegria, de felicidade, dum destino digno. Falo das coisas primárias, inadiáveis: alimentação, cobertores, remédios. Aponto simplesmente os factos, não indico nenhuma solução, não digo que o comunismo resolva ou deixe de resolver. Aquilo de que falo, toda a gente o tem debaixo do nariz, e toda a gente finge que não vê.»

Talvez a palavra tenha poder maior que o de revelar aos que fingem não ver. Talvez a palavra não chegue a ser a «arma» de que fala a literatura de intervenção. Mas tem decerto algum poder, e nós, que usamos a palavra, podemos não salvar com ela o mundo, mas não podemos ficar à margem do nosso próprio devir histórico. A espécie humana caminha para o suicídio. A pobreza que alastra é apenas um dos sintomas da decadência. Todos os sinais estão aí, terrenos, palpáveis, legíveis. Letreiros nos fontanários a avisar que a água é imprópria para beber, tartarugas marinhas que dão à praia, mortas, porque comeram plásticos no mar alto, confundindo-os com medusas, significando isto que os mares estão poluídos; cada vez menos pássaros nos campos, cada vez mais raros os indivíduas de certas espécies; o aumento da temperatura global atrai tubarões para as praias algarvias, provoca o descongelamento dos gelos polares. Tanto aviso, tanto sinal, tanta matéria inspiradora para um Apocalipse pós-moderno. E essa é a única diferença no conteúdo dos debates sobre esta temática tão antiga, entre a autonomia total da arte e a sua interação com os assuntos sociais: no tempo de Carlos de Oliveira, autor que vou levar à Bienal de Pernambuco, os artistas combatiam contra a ditadura, a favor da implantação da democracia. Hoje, além de todos os problemas ainda não resolvidos, que vêm do passado, e implicam a inexistência de democracia ou a democracia corrupta em tantos países, temos muito mais para ver: o desgaste que praticamos no próprio corpo de Gaia, a Terra. Duas palavras para uma mesma atitude, de indumentária ligeiramente diversa: a arte de intervenção relacionava-se com o comunismo e com o socialismo. A cidadania, hoje, ultrapassa os partidos para se relacionar com mudanças de paradigma, novas formas de conviver com a Terra.

Leonardo Boff, que nos honra com o seu companheirismo nas paragens triplovianas, detém uma esperança operativa que nos mostra alguns caminhos ecológicos. O seu mais recente artigo aponta, por exemplo, a necessidade de aprendermos a ter respeito: «Primeiro, para com a natureza, tratada como um torturador trata a sua vítima com o propósito de arrancar-lhe todos os segredos» (1). Ao menos isso, cumpre-nos, como artistas, para os que se fingem cegos: iluminar.

   
  Leonardo Boff, «A falta que o respeito faz». In:
http://www.triplov.com/boff/2011/respeito.html
 

Casa dos Banhos, 29 de Agosto de 2011

 
  No Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, na região do Porto
   
 

O parque, com as suas majestosas árvores, fontes e grutas ornamentais

As portas, de ricas madeiras, belamente lavradas com símbolos

   
 

Sumptuoso cadeiral, numa nave lateral

Esplendor barroco do altar-mor

 
  No parque, os recantos de pedra estão ocupados com colchões, roupa e lenha
 
  Nesta gruta ornamental, há quem acenda o lume para se aquecer
 
 

Os pombos também dormem no parque

 
  O ocupante deste quarto saiu de manhã cedo sem fazer a cama
   
 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

 

 

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