|
|
|
REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
|
|
|
|
FLORIANO MARTINS
Ruínas exaustas
|
|
|
|
|
EDITOR |
TRIPLOV |
|
ISSN 2182-147X |
|
Dir. Maria Estela Guedes |
|
Página Principal |
|
Índice de Autores |
|
Série Anterior |
|
SÍTIOS ALIADOS |
|
TriploII - Blog do TriploV |
|
Agulha Hispânica |
|
O Bule |
|
Jornal de Poesia |
|
Domador de Sonhos |
|
O Contrário do Tempo |
|
|
|
|
|
1. |
|
Dores de memória confundindo o vazio.
Rostos queimando enquanto te esforças para lhes
recordar os nomes:
Lucíola
Anete
Eugenia
Aspectos deformados de furtivos deleites,
tardes entregues aos lábios da pálida Eugenia,
dorso entrecortado de beijos,
Anete cantarolava enquanto um pezinho me percorria
toda,
aos pulos a alegria acendia os olhos de Lucíola ao
caminharmos pelo bosque,
limite fortuito do amor,
por terra caem as folhas da mais esplêndida
primavera.
Jamais compreendemos o alcance do mundo visível.
Um dia a língua de Lucíola despojada em minhas coxas
e depois sabê-la espancada até a morte pelo irmão.
O triunfo da realidade será sempre mórbido?
Toques abrasados das mãos de Eugenia extraviando-se
em mim:
não é o fim, meu anjo, bem aqui onde suspiras, não é
o fim,
dizia-me com olhar travesso,
tardes inúmeras com Anete em uma banheira de hotel,
enlace de entregas,
sagrado beijo pubiano,
amava-me com tal exasperação a cada orgasmo
renascendo mais do que qualquer uma de nós.
O marido lhe pôs o cano da arma na boca várias vezes.
Sem coragem para o disparo se punha a chorar a
pedir-lhe perdão por ser tão ciumento.
Anete e Eugenia estiveram juntas comigo uma vez só:
três crianças esquivando-se do mundo em uma tarde de
gangorras,
vivíamos uma fantasia primitiva,
os corpos de Eugenia e Anete foram encontrados nus e
amarrados um ao outro,
único disparo em cada fronte:
Eu estava certo que ela me traía com outro homem
-
foi tudo o que disse aquele homem que me privou de
dois amores de uma só vez.
Não adianta indagar-se sobre as formas do fogo.
Nada nos custa tanto quanto o instante,
mas em nada se explica ou requer consonância.
Talismãs e ruínas são imagens distorcidas de uma
enfermidade do espírito:
o que desejamos acaba se convertendo no que perdemos. |
|
|
|
2. |
|
Tinha-me em seus braços na escuridão insinuante de um
quarto de hotel às duas da tarde,
eu lhe pedia socorro entre almofadas e lençóis,
nossos corpos mordendo-se de desejo.
Agarrava-lhe os cabelos com desespero ao sentir a
língua mergulhando em mim.
Rasteava-me -
por aqui passaram feitiços divindades simulacros
tua carne é um fósforo
nela encontro fiadas as imagens de um renascimento
-,
Eugenia não via em meu corpo nada de apócrifo,
lia em seus liames secretos a veemência com que
estive com homens,
o mito extraviado desse amor comum:
põe a língua bem aqui é tudo o que desejo…
Chamava-me heroína,
um risco duplo de saber a qual obscuridade se
pertence,
atenta que o acaso não vem em nosso auxílio.
Mesmo alguém que não seja privado de nenhum sentido
deve saber a quem sacrifica:
uma mulher me espia pelas fendas mais secretas de
meu desejo torna minha pele um pergaminho repleto de passagens secretas
momentos cifrados talhados por estímulos que vão além da alucinação
línguas como plumas que me descerram a cortina de um teatro de
sacrifícios as súplicas por feridas mortais hábeis interjeições lamentos
infalíveis uma multidão de línguas tocando o revés de qualquer
sofreguidão
ah minha putinha…
Eu disse a ela que nada acabava ali,
mas nunca soube o quanto essa paródia se insinuava em
nossa vida,
nem sei se tivemos uma vida.
A memória recolhe momentos marcados por todo tipo de
ilusão.
Eugenia me dizia que eu era uma suspirosa,
presa a leituras extravagantes do mundo,
uma mulher fascinada pelos caminhos entrecortados
subterfúgios enigmas.
Não tenho como lhe dizer agora que estava certa, tão
esquiva que sempre fui,
tão-somente morta não me escutaria. |
|
|
|
3. |
|
Lia meu corpo confundindo-lhe as estações,
acertava caminhos sem vestígio algum,
atava-me e pedia licença para um beijo na fronte.
A todos os seus caprichos tornava-me compassível,
astuta e bela com uma língua a desenterrar-me
recônditos desmaios,
em meu corpo concebia todas as táticas persuasivas do
desejo,
tornava-me seu projeto inesgotável de luxúria:
o que sentes quando te toco bem aqui?
A voz de Lucíola vinha coberta de viagens,
tesouro acumulado no estampido de abismos,
voz de enigmas que duelam entre si.
Encontrar-lhe o corpo recusando o cativeiro da morte
despedaçou-me toda:
o irmão lhe havia batido tanto,
eu quase podia ainda ouvi-la:
prova em meus dedos o sabor de tua ventura,
Lucíola escapando-me por entre frestas da inquietude.
Sabia fazê-lo,
preparar uma ceia de desvarios.
O corpo agora sem dissuadir-se da tragédia.
Tão quieta, impossível ser a mesma:
jamais quero ver a vida por uma última vez.
Lavo-me o rosto reconheço a idade de algumas rugas
no espelho tenho andado a tomar vitaminas sinto-me cansada de mim…
Há rotina demais no mundo,
postos de justificação para tudo. |
|
|
|
4.
|
|
Alcançar a penumbra que o leva
até sua casa,
sombras mudas molestadas pela
noite furtiva,
noite que não busca senão
ausentar-se de si.
Um corpo ou outro a testemunhar
apenas dor,
inflexível queda desfalecida na
farsa do sudário.
Levamos conosco todos os corpos
anunciados.
acompanho-me até o que pretendo
venturoso:
acaso não andará Deus por toda a
casa a tecer
uma malha de dilemas, excursão
de angústias,
olhos plantados nas dobras
insuspeitas do ser?
Quais vítimas ou mensageiros
darão pela arte
o que ela presume ser a essência
dessa vida?
Olhares desfigurados, sigilos de
rara habilidade,
que estamos prevendo senão o que
já vivemos? |
|
|
|
5. |
|
Não sei o que diabos pode ter havido comigo,
talvez esteja apenas cansada de tanta perda,
vigiar a fadiga por vezes desorienta.
Os bastidores da agonia gozam de prestígios bem pouco
originais.
Os amores que fui perdendo não me ensinaram nada.
Suplicantes generosas, não pude dar a elas muito de
mim.
Não me foi fácil vir a ser a mulher que desejavam.
Necessitaria uma escolta de deuses para manter-me a
mesma.
Mas haveria algum deles libertino interessado em meu
ofício de indecisões? |
|
|
|
6. |
|
Corpos transfigurados dissolvendo-se na própria dor,
visões abandonadas simulando um rumo distinto,
toda espécie de requintado divórcio entre ser &
coisa,
imagens desvalidas,
braços púbis calcanhares,
o relógio da dor molestando o enigma rebentado dos
corpos,
fragmentos casuais de Anete Lucíola Eugenia,
porções de terra divisadas no manancial da neblina…
Agarro-me a tais fatias como quem se entrega a um
refúgio,
mas desprendem-se do nada,
são a complexão ilusória do vazio.
Vejo-me então com esse espólio espatifado de meus
amores,
omoplatas carcomidas polegares coxas,
imagens destinadas à persuasão da agonia.
Rezo para que sejam alucinações.
Não são.
Precipitam-se como peixes importunos que extraem do
mar toda sorte de profanações.
Não vejo mais nenhuma delas.
Apenas a feitiçaria desafiante dos bagaços de seus
corpos.
A memória não pode ser a casa de ninguém.
Recolho alguns desses despojos:
mamilos devotos frontes perfuradas pulsos
silenciosos,
são pistas de meu tormento,
guardam em si não o segredo do que vivi mas antes os
vislumbres de um porvir sentenciado:
a memória lapida os pormenores da conseqüência,
prepara cadáveres para as honras mortuárias.
Sinto-me uma vítima de seu inesgotável capricho. |
|
|
|
7. |
|
Um dia amei Eugenia amei Lucíola amei Anete.
O curso de uma vida secreta não teme senão o
malefício do preconceito.
Somos todos devotos da normalidade,
uma sala de ruínas que guardamos como o bem mais
precioso da espécie humana,
a plenitude sob custódia,
incorruptíveis os ofícios que orientam essa vigília,
pendentes as máscaras judiciosas quando acorremos à
fidelidade do conceito.
Apenas a dor anima o homem,
a dor transfigurada na impostura da desforra,
qualquer que seja a condenação que celebre.
Na dissertação desse ofício haverá sempre um
responsável pela minha dor.
Jamais serei eu mesma a culpada.
As mulheres que amei foram mortas por estarem
com outra mulher.
Ninguém suporta a idéia de ser preterido pelo mesmo
sexo.
Novos ofícios ambientados no jogo caseiro de ventura
e desventura.
As três foram violentamente assassinadas:
Lucíola Eugenia Anete.
Devo agradecer que me tenham deixado viva? |
|
|
|
|
|
Floriano Martins (Fortaleza, 1957,
Brasil). Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige, juntamente com
Márcio Simões, a Agulha Revista de Cultura. Criou e coordena o Projeto
Editorial Banda Hispânica. Dirige, juntamente com Soares Feitosa o
Projeto Editorial Banda Lusófona. Coordenou (2004-2010) a coleção "Ponte
Velha" de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo).
Atualmente coordena a coleção "O Começo da Busca" das Edições
Nephelibata (Santa Catarina). Organizou algumas mostras especiais
dedicadas à literatura brasileira para revistas em países
hispano-americanos: "Narradores y poetas de Brasil" (Blanco Móvil,
México, 1998), "La poesía brasileña bajo el espejo de la
contemporaneidad" (Alforja, México, 2001) e "Poesía brasileña" (Poesía,
Venezuela, 2006). Também organizou a mostra "Poesia peruana no século XX"
(Poesia Sempre, Brasil, 2008), ao mesmo tempo em que foi co-responsável
pelas edições especiais "Poetas y narradores portugueses" (Blanco Móvil,
México, 2003), "Surrealismo" (Atalaia Intermundos, Lisboa, 2003) e
"Poetas y prosadores venezolanos" (Blanco Móvil, México, 2006). Esteve
presente em festivais de poesia realizados em países como Chile,
Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador,
Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Peru, Portugal e Venezuela. Trabalha
ainda com fotografia, colagem e design, tendo realizado exposições e
capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará
(Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba,
2009) e do Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010). Professor
convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010).
Tradutor de livros de Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante,
Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Eduardo Langagne e Pablo Antonio Cuadra.
Autor de livros como O começo da busca. O surrealismo na poesia da
América Latina (ensaio/antologia, Brasil, 2001), Tres estudios para un
amor loco (poesia, México, 2006), Duas mentiras (poesia, Brasil, 2008),
Teatro imposible (poesia, Venezuela, 2008), Sobras de Deus (narrativa,
Brasil, 2008), Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la
Poesía de nuestra América (ensaio/antologia, Venezuela, 2008), A
inocência de Pensar (ensaio, Brasil, 2009), Fuego en las cartas (poesia,
Espanha, 2009), Autobiografia de um truque (prosa poética, Brasil,
2010), Delante del fuego (poesía, México, 2010), e Escritura
conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica (2 tomos,
entrevistas, Venezuela, 2010). |
|
|
|
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
|
|
|
|
|
|