REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 
 

 

 

 JORGE VELHOTE

Pequenas setas

que afastam os olhos

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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  1.
 

A manhã começa com o vento varrendo o pó da rua

e na varanda arrastam-se cadeiras algumas vozes determinam

as horas ou mesmo até a temperatura -- o dia vai ser tórrido

fragilizando mesmo o que resta ainda da nobreza dos cactos.

Revejo o mapa e tento localizar entre os rios e os longos carris

dos comboios o lugar. Entretanto outras vozes

adivinham não só o presente mas ainda o que o futuro será

se as marés derrubarem a escarpa frágil

e bela como um castelo rendilhado -- gosto da sua côr

adoçando o sol sobre o azul do mar -- na curva distante

entre rudes sombras as folhas agitam o caminham íngreme

é uma aragem brusca que faz rodopiar os cabelos e abrandar os passos.

Nesse lugar nada muda nem o tempo

e na realidade o que se observa é um inventário

de espantosas mudanças subtis. O que atrai o meu olhar

como um feixe de luz ou lâmina mistura territórios íntimos com paisagem

e mistério. A botânica é uma ciência de lucidez que conduz o tempo

e o conhecimento um vínculo de aparências e eu

recordo apenas com nitidez o nome

dela na camisa transparente. 

   
  2.
 

O mar ali ao longe desenha o que observo

aqui sentado uma imensidão insondável

e uma perda que os meus olhos

contemplam -- o mundo fica desfocado

e cresce impossível na duração do tempo

enquanto os barcos rumam na distância

exacta da minha miopia numa forma

insistente que atravessa os séculos

e nomeámos para chegar adivinhando

o que o desejo sulca e mistura

na boca como um rasgão -- as cores minuciosas

do lençol feroz das águas.

   
  3.
 

As gaivotas adejam o branco alvo das suas asas na cal branca da casa.

As andorinhas abandonaram os ninhos insuspeitos. As árvores são tristes

no seu interminável esquecimento. Os muros queimam as sombras

vagarosamente. As flores silenciosas na sua plenitude absoluta

invadem o meu olhar. É frágil a turvação melancólica do céu.

Pequenos detalhes frívolos ameaçam este lugar moribundo.

Uma navalha infatigável rasga-me a memória e os dentes.

O estertor de um rio estilhaça a agonia do verão. Uma labareda

resiste nos meus dedos medindo o destino. Ou a tenaz vontade

de enganar a paisagem.

 

 

 

Jorge Velhote

non nova sed nove, abril 2011

 

 

 

Jorge Velhote (Porto, 1954)
Tem colaboração dispersa, desde 1978, por vários jornais, revistas, álbuns e antologias. Entre os seus livros contam-se obras como Os Sinais Próximos da Certeza (1983) e a tradução de As Asas de Orvalho dos Ventos, de Adnan Özer. Foi ainda director, com Raul Martins, da revista Rotura, publicada no Porto em 1979. Mais recentemente publicou Máquina de Relâmpagos (2005), com fotografias de João Paulo Sotto Mayor e ilustração de Mariana Negrão.
 

 

 

© Maria Estela Guedes
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