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Estendida na terra debaixo das laranjeiras em flor,
sentindo o delicioso aroma do azahar, aliado aos miríficos odores da
alfazema, do jasmim e do basilisco, estou aqui longe de tudo. Do mundo
distante, sem parentes, sem amigos que me vejam e com quem possa falar
às vezes. E é por isso que escrevo e também é por isso que planto e que
semeio este jardim. Um jardim - pomar que inventei, nesta terra
tropical, de laranjeiras e ervas aromáticas. As árvores e as ervas
cresceram mais depressa e estão bem maiores e são muitas mais do que os
meus textos, poemas, contos, biografias, histórias... cartas.
Enterrei por debaixo da laranjeira grande os poemas que escrevi pensando
no prazer de comer laranjas. De as beber, escorrendo o sumo pelos meus
braços, pela minha pele, misturado com o sol desta terra. Entrando na
minha boca, tão suave e tão doce, espalhando-se pelo meu corpo com o
afago do mel e do sol.
Para adubar as próximas laranjas, que trarão já em si o sabor da poesia.
Enterrei-os, escondi-os, porque não é permitido escrever sobre o prazer.
Todos os escritos sérios deveriam falar sobre o sofrimento, sobre as
coisas sérias, filosóficas, ou sobre o amor infeliz ou sobre o desejo de
fugir.
Mas eu nunca soube escrever sobre a dor. Ainda que tivesse a boca cheia
de terra, nunca confessaria que os deuses me conseguem fazer sofrer. Nem
a terra. Nem os homens.
Havia um rei, lá muito longe, nessa distante Europa onde nasci, que
entretinha uma orquestra privativa e que tinha um grande lago, no enorme
palácio. E músicos grandiosos, viajados, cultos e infelizes, que
escreviam só para ele.
Enquanto à noite, nas belas noites quentes da lua cheia, o rei vogava no
seu lago, conduzido pelos barqueiros dum belo e luxuoso barco, que porém
mal se via na escuridão, a orquestra tocava, na terra parada e imóvel,
as músicas que só para ele tinham criado os músicos infelizes. Os
compositores, que haviam vagueado pelas florestas ignotas, traziam só
para ele o fruto dos vários cantos da terra, imitando os pássaros,
imitando os primitivos cantores, imitando o vento quando passa nos
rochedos das montanhas ou do mar, imitando o rugido tremendo ou pacífico
dos oceanos. Filtrado pelas filosofias, pelas mística e pelas dores,
filosofias, místicas e dores que haviam sofrido com igual paciência,
para sacrificarem as suas vidas à arte.
E enquanto o rei vogava no seu navio nas suas águas, a orquestra, na
terra imóvel, plangia o sofrimento e a beleza que os artistas tinham
colhido, algures, pela terra imensa.
Eu, aqui neste deserto, escrevo. Eu sou o meu barco, o meu mar e a minha
terra. E a minha música e o meu rei. E componho para mim, sem
testemunhas. Sem desculpas.
Posso navegar por todos os mares, rios e lagos que percorrem a terra. E
procurar o prazer de todos as presenças. E dizê-lo.
Os meus poemas e as minhas flores, as minhas laranjas que bebi nas
noites quentes de luar, são a pérola que envolve de suavidade a dor da
minha alma peregrina. Não há sofrimento para contar. Nunca houve.
Só a beleza às vezes dói. Por fazer pensar que não é tudo demasiado
belo.
(E mais ninguém, a não ser eu e as minhas laranjeiras e as minhas flores
de azahar e de basilisco poderá comer os frutos doces e as sementes dos
meus poemas. De mim que fui dotada, por meu azar, do dom da escrita, que
nunca me dá sossego e me afasta de todos. De tudo. Só me aproxima do
universo, lá longe... e da luz.) |