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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Luis Buñuel y Portolés, nascido na vila de Calanda, Espanha, a 22 de
Fevereiro de 1900, o “actor” principal deste breve resumo biográfico e
artístico, é hoje unanimemente considerado como um dos expoentes máximos
da arte cinematográfica mundial, um dos grandes Mestres (a par de
Bergman, Visconti, Fellini, Antonioni e Kurosawa), não só pela nova
gramática que trouxe ao inconsciente colectivo dos seus espectadores,
feita de Desejo, Sexo, Paixão, Pulsão e Perversão, mas também pela
coragem e bravata das suas experiências, das suas transgressões fílmicas,
pela nitidez com que expôs no grande ecrã as fraquezas, delírios e
prazeres de toda uma sociedade que se viu reflectida no espelho e teve
receio de retribuir o olhar…
Buñuel, artista multifacetado, forjado na experiência surrealística e no
ambiente culturalmente rico da Espanha pré-Guerra Civil, tentou sempre
levar até aos limites a noção de que tudo era questionável na sociedade
contemporânea, desde os dogmas religiosos até às noções de pudor e de
decoro social, procurando nos seus filmes um olhar ao mesmo tempo
límpido e oblíquo sobre as relações humanas, sobre os jogos sociais e o
absurdo da vivência social, tentando compreender a psique humana.
A vida
de Buñuel, extremoso pai de família e a antítese psicológica dos seus
protagonistas, é cheia de episódios, de descobertas, de realizações e
contradições, que iremos abordar neste trabalho de uma forma sintética,
que poderá não fazer jus a um criador de tamanha complexidade e
qualidade, mas que poderá abrir as portas à obra de um artista
inigualável, que foi, como refere João Benárd da Costa na sua resenha
fílmica no catálogo da Cinemateca Portuguesa, um cineasta do “profundo
desejo em latência e profundamente perturbador, cuja raiz, como a de
qualquer mistério, não é muito facilmente explicável, ou não o é de
todo”.
Referência esta feita a propósito do seu primeiro filme, o polémico,
ultra-surrealista e desvairado Un Chien Andalou, de 1929, que
inicia uma viagem ímpar pelos mundos dum cinema pessoal, obcecado e de
autor, que pode balizar todo o seu percurso iconoclasta e irreverente
pela tela dos sonhos. |
EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Gaspar Garção
O OLHO MÁGICO DE
LUIS BUÑUEL
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O
virar do século – infância e adolescência |
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A vila de Calanda, no início do século XX, e a infância e juventude de
Luis Buñuel passadas nessa “sociedade isolada, imóvel, marcando muito
claramente as diferenças entre as classes”, foram decisivas para o seu
desenvolvimento como adulto e para a sua obra, como o próprio refere na
sua autobiografia: “É a Calanda que eu devo os meus primeiros encontros
com a Morte que, juntamente com uma fé profunda e o despertar do
instinto sexual, compõe as forças vivas da minha adolescência”.
Nesta frase assustadoramente sincera, já se vislumbra o Buñuel dos
filmes blasfemos sobre a religião, dos seus encontros com a perversão e
o libertar do desejo sexual e a sua corresponde frustração, que
analisaremos nos próximos capítulos.
Outro
episódio marcante do imaginário psicológico de Calanda para a criança
Buñuel, é o ritual dos tambores de Calanda, que o fascinou e o
perseguiu durante toda a sua carreira, chegando a incorporar essa batida
sincopada em muitos dos seus filmes. Os tambores de Calanda, segundo
relata na sua autobiografia, “batem sem interrupção, ou quase, desde o
meio-dia de Sexta Feira Santa até ao dia seguinte, sábado santo, à mesma
hora, comemorando as trevas que se estenderam sobre a terra no instante
da morte de Cristo. (…) Cerimónia colectiva impressionante, extremamente
comovente, que ouvi pela primeira vez no berço, com a idade de dois
meses, participei nela depois muitas e várias vezes (…) dando a conhecer
estes tambores a numerosos amigos, que tal como eu, ficaram fulminados
de emoção”. Emoção devida “às pulsações de um ritmo secreto que nos
surpreende do exterior e nos transmite uma espécie de fricção física,
fora de qualquer razão”.
Mas no
resto do tempo, Calanda era uma vila obstinadamente aragonesa, fechada,
conservadora, religiosa e beata e, apesar da família Buñuel se ter
mudado para Saragoça quando Luis fez quatro meses, era nela que passava
a maior parte do seu tempo mental e as férias. O seu desejo de mudança
era já difícil de controlar, e a sua família, de classe média e
moderadamente religiosa, já se havia apercebido disso, quando Buñuel foi
expulso, aos catorze anos, do colégio de Jesuítas onde havia ingressado
muito novo. Os desafios filosóficos e religiosos do aluno, dotado e
rebelde, levaram os seus pais a matriculá-lo no Instituto de Saragoça,
laico, onde terminou o liceu e descobriu as obras de Spencer, Rousseau,
Marx e Darwin, que o fizeram perder o pouco de Fé que ainda lhe restava.
Na Saragoça da sua infância e
adolescência, de que Buñuel se relembra como uma “cidade calma e plana,
onde os carros puxados a cavalo caminhavam já ao lado dos comboios”, dá
azo ao seu prazer de encenações teatrais imberbes com os pequenos
teatros que os pais lhe traziam de Paris, e ao seu amor precoce pelo
cinema, uma etapa de transição para o alargar de horizontes que se deu
quando mudou para a capital, Madrid, aos dezassete anos.
O período que passa na Residência
de Estudantes em Madrid, de 1917 a 1925, onde sucessivamente estudou
Engenharia Agrónoma, Engenharia Industrial e depois Filosofia, é o
primeiro capítulo da história de Buñuel verdadeiramente como “mito”, tão
bem demonstrado no filme/fantasia que Carlos Saura dedicou a esta época
riquíssima da sua vida, Buñuel y la Mesa del Rey Salomon.
Na Residência conheceu, privou e
fez amizade com homens que se tornariam grandes vultos da cultura
espanhola, como os poetas Rafael Alberti e Federico Garcia Lorca, e a
mais marcante, com o genial pintor Salvador Dalí, com quem manteve uma
relação atribulada, que foi desde a mais estreita colaboração até ao
rompimento total.
Nesta época, enfrentou-se “com
uma escolha inevitável. O ambiente em que vivia, o movimento literário
que agitava Madrid nesse momento e o encontro de amigos inestimáveis –
tudo isso influenciou esta escolha. Em que exacto momento decidi eu a
minha vida? Hoje é quase impossível dizer”.
Começou aí o seu interesse pela
cultura, pelas “penãs”, tertúlias literárias que juntavam uma série de
gerações de intelectuais, de pensadores, de filósofos, onde conheceu
Ramón Gomez de la Serna, que o iniciou no cinema, e o grande pensador
Miguel de Unamuno, além de Jorge Luis Borges. Mas nesta época, os
interesses do jovem Buñuel eram mais terrenos e “normais”: “É-me
impossível contar dia após dia o que foram esses anos de formação e
encontros, as nossas conversas, o nosso trabalho, os nossos passeios, as
nossas bebedeiras, os bordéis de Madrid (…) e as nossas longas noitadas
na Residência”.
As paixões de Buñuel eram já
nesta altura muito “surrealistas”, e obviamente de curta duração, desde
a música tradicional espanhola (tentou aprender a tocar banjo), até às
partidas originais que faziam aos incautos (chegou a fingir ser guia
turístico no Museu do Prado, levando dezenas de turistas atrás,
fascinados pelas suas absurdas e absolutas mentiras sobre as obras de
arte), e ao hipnotismo. A criação mais interessante dos seus inícios
“estudantis” e culturais foi, em 1923, a Ordem de Toledo, apócrifa e
original, que consistia em rituais típicos da juventude, mas que
demonstravam já um fascínio pelo proibido, pelo inalcançável, pelo
mistério e pelo Saber.
Foi nesta época que o cinema
voltou a interessar o jovem Buñuel, que já anteriormente, quando criança
em Saragoça, se havia apaixonado por Méliès e Greta Garbo. Em Madrid,
assiste, em encontros românticos, a filmes de Harold Lloyd, Buster
Keaton e Chaplin. Reflecte Buñuel, muitos anos depois, que “o cinema
trazia uma forma de narração tão nova, tão desabitual, que a imensa
maioria do público mal conseguia compreender o que se passava no écran”.
Na sua autobiografia, Buñuel
continua a elaborar estas reflexões a posteriori, dizendo, algo
cruelmente, que acha que “o cinema exerce sobre os espectadores um certo
poder hipnótico. Basta olhar para as pessoas que saem duma sala de
cinema, sempre em silêncio, com a cabeça baixa e um ar longínquo. (…) A
hipnose cinematográfica, ligeira e inconsciente, exerce-se, sem dúvida,
através da obscuridade da sala, mas também por meio das mudanças de
planos, luzes e movimentos de câmara, que enfraquecem a inteligência
crítica do espectador e exercem sobre ele uma espécie de fascínio e
violação”. Fascínio e “violação” das expectativas e da personalidade do
espectador que, pode ser dito, foram os objectivos do seu cinema, e o
resultado do seu poder e “hipnose” perante nós, os seus “discípulos”.
A morte do pai, em 1923, é o
momento mais marcante destes seus anos como estudante universitário,
regressando a Saragoça para o enterro (onde têm uma alucinação com uma
visita do pai, fantasma, como muitos anos depois ficcionará em
Viridiana), tornando-se ele o chefe de família, o primogénito de
sete filhos.
Este trágico acontecimento marca
o início da próxima etapa da sua vida: “sem a morte do meu pai, teria
talvez permanecido mais tempo em Madrid. Conseguira o meu diploma de
Filosofia e renunciara a prosseguir os meus estudos até ao Doutorado.
Queria partir a todo no custo, só estava à espera duma ocasião, que
surgiu em 1925”.
Buñuel parte para Paris em 1925,
a cidade onde havia sido concebido, e onde dará os passos decisivos,
adultos, no mundo da cultura e no mundo do cinema, que tomará de assalto
em 1929. |
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O
inicío da viagem cinematográfica – Dalí, “Un chien andalou” & “L’age d’or” |
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A
primeira estadia de Buñuel em Paris dá-se com o pretexto de acompanhar e
ajudar um amigo, Eugenio d’Ors, que vai ocupar um cargo numa instituição
cultural internacional, passando Buñuel os dias a ler e a aperfeiçoar o
seu francês e o seu inglês, vivendo frugalmente com o dinheiro enviado
pela mãe.
Buñuel retoma as suas participações em tertúlias, convivendo com os
“metecos” (emigrantes espanhóis), tomando contacto com as delícias da
vida boémia parisiense, com o vinho e as mulheres de Montparnasse,
confraternizando com pintores e escritores como Picasso, embora nesta
época o movimento surrealista não o atraísse ainda.
Nestes anos iniciais em Paris, Buñuel escreve algumas peças teatrais
curtas que encena com amigos (Hamlet, inédita em livro até aos
anos 80, quando a Cinemateca Portuguesa a publicou), tendo a sua
primeira grande oportunidade no mundo cultural com a encenação da peça
Retablo de Maese Pedro, com música de Manuel de Falla, a partir
de Don Quixote, representada com sucesso em Amesterdão.
Apesar das suas frequentes visitas a Madrid, onde convive como
antigamente com o seu grupo de amigos, e onde assiste à estreia da peça
Dom Perlimplim, ou Bélise no seu Jardim, de Garcia Lorca, o passo
seguinte de Buñuel seria envolver-se no mundo do cinema, começando a
escrever críticas na revista “Cahiers d’Art”, sobre Buster Keaton, Eric
Von Stroheim, Fritz Lang, Eisenstein, Murnau, etc. Em 1927 participa,
como assistente de realização, nos filmes Mauprat e A Queda
da Casa de Usher, de Jean Epstein, dando os primeiros passos na
aprendizagem técnica do seu futuro “métier”. Nesta época tem ainda
experiências fugazes como figurante, e como assistente da caprichosa
estrela americana Josephine Baker, no filme A Sereia dos Trópicos.
Buñuel pretendeu ainda, em 1928,
realizar o seu primeiro filme, a pretexto das comemorações do
centenário da morte de Goya, tendo inclusive escrito um argumento, mas
o projecto não teve seguimento por razões económicas, fazendo ainda uma
nova tentativa gorada na escrita de argumentos, com um projecto baseado
em contos de Rámon Gomez de la Serna, amigo dos tempos de Madrid, sobre
as diversas etapas da produção de um jornal.
No entanto, o início da sua
careira cinematográfica não poderia ter sido mais marcante e
“explosivo”, com uma curta-metragem icónica que contém mais ideias e uma
imagética visual mais poderosa que muitos épicos actuais.
Un Chien Andalou,
o primeiro filme inteiramente surrealista, nasce do “encontro de dois
sonhos. Ao chegar a casa de Dalí (…) contei-lhe que sonhara, pouco tempo
antes, com uma nuvem afilada que cortava a Lua e com uma lâmina de barba
que fendia um olho”, e o argumento, escrito a duas mãos com Salvador
Dalí, revolucionará o cinema e o movimento surrealista, uma influência
cinematográfica e narrativa que ainda hoje se sente.
O filme consiste numa série de
sketches, cuja idealização respeitou apenas uma regra, “não aceitar
nenhuma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar lugar a uma explicação
racional, psicológica ou cultural; abrir as portas ao irracional”.
Os membros mais ilustres do
movimento surrealista, ao qual Buñuel havia aderido em 1928 (Man Ray,
Louis Aragon, Max Ernst, André Breton, Paul Eluard, Tristan Tzara, René
Magritte, Benjamin Péret, etc), visionam e aprovam o filme, que é
finalmente apresentado perante uma plateia de convidados em 1929, no
cinema “Les Ursulines”. Além dos surrealistas, a fina-flor cultural de
Paris está presente (Picasso, Jean Cocteau, Le Corbusier, etc), e
Buñuel sente alguma ansiedade, estando por detrás do pano a escolher a
banda sonora (tangos e música clássica), com os bolsos cheios de pedras
“para lançá-las sobre a assistência em caso de falhanço”. Tal medida
desesperada não foi necessária: “no fim do filme, atrás do écran, ouvi
os aplausos prolongados e desembaracei-me discretamente dos meus
projécteis, atirando-os para o chão”.
Un Chien Andalou
é, como Breton tão
surrealisticamente o definiu, “belo, como o encontro dum guarda-chuva e
dum cão na mesa de autópsia”, um filme sobre “a punição do próprio acto
de olhar (…) associado à proibição do prazer erótico (…), à morte. Neste
sentido (…), é uma prodigiosa introdução a uma imagética e a uma ética”,
como refere Bénard da Costa.
A este sucesso fílmico, segue-se
a integração de pleno direito no grupo surrealista, nas suas reuniões e
actividades, muito centradas na ideia de revolução “contra as
desigualdades sociais, a exploração do homem pelo homem, a dominação
embrutecida da religião, o militarismo grosseiro e colonialista”, ideias
que levaram muitos membros a desligar-se do movimento e a aderir ao
Comunismo, do qual Buñuel foi apenas um simpatizante fugaz, um
“compagnon de route” até aos anos 50.
No entanto, a génese do
envolvimento social era uma parte intrínseca do movimento, como o
próprio Buñuel refere: “o verdadeiro objectivo do surrealismo não
consistia em criar um novo movimento literário, ou pictórico, ou mesmo
filosófico, mas sim em fazer estoirar a sociedade, mudar a vida”.
Depois do sucesso crítico e de
público do filme (que ainda assim recebeu denúncias na polícia por
obscenidade e crueldade), Buñuel passou por algumas quezílias com o
cada vez mais politizado movimento surrealista. Mas é ainda sob a égide
do surrealismo que realiza o seu segundo filme, a média-metragem L’
Age d’Or, em 1930. Patrocinado pelo Visconde de Noailles, mecenas
das artes vanguardistas, Buñuel inicia o argumento de novo com Dalí, mas
dá-se uma ruptura profissional, por motivos de opinião, à qual se
seguirá, muitos anos depois, a ruptura pessoal. Ainda assim, Buñuel
mantém Dalí nos créditos como co-argumentista.
O cineasta, que reconhece na sua
autobiografia não ter voltado a ver o filme desde a sua estreia, refere
que este é principalmente um filme “de amor louco, dum impulso
irresistível que impele um para o outro, sejam quais forem as
circunstâncias, um homem e uma mulher que nunca se podem unir”, um
conceito recorrente nos seus filmes finais.
L’Age d’Or,
uma série de três episódios visceralmente violentos e anti-clericais,
inspirados na obra do Marquês de Sade, é, segundo Benárd da Costa,
apenas “a explicitação da omnipresente associação entre o Amor e a
Morte”, na sua obra, provocando na sua estreia ondas de ultraje e de
denúncia, com os meios conservadores e de extrema-direita a tomarem a
dianteira na sua repulsa por essa provocação abjecta e os jornais
católicos a proferirem a excomunhão de Buñuel, recomendação que o
Vaticano esteve quase a seguir (Buñuel no futuro dar-lhes-ia razões para
reverem esta atitude). Os grupos de extrema-direita, nessa altura e até
ao final da guerra muito activos em França, chegaram a lançar bombas
para os cinemas onde o filme era projectado, e a destruírem as suas
cadeiras. O filme foi imediatamente proibido pelo direitista chefe da
polícia de Paris, e só seria visto neste país cinquenta anos depois (em
Portugal só seria projectado em 1982).
Buñuel está, nesta época, no pleno desabrochar das suas capacidades
criativas, e além do grupo surrealista com quem continua a conviver (e
que o defende na polémica que se seguiu), conhece também outras figuras
importantes do mundo cultural, como Juan Miró, Georges Battaile e
Antonin Artaud. Reflectindo muitos anos depois sobre o movimento
surrealista, o cineasta escreve que este “estava pouco preocupado em
entrar gloriosamente nas histórias da Literatura e da Pintura, o que
ele desejava acima de tudo, desejo imperioso e irrealizável, era
transformar o mundo e mudar a vida (…). Devorados por sonhos imensos (…)
não éramos nada – nada mais que um pequeno grupo de intelectuais
insolentes, que palavreavam num café e publicavam numa revista. No
entanto, ficou-me para toda a vida alguma coisa da minha passagem (…)
pelas fileiras exaltadas e desordenadas do surrealismo, [o] livre acesso
às profundezas do ser, reconhecido e despojado, este apelo ao
irracional, à obscuridade, a todos os impulsos que vêm do nosso eu
profundo. Apelo esse que ressoava (…) com uma tal força, uma tal
coragem, e que se rodeava de uma rara insolência, dum gosto pelo jogo,
duma intensa perseverança no combate contra tudo o que nos parecia
nefasto”.
Depois da obra-prima que é
L’Age d’Or, Buñuel entrará numa fase criativa irregular, voltando
apenas a filmar em Espanha em 1932, outro filme polémico e censurado, o
documentário Las Hurdes, que descreve uma Espanha pobre e
envergonhada, a mesma Espanha que brevemente iria mudar drasticamente
com o início da Guerra Civil. |
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A
guerra civil espanhola – A fuga para França e o “exílio” em Hollywood |
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Apesar do escândalo de L’Age d’Or, Buñuel é ainda assim convidado
pelo chefe dos estúdios da Metro- Goldwyn-Mayer em Paris, impressionado
pelo que vira no filme, a empreender uma viagem de seis meses a
Hollywood, de aprendizagem e de troca de conhecimentos. Na sua primeira
estadia em Hollywood, Buñuel conhece e priva com grandes nomes do cinema
e das artes, como Chaplin, Bertolt Brecht, Josef Von Sternberg, Serguei
Eisenstein, assim como os chefes dos grandes estúdios.
Mas rapidamente se desilude com a máquina dos estúdios de Hollywood e,
sendo ignorado e pago mesmo sem efectuar qualquer trabalho, limita-se a
comparecer a festas e cocktails dados pelos seus amigos, pouco
aprendendo desta primeira passagem pela Meca do cinema.
Ao chegar a Paris, Buñuel tem à sua espera a noiva, Jeanne, e juntos
partem para Madrid, onde pouco depois é proclamada a República
Espanhola, em Abril de 1931.
É em Espanha, depois de um progressivo afastamento do grupo surrealista,
cada vez mais embrenhado na política, que Buñuel realizará o seu
terceiro filme, o documentário Las Hurdes, uma média-metragem
chocante e dolorosamente real, sobre a pobreza duma região montanhosa
entre Cáceres e Salamanca, na Extremadura. O filme tem uma génese algo
“surrealista”, segundo conta Buñuel na sua autobiografia. Ramón Acin, um
seu amigo anarquista, depois fuzilado na Guerra Civil, prometeu-lhe
financiar o filme se lhe saísse a lotaria, e dois meses depois, o
“impossível” aconteceu, e Buñuel partiu apenas com um assistente e um
operador de câmara para a desolada região. O documentário, apresentado
em 1933 apenas com imagens, sem narração, foi prontamente proibido pela
jovem República, com o argumento de que dava uma imagem feia e
desagradável de uma Espanha que se queria moderna (o filme, com narração
em voz off e banda sonora de música clássica, apenas foi
permitido em 1937).
Buñuel comenta na sua autobiografia que “estas montanhas deserdadas
conquistaram-me rapidamente. A destreza dos habitantes fascinava-me,
assim como a sua inteligência e o seu apego à terra perdida, à sua
«terra sem pão» [o subtítulo do filme em português]”.
Bénard da Costa considera Las Hurdes um filme “aparentemente (…)
nos antípodas do surrealismo de lirante das duas primeiras obras”, mas
ao assistir-se ao desfile de caras cheias de dor e fome, de pobreza,
angústia e desespero, mas também de altivez e de esperança, antevê-se um
pouco do que transpareceria mais detalhadamente em Los Olvidados:
o microcosmos da natureza humana. Como Buñuel referiu, ”não são as
imagens que são surrealistas, o mundo é que o é”.
A imagem final
que nos fica deste filme, e uma das ideias-chave da sua obra, é a
litania que uma velhota murmura ao atravessar o lugarejo miserável onde
vive: “nada pode manter-nos mais acordados do que pensar permanentemente
na morte”.
Depois de mais
uma proibição dum filme seu, Buñuel casa-se com Jeanne, em 1934, e nesse
ano nasce o seu primeiro filho e futuro realizador, Juan-Luis. Decide
então enveredar por uma carreira de produtor, mais promissora em termos
económicos, através da colaboração com Ricardo Urgoiti, com o qual fará
uma série de filmes populares. Nem os seus biógrafos concordam sobre
qual terá sido exactamente o papel de Buñuel nesta época, embora se
julgue que tenha co-realizado e co-escrito, embora sem aparecer nos
créditos, La Hija de Juan Simon e Don Quintin el Amargao
(1935), o último filme o seu maior sucesso desta época e que depois
rodará no México em 1951, como La Hija del Engano, e ainda
Centinela Alerta! e Quien me Quiere a Mi?, de 1936.
Depois da
eclosão da revolta militar, em 1936, e do início da Guerra Civil, Buñuel
mantém-se em Madrid, longe da mulher e do filho, que haviam partido
anteriormente para Paris. Buñuel descreve com paixão, tristeza e
angústia estes anos, que viveu por dentro, descrevendo o caos, a
desorganização e o terror, mas também a coragem e a militância dos
habitantes da capital espanhola, juntando-se aos combatentes e chegando
a salvar de um fuzilamento certo o seu amigo Saenz de Heredia,
realizador de La Hija del Engano e simpatizante franquista.
Apesar das suas simpatias teóricas pela anarquia, Buñuel não aprova o
comportamento arbitrário dos seus apoiantes e das suas brigadas, assim
como não apoia as brigadas do P.O.U.M., um grupo trotskista, já se
antevendo aqui os conflitos que iriam minar a resistência republicana.
O acontecimento
mais dramático nesta época, para Buñuel, foi o assassinato do seu amigo
Federico García Lorca, em 1936, de quem se lembra emocionadamente como
alguém que “pela força da nossa amizade, [me] transformou, fez-me
conhecer outro mundo. Devo-lhe bastante mais do que aquilo que possa
dizer”.
Em 1937, Buñuel parte para Paris, para ajudar a República em acções de
propaganda, a pedido do Ministro dos Negócios Estrangeiros, sendo chefe
de protocolo na embaixada espanhola, supervisor dos filmes de propaganda
rodados em Espanha (tendo colaborado em Espana Leal en Armas, de
1937). Nesta altura, viaja também pela Europa, com o intuito de angariar
fundos para a causa republicana. Em 1939, vai continuar essas funções
em Hollywood, onde será brevemente conselheiro histórico e técnico de
filmes de propaganda, privando de novo com Chaplin, a quem acusa de não
ter ficado abertamente ao lado da Espanha, e com René Clair, realizador
francês com quem compartilha muitos dos interesses fílmicos.
Após a derrota
dos republicanos e o fim da Guerra Civil, Buñuel pede asilo político aos
Estados Unidos, iniciando-se assim mais um capítulo da sua vida, pautado
pelo deserto cinematográfico e criativo, que só terminará em 1946. |
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O
“exílio” mexicano – “Los olvidados” |
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A chegada de Buñuel a Nova Iorque em 1940 (onde nasceria o seu 2º filho,
Rafael, nesse mesmo ano), dá-se para trabalhar no Museu de Arte Moderna
(MoMA), para supervisionar documentários de resistência aos Nazis, e
ainda a remontagem de vários filmes de propaganda nacional-socialista,
como O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, dobrados em
várias línguas para distribuição no estrangeiro. Nesta época, convive
com outros expatriados do movimento surrealista, como Breton, Ernst,
Marcel Duchamp, Ferdinand Léger, e conhece escritores como Saint-Exupéry
e Claude Lévy-Strauss, além de muitos outros apátridas da Guerra
Mundial.
Em 1943, Buñuel demite-se do seu cargo (para não ser demitido), devido
às polémicas declarações de Dalí na sua recém-publicada autobiografia,
em que apelida Buñuel de comunista e ateu. As relações entre ambos, que
já eram frias, ficariam irrevogavelmente danificadas, tendo os dois
apenas trocado correspondência cortês e tido alguns encontros
esporádicos e “diplomáticos” até ao final das suas vidas.
Sem emprego e com problemas de saúde, Buñuel parte de novo com a família
para Los Angeles, onde passará os dois próximos anos a viver às custas
do dinheiro amealhado em Nova Iorque. Nessa época, porá as esperanças
numa série de projectos, que definiu como “inúteis”: um esboço de
argumento com o pintor Man Ray, uma sequência escrita (e não creditada),
para o clássico The Beast with 5.000 Fingers, de Robert Florey, e
ainda uma fracassada realização de uma adaptação de A Casa de
Bernarda Alba, de Garcia Lorca, a ser filmada na recém-libertada
Paris. Das cinzas deste projecto nasceu uma viagem ao México, na qual
ocorrerá o episódio que irá marcar a sua carreira futura, um contacto
telefónico com um produtor mexicano seu conhecido, Óscar Dancigers, que
lhe propõe filmar um musical à mexicana com as duas estrelas do momento,
uma “encomenda” com óbvio interesse económico que Buñuel aceitará,
marcando com a sua presença, de forma indelével, esta “época de ouro” do
cinema mexicano.
Dos muitos filmes feitos nesta época, que poderemos considerar a sua
primeira fase mexicana, são de menor interesse para os críticos as
“encomendas” que realizou (algumas com muito sucesso, outras nem tanto),
embora todas tenham alguns pontos de interesse para o espectador,
principalmente pelo subtexto e a irracionalidade inesperada e
irreverente que se encontra sub-repticiamente nalguns desses filmes.
Podem-se incluir nesta lista de encomendas os filmes Gran Casino,
de 1947, uma comédia musical de amores e desamores, em que os dois
actores principais fazem um despique de tangos, e que foi um grande
fracasso; El Gran Calavera, de 1949, uma comédia de costumes
contemporânea sobre um pândego rico, que reconhece os males do seu
comportamento, um enorme sucesso que lhe possibilitou fazer projectos
mais pessoais (este filme marca também a sua primeira colaboração com
Luís Alcoriza, o seu argumentista de escolha na primeira fase mexicana,
com quem colaboraria em 11 filmes, até El Ángel Exterminador); e
Una Mujer Sin Amor, de 1952, uma complicada “telenovela” à
mexicana, que Buñuel considerava o seu pior filme.
Dos filmes que
realizou já com argumentos mais pessoais e com uma maior qualidade
cinematográfica, destacam-se obras por vezes algo desequilibradas, como
Susana, de 1951, uma metáfora sobre o poder do desejo e do
pecado, disfarçada de história banal, em que a Susana do título
(“perversa” como o subtítulo português a descreveu), semeia a discórdia
numa família burguesa; La Hija del Engano, de 1951, drama
sentimental, sobre um pai insensível e a sua filha ilegítima, que é um
remake de Don Quintin el Amargao, uma das suas produções dos anos
30; El Bruto, de 1953, com Pedro Armendáriz e Katy Jurado, um
drama político e social sobre o ciúme e a violência; Abismos de
Pasión, de 1954, uma adaptação para o México contemporâneo do
clássico O Monte dos Vendavais, de Emily Bronté (um dos romances
preferidos dos surrealistas), que Buñuel considerou um fracasso devido
ao elenco que lhe foi imposto; El Rio y la Muerte, de 1954, um
drama geracional sobre o poder da violência, situado no México profundo;
e La Ilusión Viaja en Tranvía, de 1954, um filme que Buñuel não
admirava, mas que a crítica recuperou como uma das suas melhores obras
deste período, sobre uma surrealista viagem de eléctrico e os estranhos
ocupantes da viatura.
Além destas
obras, destacam-se nesta fase alguns projectos que rodou no México (com
uma excepção), em língua inglesa e francesa. Os filmes em língua
inglesa, para distribuição em Hollywood e com co-financiamento
americano, são The Adventures of Robinson Crusóe, de 1953, o seu
primeiro filme a cores, adaptação do clássico de Daniel Defoe, que foi
um dos maiores sucessos da sua carreira e que valeu uma nomeação ao
Óscar de Melhor Actor a Dan O’Herlihy (e ainda três prémios “Ariel”, o
Óscar mexicano, a Buñuel, para Melhor Filme, Realizador e Argumento); e
The Young One, de 1960, um dos filmes mais incompreendidos e
subvalorizados da sua carreira, uma pessoalíssima e crua reflexão sobre
o desejo e o racismo, com laivos de Lolita, sobre a relação de um
órfã adolescente, Evvie, que vive sozinha numa ilha do Sul dos EUA, com
um negro fugido à justiça e o seu pretendente adulto e branco, uma
personagem que é o arquétipo fiel do apoio à segregação e discriminação
desta época. Bénard da Costa classifica a personagem de Evvie como o
retrato da “inocência perversa, assombrosa mescla de capacidade de
detonação do mal e da ingenuidade mais desprevenida”. O filme, que foi
um fracasso de público, ainda assim recebeu um prémio internacional
importante, a Menção Especial do Festival de Cannes.
Os filmes
realizados em língua francesa e em co-produção com a França foram menos
conseguidos e mais frustrantes para o realizador, podendo ser também
considerados “encomendas”, embora tratando temas mais importantes e
adultos que os seus primeiros filmes mexicanos. Cela s’Apelle l’
Aurore, de 1956, filmado na Córsega, é um drama sobre relações
sociais e políticas, adaptado a partir de um best-seller de Emmanuel
Roblés; La Mort en ce Jardin, de 1956, com co-argumento do
grande escritor Raymond Queneau, é um drama passado numa colónia
francesa, opressivo e labiríntico, sobre a luta de classes, a opressão
colonial, o amor e a cobiça, com Simone Signoret e Michel Piccoli, que
se viria a tornar um dos seus melhores amigos e colaboradores; e La
Fièvre Monte à El Pao, de 1960, uma parábola política passada num
país imaginário da América do Sul, o último filme de Gérard Phillipe,
falecido nesse mesmo ano.
Três dos filmes mais importantes da sua primeira fase mexicana, são (a
par do já mencionado The Young One), Subida al Cielo, de
1952, um drama com personagens pertencentes às classes baixas, passado
numa aldeia à beira mar e durante uma viagem de autocarro, que Bénard da
Costa considera um “dos seus filmes mais delirantes e deslumbrantes”,
onde se sentem, talvez pela primeira vez, na fase mexicana as suas
raízes surrealistas, na mescla entre o quotidiano e o burlesco, entre o
sagrado e o erótico, mas do qual Buñuel, despretensiosamente, apenas
guardou na sua autobiografia principalmente as boas recordações em
termos da facilidade e rapidez das filmagens; El, de 1953, um dos
filmes favoritos do realizador, muito mal recebido pela crítica, mas que
o famoso psicanalista Jacques Lacan escolheria como base de um curso
sobre a paranóia. O filme é um estudo sobre a burguesia, o ciúme, a
frustração sexual e a “castração” religiosa, centrado numa personagem
ciumenta e paranóica, Francisco, rico burguês de meia-idade, religioso e
virgem que, depois de um casamento e de um divórcio doloroso que o levou
à loucura, se refugia num convento, onde a sua jovem ex-mulher pensa
que, aparentemente, a sua perturbação paranóica se atenuou, excepto pelo
facto de Francisco não conseguir andar a direito, de se mover aos
ziguezagues. Bénard da Costa descreve-o como “um filme que
sistematicamente afasta qualquer interpretação linear, e onde a zona de
perturbação é mais funda do que o diagnóstico de paranóia, ou de que a
análise de um comportamento de classe levado ao extremo”. Sobre a
paranóia, e a propósito das razões que o levaram a escolher este tema,
Buñuel refere que “os paranóicos são como os poetas, já nascem assim.
Depois, interpretam sempre a realidade no sentido da sua obsessão, com a
qual tudo se relaciona”; Ensayo de un Crimen, de 1955, é uma
delirante e irresistível viagem pela mente de um arquitecto rico e
mimado, aspirante a “serial killer” e obcecado pelas mulheres que deseja
e que pretende assassinar, mas que, sem capacidade para tornar reais as
suas pulsões, recorre ao casamento e ao “assassinato” e queima de
manequins que representam essas mulheres, para depois se entregar, sem
sucesso, à polícia. É uma comédia negra na “corda bamba entre os
obscuros desejos de fusão sexual e os desejos (ainda mais obscuros) de
que essa fusão não se dê (...) chegando ao ponto máximo de tensão, sem
jamais haver descarga. A ideia do desejo prevalece sobre a sua
satisfação, os fantasmas ocultos sobre qualquer representação real”,
como tão bem a descreve Bénard da Costa, no seu essencial livro sobre a
obra de Buñuel.
Mas uma das
obras-primas do seu primeiro período mexicano é o filme Los Olvidados,
de 1950 (prémio do Melhor Realizador em Cannes e vencedor de quatro
prémios “Ariel”, para Melhor Filme, Realizador, História Original e
Argumento), que na época chocou a sociedade mexicana de todos os
quadrantes, desde a Igreja Católica até ao Partido Comunista, com o seu
retrato desapiedado e “cruel” das crianças da rua da Cidade do México, a
sua entrada numa espiral de delinquência e morte, os adultos que se
aproveitam deles e a humanidade que se encontra até nesses lugares
“esquecidos”.
Apenas depois
da consagração do filme em Cannes, o prémio mais importante, à época, do
cinema mexicano, lhe foi dada uma segunda oportunidade, tanto pelo
público como pelos críticos, sendo hoje em dia considerado um clássico
do cinema neo-realista. Um dos seus grandes apoiantes na altura foi o
futuro Prémio Nobel da Literatura, o mexicano Octavio Paz, que
distribuiu ele próprio uma crítica na sua estreia no Festival de Cannes,
onde refere que Los Olvidados é um filme “sobre o conflito entre
a consciência humana e a fatalidade externa, e esse conflito é a
essência da tragédia”.
André Bazin, o
grande crítico francês, escreveu a propósito de Los Olvidados,
que “a grandeza deste filme só se capta quando se sente que Buñuel nunca
se refere a categorias morais. Não há qualquer maniqueísmo nas suas
personagens. (…) Aquelas crianças são belas, não por fazerem o bem ou o
mal, mas porque são crianças mesmo no crime e na morte”.
O outro filme
fundamental desta época na obra de Buñuel é Nazarín, de 1959,
adaptado a partir do romance do grande escritor espanhol Benito Pérez
Galdós, originalmente situado no séc. XIX, em Espanha, vencedor do
Prémio Internacional no Festival de Cannes. Nazarín é o seu
primeiro trabalho marcadamente religioso, sobre um jovem padre, Nazarín,
interpretado magistralmente por Francisco Rabal, que vive num bairro
pobre da Cidade do México, com tendências crísticas, de mártir, que
convive com os pobres e desapiedados da sociedade mexicana, mas que se
deixa enredar nas malhas humanas do amor e do desejo. Bénard da Costa
caracteriza os dilemas de Nazarín como “[nem] uma blasfémia, nem uma
apologia. É uma encenação sobre uma impossibilidade e uma frustração,
sobre o lugar do santo (…) num mundo norteado (…) por valores opostos”.
Buñuel disse de Nazarín, que “entre
os filmes que realizei no México, é certamente um dos que prefiro”, e
apesar dos mal-entendidos vindos tanto do campo clerical como do campo
anti-religioso, ainda chegou a receber um diploma de honra pelo filme,
atribuído pelo Cardeal de Nova Iorque, que Buñuel obviamente recusou,
embora o seu produtor tenha feito a viagem para receber o prémio. A
polémica seguinte, aquando do seu regresso a Espanha, foi menos um
mal-entendido do que uma “provocação” deliberada por parte do
realizador, e as suas repercussões e consequências muito maiores do que
as de Los Olvidados ou
Nazarín. |
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A
polémica e a excomunhão – O regresso a Espanha e “Viridiana” |
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A génese de Viridiana, o mais polémico filme de Buñuel (numa
carreira onde as polémicas abundaram), dá-se com o seu regresso a
Espanha, em 1960, ao fim de 24 anos de exílio forçado (durante muitos
anos, os seus encontros com a família serão feitos na parte francesa da
fronteira).
Buñuel, naturalizado cidadão mexicano em 1949, obtém sem grandes
dificuldades um visto no consulado espanhol em Paris, viajando para
Madrid com a família, que o esperava na fronteira para o avisar de
qualquer perigo. Em Madrid, encontra-se com o actor espanhol Francisco
Rabal, que lhe apresenta o produtor mexicano Gustavo Alatriste, que lhe
financiará, com total liberdade, os seus próximos três filmes.
Nesta altura com 60 anos, e com um grave problema de surdez, Buñuel leva
uma vida tranquila em Madrid, vivendo num prédio de apartamentos com a
irmã e frequentando com prazer, mais uma vez, as tertúlias e as tascas
madrilenhas. Terá ainda também possibilidade conviver com o seu irmão
Alfonso, que falecerá pouco depois, em 1961).
Quanto a Viridiana, escrito a meias com Julio Alejandro (com quem
também escreveu Abismos de Pasión, Nazarín, Simon del
Desierto e Tristana), é, segundo ele, “um velho devaneio
quimérico, erótico” sobre a visita de uma noviça (interpretada por
Silvia Pinal) à quinta do seu tio e benfeitor (Fernando Rey), que nutre
por ela, desde há muitos anos, fantasias e desejos eróticos, que tentará
concretizar. Depois da sua fuga e do suicídio do tio, Viridiana regressa
a casa, para cuidar dos pobres e mendigos, que no entanto abusam dela,
tudo culminando num final subentendido com o seu primo (Francisco Rabal)
e a amante deste, depois de Viridiana renunciar à sua vocação.
O argumento, aparentemente
literal e nada chocante (uma das razões porque terá passado pela censura
franquista), tem um final que é mais um “achado” na carreira do
realizador: depois de a censura proibir uma cena final aparentemente
inócua, em que Viridiana batia à porta do primo e entrava, Buñuel
imaginou “um outro final, mais pernicioso que o anterior, porque sugere
bastante claramente um[a] ménage à trois. Viridiana vem participar numa
partida de cartas que coloca o seu primo defronte à outra mulher, que é
a sua amante. E o primo diz-lhe: “eu sabia que tu acabarias por jogar
connosco ao tutu!”.
Buñuel, cujas ideias sobre o amor
e o sexo não eram de todo convencionais ou românticas (embora tenha sido
um pai extremoso e um marido fiel de mais de 50 anos), guardou os seus
pensamentos mais transgressores para os filmes. A propósito do tema do
sexo, menciona na sua autobiografia: “não esperem de mim confidências
extraordinárias. Os homens da minha geração (…) sofriam duma timidez
ancestral relativamente às mulheres e dum desejo sexual que era talvez o
mais forte do mundo”. Este desejo sexual e obsessivo da sua
personalidade, Buñuel guarda-o para as personagens femininas de
Viridiana, de Belle de Jour, e para os retratos dos “homens
da sua geração” de Tristana e Cet Obscur Object du Désir.
Devido a Viridiana, Buñuel
voltou também a cair nas boas graças dos exilados republicanos, que o
haviam apelidado de traidor por ter ido filmar à Espanha Franquista, já
que este “caldeirão” de costumes transgredidos e religião desrespeitada
foi uma enorme polémica, imediatamente proibido em Espanha, embora fosse
a entrada oficial espanhola no Festival de Cannes de 1961.
Com a polémica atribuição a
Viridiana da Palma de Ouro (recebida em palco pelo Director-Geral do
Cinema espanhol, que autorizara o filme e que foi imediatamente
despedido ao regressar a Espanha), o filme segue um percurso
internacional que o levará obviamente a ser proibido em Portugal (onde
só estreará em 1976, sem nenhuma polémica), e em 1962 em Itália, tendo
Buñuel sido condenado, à revelia, a um ano de prisão e o jornal oficial
do Vaticano apelado à sua excomunhão e à excomunhão de quem visse o
filme. Nos locais onde foi permitido, a publicidade do filme perturbou
Buñuel, que em Paris era descrito nos seus cartazes como o “cineasta
mais cruel do mundo”, e até mesmo Vittorio de Sica, que muito admirava
Buñuel, perguntou à sua esposa Jeanne, depois de ver o filme no México,
se era verdade que Buñuel era um monstro e se lhe batia. Jeanne
respondeu que até para matar aranhas Buñuel pedia a sua ajuda…
Bénard da Costa, nas suas folhas
da Cinemateca, apelida o filme de obra-prima, e destaca a sua estrutura
onírica, cada vez mais vincada na sua obra, e a importância dada ao tema
da morte e ao simbolismo erótico-religioso da obsessão do tio de
Viridiana (que lhe fazia lembrar a sua noiva, morta na noite de
núpcias). Bénard da Costa conclui a sua resenha crítica com a noção de
que o “essencial é o sonho [da loucura], ou finalmente o regresso à
razão [de Viridiana]”. E Buñuel remata, dizendo: “a minha heroína é mais
virgem no fim [do filme] do que no princípio”.
O filme seguinte de Buñuel, El
Ángel Exterminador, de 1962 (Prémio da Crítica em Cannes), é um
ponto alto na sua carreira, e a obra que aponta de forma mais clara para
os seus filmes seguintes em França, centrados em episódios interligados,
no “nonsense”, no sonho, na imaginação e no inexplicável.
A acção decorre durante um jantar
de cerimónia, numa residência burguesa, da qual os convidados
inexplicavelmente não conseguem sair (apenas os criados o conseguem).
Os seus comportamentos começam gradualmente a reverter para a barbárie,
para a selvajaria, para comportamentos adúlteros e luxuriosos. Também de
forma inexplicável, conseguem finalmente sair de casa, dirigindo-se a
uma igreja para celebrar missa e agradecer o “milagre”. No final desta,
o padre apercebe-se de que não consegue franquear a sacristia…
Este filme-sátira, mirabolante e
ainda muito actual, tem diversos traços surrealistas, que não se
conseguem captar à primeira visão, como a repetição de cenas, conversas
e motivos sem razão aparente, que levaram inclusive o operador-chefe do
filme a abordar Buñuel, julgando que este se estava a enganar, ao
repetir continuamente diálogos na montagem. Buñuel, que ao contrário do
habitual reviu o filme várias vezes, via nele um tema recorrente na sua
obra, um filme sobre “um grupo de pessoas que não podem fazer aquilo que
têm vontade de fazer, sair duma sala. Uma impossibilidade inexplicável
de satisfazerem um desejo”.
O seu único lamento em relação ao
filme, no qual gozou de liberdade total, era não ter sido filmado na
Europa, e da sua auto-censura, mencionando que deveria ter deixado “os
personagens fechados durante uma semana, até chegarem ao canibalismo, à
luta até à morte, para mostrar que a agressividade é, porventura, coisa
inata”. Bénard da Costa sintetiza o filme, dizendo que este é “uma
recapitulação genial de toda a obra de Buñuel, podendo-se estabelecer
nele um inventário de todos os seus filmes (…) através da sua portentosa
galeria de personagens e situações que ecoam sempre outras já vividas.
(…) Interpretar “El Ángel Exterminador” é tarefa impossível. As pistas
são tantas, os despistes também, que qualquer tentativa de racionalizar
o irracional está à partida condenada ao fracasso”.
O último filme de Buñuel no México, Simon del Desierto, de 1965
(vencedor do Prémio Especial do Júri e do Prémio da Crítica no Festival
de Veneza), é uma média-metragem inspirada na vida de São Simão Estilita
(interpretado por Claudio Brook), um eremita do séc. IV que passou mais
de quarenta anos no cimo de um pilar, no deserto da Síria, renunciando a
todos os prazeres terrenos e ao contacto com a família e amigos,
devotando todo o seu tempo à oração. Este filme admirável, que não pôde
ser concluído como Buñuel o pretendia devido a problemas financeiros
(ficando por isso de fora vários episódios que ocorreram na realidade,
como a visita do Papa a Simão), incorpora, além dos factos documentados
da vida de São Simão, outros inventados por Buñuel, como a visita de um
sedutor diabo (na pele de Silvia Pinal, a doce actriz de Viridiana)
e um final brusco e transcendental (que torna verdadeiro o adágio de que
a necessidade aguça o engenho), em que Simão, pensando ter resistido à
tentação do Diabo, se vê de repente numa discoteca moderna, na pele dum
intelectual boémio, observando com uma entediada Silvia Pinal a dança
frenética da juventude, intitulada “carne radioactiva”. Quando Simão se
quer ir embora, o Diabo aconselha-o a ficar por ali, diletantemente, já
que nos tempos modernos não há lugar nenhum a que pertença.
Bénard da Costa considera
Simon del Desierto uma das “obras mais importantes de Buñuel, das
mais fascinantes e perturbadoras. E das que mais explicitamente evoca a
tentação incessantemente suscitada pelo universo religioso, mesmo quando
se possa dizer que esse universo é levado a irrisão”.
Como tal, o filme é um precursor
das obsessões carnais, da importância do sonho e da imaginação que
permearão a sua fase final cinematográfica, maioritariamente rodada em
França, talvez a sua fase mais conhecida e certamente a que teve mais
sucesso comercial e crítico, a que não foi estranha a estreita
colaboração com o argumentista Jean-Claude Carrière, com quem também
escreveu a sua autobiografia.
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A
consagração do cineasta surrealista - “A bela de dia” & “O charme
discreto da burguesia” |
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A fase francesa de Luis Buñuel e a sua prolífica colaboração com o
argumentista Jean-Claude Carrière e o produtor Serge Silberman
iniciou-se em 1964, com Le Journal d’une Femme de Chambre, filme
adaptado do famoso romance de Octave Mirbeau, sobre as experiencias de
Célestine, criada de quarto de uma família burguesa da província, que
depressa adquire os (muitos) vícios dos seus patrões e (poucas das suas)
virtudes. É uma adaptação mais fetichista, metafórica e “rasteira” ao
nível sexual do que a filmada por Jean Renoir em 1946 e, mesmo sendo o
filme menos conseguido desta fase, foi um projecto em que Buñuel
trabalhou muitos anos e onde ainda assim consegue, através dos seus
habituais pormenores e elementos autobiográficos (além das
interpretações de Jeanne Moreau e Michel Piccoli), o ajustar de velhas
contas com a extrema-direita francesa dos anos 30, que tanto o
demonizou. Em 1964 e 1965, Buñuel teve uma breve experiência no mundo da
actuação, que bastante lhe agradou, interpretando um carrasco no filme
LLanto por um Bandido, de Carlos Saura, filmado em Espanha, e de
um padre em En Este Pueblo no Hay Ladrones, de Albert Isaac, a
partir de um argumento de García Márquez, filmado no México.
O seu filme seguinte (depois de gorada a tentativa de filmar o célebre
romance gótico O Monge, de Matthew Lewis, um dos favoritos dos
surrealistas, filmado depois em 1972 com argumento seu e de Jean-Claude
Carriére, por Aldo Kyrou), é porventura o momento mais alto da sua
carreira, o famoso Belle de Jour, de 1967 (vencedor do Leão de
Ouro do Festival de Veneza), a partir do romance de Joseph Kessel. É a
história de Séverine, interpretada pela bela e “glacial” Catherine
Deneuve, uma jovem esposa burguesa casada com um bem sucedido médico
que, no entanto, é frígida. O filme é o retrato da sua transformação
numa prostituta de luxo, profissão que exerce apenas de dia, e as suas
escapadelas para um mundo de prazer, sonho e devassidão, e as
personagens do submundo que encontra, com todas as “nuances” que Buñuel
conseguia pôr nestes estereótipos, entre as quais encontramos de novo
Michel Piccoli, um amigo do marido que a deseja apenas enquanto Séverine
é virginal e inalcançável. Buñuel consegue “descrever bastante fielmente
alguns casos de perversões sexuais (…), mas devo dizer que sinto [por
elas] única e exclusivamente uma atracção teórica e exterior.
Divertem-me e agradam-me, mas não existe nada de perverso no meu
comportamento sexual. O contrário seria surpreendente, acho que um
perverso não gosta de mostrar publicamente que o é, porque se trata do
seu segredo”.
Segundo Bénard da Costa, Buñuel
coloca-nos “na posição e na perversão de Séverine, sempre querendo ver
mais, sempre nos sendo frustrada a visão”. Ainda a propósito da noção de
frustração/desejo na sua obra, Belle de Jour contém uma cena que
pode sintetizar a obra de Buñuel: “de todas as perguntas inúteis que me
fizeram sobre os filmes, uma das mais frequentes, mais obcecantes, diz
respeito à caixinha que um cliente asiático transporta consigo, quando
está no bordel. Ele abre-a, e mostra às raparigas o conteúdo (mas nós
não o vemos). As raparigas afastam-se da caixa, soltando gritos de
horror, excepto Séverine, que se mostra bastante interessada. Já não sei
quantas vezes me perguntaram, especialmente as mulheres: ‘que está
dentro da caixinha?’. Como eu não sei, a única resposta possível é: ‘o
que quiser[em]’”.
La Voie Lactée,
de 1969 (Vencedor do Prémio Interfilm e Menção Honorária dos Críticos do
Festival de Berlim), com Michel Piccoli, Claudio Brook, Georges Marchal
e Delphine Seyrig, é uma série de episódios interligados sobre religião.
Conta a história contemporânea de dois peregrinos a caminho de Santiago
de Compostela, uma viagem que se desdobra no espaço e no tempo, através
da revisitação de alguns dos grandes dogmas e cisões da Cristandade. Os
episódios do filme vão desde as Bodas de Canãa, até à cura falhada de um
cego por Jesus Cristo, e a Virgem Maria a dizer ao seu filho que se
barbeie. Apesar deste tom satírico e iconoclasta, os episódios
históricos do filme são factuais, baseados no “Dictionnaire des
Heresies”, do Abade Pluquet, escrito no séc. XVIII e, mesmo não podendo
ser considerado um filme “herético” e anti-religioso, La Voie Lactée
demonstra claramente a ideia que Buñuel tinha da religião:
“acreditar ou não acreditar é a mesma coisa. Se me provassem agora mesmo
a luminosa existência de Deus, isso não alteraria absolutamente em nada
o meu comportamento”.
A propósito do tema central do
filme, Buñuel afirmou: “interessam-me as heresias, como me interessam
todos os inconformismos do espírito humano, sejam na religião, na
cultura ou na política”. Deste precioso manual de dogmatismos, com um
humor negro ácido mas não intransigente, consta também uma das frases
mais emblemáticas e reveladores do realizador, posta na boca de uma
personagem anónima: “o meu ódio à ciência e o meu horror à tecnologia
ainda me acabarão por levar a essa absurda crença em Deus”.
Em 1969, dá-se ainda um episódio
marcante na sua vida, o falecimento da sua mãe, Maria, a quem foi muito
chegado e que foi quem mais o apoiou nos seus primeiros anos de “lutas”
cinematográficas.
Tristana,
de 1970 (nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro),
subintitulado em português “Amor Perverso”, é outra adaptação de um
romance de Pérez Galdós, situada em Toledo, com Catherine Deneuve e
Fernando Rey nos papéis principais.
Tristana
é a história de uma criança órfã,
recolhida por Don Lope, um libertino em plena decadência sexual e
financeira, que a pretende iniciar nos valores que ele preza (como a
rejeição do casamento e o amor livre). Apesar de Tristana, já adulta, se
tornar relutantemente sua amante, abandona-o para fugir com um jovem
pintor, regressando pouco depois com uma infecção numa perna, que a
obrigará a cortá-la e a substituí-la por uma perna de pau.
Buñuel voltou a ser autorizado a
filmar em Espanha em 1969, depois de lhe ser levantada a proibição que
durava desde Viridiana, e as filmagens correram sem problemas nem
polémicas aquando da estreia do filme, unanimemente considerado pela
crítica e pelo público como uma obra-prima. Curiosamente, Tristana
foi o único filme de Buñuel desde 1956 a ser permitido estrear em
Portugal.
Apesar da ruptura narrativa com
os seus filmes anteriores, esta narração clássica apenas acentua a
qualidade do filme (o argumento foi o único desta fase a não ser escrito
com Jean-Claude Carriére, sendo uma colaboração com Julio Alejandro, de
Viridiana), o “ponto limite da peregrinação de Buñuel em torno de
um arquétipo feminino (…) combinando-o, no limite da explosividade, com
análoga peregrinação em torno dos arquétipos masculinos”. Esta frase de
Bénard da Costa liga intrinsecamente a personagem de Don Lope, o
arquétipo masculino de Buñuel por excelência, no final do filme um velho
“castrado” e de fervor religioso, com a personagem principal masculina
(também interpretada por Fernando Rey) do seu último filme, Cet
Obscur Object du Désir, de 1977.
A propósito do filme, Alfred
Hitchcock, o mestre do fetichismo e da obsessão, grande admirador desta
obra, disse apenas a Buñuel a seguinte frase, aquando do seu encontro em
Hollywood em 1973: “Oh, that leg, that damned cut leg!”.
O sucesso e a consagração de Buñuel em Hollywood (onde tinha sido
incluído na “Lista Negra” devido às suas opções políticas), chegaria com
o filme Le Charme Discret de la Bourgeosie, de 1972 (Óscar para
Melhor Filme Estrangeiro, Bafta da Academia Britânica para Melhor
Argumento, e ainda nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Original e
para o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro). O filme é
protagonizado por vários dos “habitués” de Buñuel, como Michel Piccoli,
Fernando Rey, Delphine Seyrig e ainda por Stéphane Audran (Melhor Actriz
nos Prémios Bafta), e contém muitas semelhanças narrativas e estruturais
com El Ángel Exterminador, sendo de novo uma série de episódios
surrealistas interligados, centrados na alta burguesia e nos seus
costumes, relacionando o sexo com a comida e a violência, através de
sequências mirabo lantes onde os convidados de um jantar se escapam para
a casa de banho para comer com vergonha, enquanto na sala de jantar os
convidados defecam e conversam tranquilamente. Outras cenas de “vintage”
Buñuel, são uma série de sequências em que as personagens caminham
constantemente sem chegar a lado algum, e inúmeros jantares e conversas
sobre iguarias sumptuosas, mas que nunca chegam a ser provadas, e as
cenas de sexo iminente, sempre frustrantemente interrompidas por
terceiros, “o desencanto indiscreto de uma classe que vive para o prazer
e que o frustra constantemente”.
A propósito da Imaginação e do
seu significado para a sua obra, Buñuel refere na sua autobiografia que
“ela é o nosso primeiro privilégio, tão inexplicável como o acaso que a
provoca. Durante toda a minha vida, esforcei-me por aceitar, sem tentar
compreender, as imagens compulsivas que se me apresentavam”.
Le Fantôme de La Liberté,
de 1974, com Michel Piccoli, Michael Lonsdale e Monica Vitti, segue mais
uma vez o esquema dos episódios interligados, aqui com uma maior
conotação com o sonho, e com uma construção fílmica baseada no acaso,
delirantemente mais surrealista à medida que o filme avança. Os
episódios têm uma relação muito ténue, com o ideal de descrever relações
fugazes entre personagens que se podiam repetir ad infinitum,
começando em Toledo com as invasões napoleónicas de Espanha, e
continuando com personagens contemporâneas de criados, médicos,
assassinos-poetas, comissários da polícia, engraxadores, frades, etc, um
caleidoscópio de ideias, imagens e relações surrealistas que não foi
muito bem recebida pela crítica (incluindo Bénard da Costa), que
levianamente apodou o filme de “surrealismo by the numbers”.
A propósito do Sonho e da
importância do sonhar para a sua obra, Buñuel menciona que “este amor
louco pelo sonho, pelo prazer de sonhar, totalmente despojado de
qualquer tentativa de explicação, é um dos gostos profundos que me
fizeram aproximar do surrealismo”. E em relação às tentativas de
explicação dos seus filmes (e supomos que também em relação aos seus
críticos), Buñuel é mordaz: “não gosto da Psicologia, da Análise nem da
Psicanálise. Assim como a Psicologia me parece uma disciplina
arbitrária, constantemente desmentida pelo comportamento humano (…), a
Psicanálise surge[-me] como uma terapêutica reservada a uma classe
social, a uma categoria de indivíduos a que não pertenço”.
Buñuel considerava também este
(mal-amado) filme parte de um tríptico/trilogia iniciado com La Voie
Lactée e Le Charme Discret da la Bourgeosie, filmes que
“falam da procura da verdade, e que é preciso fugir quando acreditamos
tê-la encontrado. Falam também do ritual social implacável e (…) da
procura indispensável do acaso, da moral pessoal, do mistério que é
preciso respeitar”.
O último filme de uma carreira de quase meio século, Cet Obscur
Object du Désir, de 1977 (nomeado para o Óscar de Melhor Filme
Estrangeiro e Melhor Argumento Original, e para o Globo de Ouro de
Melhor Filme Estrangeiro), é baseado num romance de Pierre Louys já
várias vezes levado ao grande ecrã (filmado por exemplo em 1935, com o
título de The Devil is a Woman, de Josef Von Sternberg e com
Marlene Dietrich). O seu início é “puro” Buñuel: Mathieu, um rico e
velho burguês de Sevilha (interpretado por Fernando Rey), entra para a
carruagem de um comboio, depois de ter uma discussão com Conchita, a sua
amante. Inesperadamente, quando o comboio está a partir, Conchita
aparece na plataforma e Mathieu atira-lhe então com um balde de água à
cara, para estupefacção dos outros passageiros. O filme procede depois
como um longo “flashback”, contado aos seus companheiros de carruagem,
que ficam dessa forma a saber a história de Conchita, a sua antiga
empregada, agora bailarina que, no início da relação de ambos, se
conseguiu sempre furtar aos seus avanços, afirmando-se enganadoramente
como virgem, e os desenvolvimentos desse turbulento relacionamento.
Este magnifico rematar de
carreira possui um episódio deliciosamente "Buñueliano", que o mesmo
descreve na sua autobiografia: “em Madrid, na altura em que já
desesperava [devido a um desentendimento com Maria Schneider, a actriz
que deveria fazer o papel de Conchita], não sabendo se havia ou não de
continuar a rodagem (…) o produtor tomou a decisão de parar com as
filmagens (…) e fomos os dois para um bar, bastante abatidos. De
repente (…) surgiu-me a ideia de arranjar duas actrizes para
desempenharem um só papel, coisa que nunca tinha sido feita até então.
Serge [Silberman] delirou com a ideia, que lhe apresentei como um
capricho, e o filme foi salvo graças a um bar”.
A escolha recaiu na bela e “fria” actriz francesa Carole Bouquet, e na
quente e sensual Angela Molina, sua conterrânea, actrizes muito
diferentes mas que viriam a “confundir” muitos espectadores, entre os
quais Bénard da Costa: “ao contrário dos receios de Buñuel (“vão pensar
que são duas personagens diferentes”), toda a gente aceitou e muitos até
viram o filme sem perceber que a actriz não era a mesma. Foi o meu caso
e foi uma das minhas grandes humilhações críticas. Quando vi o filme
pela primeira vez, não reparei na diferença e só cá fora, quando gabei a
intérprete, a minha companheira de visão me fez observar (…) que não
havia intérprete, mas intérpretes”.
A este fenómeno, original e
tremendamente surrealista, Buñuel apenas contrapôs o seguinte: “é para
que vejam como o cinema é uma espécie de hipnotismo”.
Depois do filme, rodado aos 77
anos, no ano do falecimento da sua irmã mais velha, Alicia (o seu irmão
mais velho, Leonardo, faleceria em 1980), Buñuel retira-se para a Cidade
do México, onde escreverá, nos últimos anos de vida, um derradeiro
argumento, levado ao cinema em 1998 por Antonio Simón, La Novia de
Medianoche. Com graves problemas de visão e de audição, mas com o
seu espírito de lutador e de rebelde ainda muito presente, escreve em
colaboração com Jean-Claude Carriére a sua brilhante autobiografia,
Mon Dernier Soupir, lançada em 1982 (ano em que recebeu o Leão de
Ouro da Carreira do Festival de Veneza).
Luis Buñuel faleceria a 26 de
Julho de 1983, por insuficiência renal e cardíaca, no Hospital Inglês da
Cidade do México.
O legado da sua obra é o de ainda
hoje ser considerado um dos cineastas mais importantes da história do
cinema, e uma influência importante para a geração de cineastas
espanhóis (ou de língua espanhola) que se lhe seguiram, como Carlos
Saura, seu discípulo, Fernando Trueba, Victor Erice, Arturo Ripstein,
Alex de la Iglésia, entre outros, e também uma influência decisiva para
muitos realizadores consagrados do cinema mundial, como David Lynch,
Peter Greenaway, Terry Gilliam, Emir Kusturica e Nicholas Roeg, além das
suas influências se notarem hoje em dia em muitos nomes emergentes no
mundo do cinema, como Michel Gondry, Darren Aronofsky, David Fincher,
Wes Anderson e Spike Jonze, que não só vão buscar a Buñuel o estilo
fílmico e o delírio da imaginação, mas também a ideia de que os costumes
e os hábitos estão intrinsecamente ligados com as convenções, numa
cadeia de relações por vezes absurda com os mais secretos desejos e
obsessões do indivíduo comum, uma relação “blasfema” entre amor e sexo,
entre religião e perversão.
Buñuel, desafiador até ao seu “último suspiro”, termina a sua
autobiografia com palavras coerentes e serenas, num extenso capítulo
intitulado “O Canto do Cisne”: “há muito tempo que o pensamento da morte
me é familiar (…), nunca quis ignorá-la, negá-la. Mas não há grande
coisa a dizer da morte, quando se é ateu como eu. É preciso morrer com o
mistério. Algumas vezes digo para mim próprio que gostaria de saber, mas
saber o quê? Não se sabe nem durante, nem depois. Depois do Tudo, o
Nada”.
Mas num último assombro de
irreverência, acrescenta: “imagino bastantes vezes uma última partida.
Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu.
Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um
padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos,
confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a
extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro”.
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Gaspar Garção (1974) - Portalegre,
Portugal.
É actualmente o Relações Públicas do Centro de Artes de Portalegre,
sendo igualmente tradutor e editor da sua Agenda Cultural. Colaborador e
Editor da revista cultural Pormenores e membro do Cineclube da Escola
Superior de Portalegre, onde estuda no curso de Jornalismo e
Comunicação. Tem também colaborado no TriploV e Agulha Hispânica. Possui
o curso Técnico de Biblioteca e Documentação, trabalhou em várias
livrarias e na Biblioteca Municipal de Portalegre e estudou na
Universidade de Coimbra, no curso de Línguas e Literaturas Modernas,
Variante de Estudos Portugueses e Ingleses. Foi colaborador do Cineclube
de Guimarães, do Centro de Estudos Cinematográficos da Universidade de
Coimbra e da Associação Cultural Prometeu, onde programou festivais de
cinema mudo e música ao vivo, tendo ainda vasta experiência em programas
culturais radiofónicos, além de larga participação no associativismo
como Director Desportivo em vários clubes de futebol. Conta vários
trabalhos publicados sobre cinema, nomeadamente science-fiction.
Contacto:
ggarcao@hotmail.com |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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