REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 19-20

 
 
 

DORA GAGO

 

Confissões de um poeta

 

 

                                                                  

“Meu sacana de versos! Meu vadio.
Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sarjeta. É um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.”

Ary dos Santos, Obra Poética

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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“O céu de opacas nuvens abafado”… parece já de Outono esta manhã de 15 de Setembro, quando “Apenas vi do dia a luz brilhante / Lá de Túbal no empório celebrado, / Em sanguíneo carácter foi marcado /Pelos Destinos meu primeiro instante”[1]. Em 2010 completo  245  anos. Uma eternidade, direis vós, leitores incautos, que, provavelmente já mal meus versos (re)conheceis.

A verdade é que depois de “À cova escura/ Meus estro (ter ido) parar desfeito em vento….” Ainda Bocage sou! Continuo a viver, habitando um reino além da vida, marchetado pelas cores e odores da eternidade, um mundo de espírito, de palavras  e versos feito.

Escrevo-vos de um tempo além de todos os tempos, de um lugar além de todos os lugares conhecidos e desconhecidos, onde a eternidade e o momento, o passado, o presente se fundem. Existo, pois, no limiar do não ser, num local onde posso, simultaneamente, reviver o meu passado ou conhecer o presente e o futuro, acompanhando tudo o que se passa no meu «triste país», através de um grandioso telescópio, transmissor não apenas de imagens, mas também de sons, como se estivesse no cinema a assistir a um filme infinito… Imagine-se, “cinema”, disse eu, como se na época em que habitei a terra tal coisa fosse previsível!

Hoje, como já referi, celebra-se o dia em que nasci para o mundo. E não é o nascimento um prenúncio de morte? Não é o ser uma porta aberta para o «não-ser»?  Sim, continuo o mesmo Manuel Maria da fase final, arrependido, de outro Aretino haver sido, pessimista e angustiado, cada vez com menos esperança… parece que essa «ave verde» a anunciar um futuro melhor, a fazer acreditar num tempo feliz continua sem me visitar, há muita coisa que nem o túmulo apaga.

Aliás, o meu infortúnio e o desvairamento principiaram com o trágico falecimento de minha mãe, D. Mariana Joaquina Lestoff du Bocage, na tenra infância, quando eu contava apenas dez anos (“Aos dois lustros a morte devorante/ Me roubou, terna mãe, teu doce agardo;”[2]). Por isso, despojado do território dos afectos, dediquei-me ao das ferinas lutas e, aos catorze anos, em 1780, já era cadete, tendo entrado dois anos depois na armada real. Por outras palavras, “segui Marte depois, e enfim meu fado,/ Dos irmãos e do pai me pôs distante”[3].

Embarquei na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena” como oficial de marinha, para a Índia a catorze de Abril de 1786, “vagando a curva terra, o mar profundo, / longe da pátria, longe da ventura,”[4]. Em finais de Junho cheguei ao novo que era na altura o Rio de Janeiro. Que deslumbramento, meu Deus! Ao aportarmos, era a Baía de Guanabara, aquela magnífica pérola flutuante, que nos inebriava os sentidos. Tudo era belo, cálido e doce.

Naquela terra parecia florescer o futuro, despontando na esquina de cada rua. Eram belíssimas as mulheres e bem mais livres e disponíveis do que as portuguesas. Ali sim, eu poderia ter vivido em pleno o amor da minha vida e ter quebrado o ciclo de traições e ingratidões que tanto havia enegrecido o meu coração. A verdade é que me apaixonei fulminantemente por aquela cidade e nela teria permanecido até ao fim dos meus dias. Ali, sim, eu seria feliz! Talvez não tivesse lançado a semente do Romantismo na Literatura Portuguesa, mas que importava? Mais valeriam uns bons anos de felicidade do que uma eternidade de infortúnio – pelo menos foi o que pensei…

No Rio, habitei a actual Rua Teófilo Otono e esforcei-me seriamente para que o vice-rei me autorizasse a viver para sempre naquela cidade. Então usei a minha mais preciosa e secreta arma: a poesia. Dediquei-lhe versos magistrais, impregnados de elogios. Contudo, não passava de um bruto insensível aquele monarca! Como foi possível, que depois daquelas magníficas poesias-canções por mim dedicadas, me forçasse a prosseguir a viagem para as Índias? Minhas faces de lágrimas inundei ao lançar amarras, vendo distanciar-se aquele maravilhoso paraíso! Que angústia, meu Deus, ao evocar esses momentos em que me afastava do “Cruzeiro do Sul”, para que outras constelações aziagas marcassem o meu destino, ainda sinto a alma quebrada, como um vaso de porcelana, atirado violentamente ao chão.

Lá segui, cruzando os mares, sob o signo do infortúnio. Fiz escala na Ilha de Moçambique, no início de Setembro, e desembarquei na Índia, a 28 de Outubro de 1786.

Que posso dizer da minha viagem e estadia em Goa? Enfim, creio que disse o mais importante na epístola de “Elamano a Gertrúria”, na qual gravei a minha profunda angústia, habitado o meu ser por todos os Adamastores reais e imaginados, confessando-me “sempre no mais cruel desassossego/Sempre comigo mesmo em viva guerra”[5]. Foi essencialmente a ideia de decadência do Império português na Ásia, que me marcou e que transmiti, por exemplo, no soneto XXIII: «Por terra jaz o empório do Oriente/ Que do rígido Afonso, o ferro, o raio/ Ao grão-filho ganhou do grão-sabaio,/ Envergonhando o deus omnipotente/ [...] Caiu Goa, terror antigamente [...]»[6].

Na realidade, não me adaptei àquele estranho e enigmático mundo, onde o exotismo chocava contra os meus próprios padrões religiosos e culturais. Aquela era a terra do “culto impuro”, de um povo escuro entregue a cinzentas e vis cerimónias, onde pairava um odor a incenso maldito e satânico. Também o clima era penoso para a minha débil saúde, aumentando a profunda desilusão. Apesar disso, durante os vinte e oito meses que residi em Goa, destaquei-me militarmente, mediante a minha participação na repressão da “Conspiração dos Pintos”. Devido a tal feito, promoveram-me ao posto de tenente da Infantaria e colocaram-me na Praça do Damão. Parecia que um futuro aúreo me aguardava no ofício de Marte. Mas, caramba, eu obedecia a Apolo e às Musas! Marte fora apenas um acidente da minha existência. Não era aquela a “barca que eu catava”, como diria uma das personagens de Gil Vicente….Por isso, dois dias após a minha promoção e chegada a Damão, ocorrida na primeira semana de Abril de 1789, limitei-me a desaparecer. Assim antes de desertar, rumo à China e a seguir para Macau, escrevi um soneto, onde me revejo no destino maldito do meu mestre Camões, pois como ele, “junto ao Ganges sussurrante, na penúria cruel no horror” me achei.

Após tantas aventuras e desventuras, eis-me de regresso à pátria madrasta, pela qual tanto ansiei, derramando lágrimas de fel. Fui preso pela inquisição, e na cadeia traduzi poetas franceses e latinos.

A década seguinte foi a da minha maior produção literária e também o período de maior boémia e vida de aventuras. Saia sempre do Nicola ao raiar da manhã. Aliás, era esse o meu único e efémero contacto com a luz do sol, pois era a “noite amiga” o meu tempo de existência, a confidente, em cuja escuridão germinavam meus versos, meus amores e desamores.

Daí nasceram múltiplas anedotas, e foi a minha fama de ébrio dissoluto, satírico, repentista, com inclinações para a poesia erótica, aquela que permaneceu na boca do povo e, de certo modo, ainda por aí parece pairar…

Ainda em 1790 fui convidado e aderi à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adoptei o pseudónimo Elmano Sadino. Mas que desilusão aqueles árcades! Tão limitados nas suas regras, enclausurados na retórica oca. Gente que nunca vivera, nem amara, nem sofrera! Meros fantoches engomados nas suas abjectas mangas de alpaca. Como se poderá ser poeta assim? Eu, Elmano Sadino, honrado e inspirado servo das Musas jamais cederia à mediocridade, ao palacianismo, ao convencionalismo formal daquela gente! Por isso, dediquei diversos sonetos a esses “Franças, Semedos ou Quintanilhas/ Macedos e outras pestes condenadas”[7], a quem me dirigi do seguinte modo: “Vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas/ Do baixo vulgo insossas gargalhadas,/ Por versos maus, por trovas aleijadas, /De que engenhais as vossas maravilhas”.[8] Enfim, uma coisa tenho de admitir, estes meus confrades árcades foram inspiradores de algumas das minhas mais ferozes sátiras.

Expulso da Nova Arcádia, o meu talento triunfou, apesar de tudo e contra todos. Em 1791, foi publicada a 1.ª edição das “Rimas”.

Na época, Lisboa era dominada pelo Intendente da Polícia Pina Manique que decidiu pôr ordem na cidade, tendo ordenado a minha prisão a 10 de Agosto de 1797, acusando-me de ser “desordenado nos costumes”! Na verdade a causa de tal injustiça foi o meu poema “Pavorosa ilusão da realidade”, dedicado à minha Marília, mulher e musa amada que tantos versos habitou e gerou na minha alma! Nessa composição, eu, o amante da liberdade, descrevo e denuncio o estado da Nação, referindo o “sistema da política opressora,/ Freio que a mão dos déspotas, dos bonzos,/ Forjou para boçal credulidade.”[9]

E agora, permitam-me a divagação, quase dois séculos e meio depois, qual é o estado da nossa pátria?

Durante o último mês tenho observado tudo atentamente, auscultando o meu país de lés-a-lés: em Agosto, as filas de trânsito rumo ao sol do Sul, às praias e diversões do Algarve (por vezes, deixando, inclusive, o animalzinho de estimação abandonado, literalmente nas ruas da amargura); o culto das aparências, das pequenas grandes invejas, da mediocridade (que já era peculiar nos árcades), a valorização do «ter» em detrimento do «ser», o completo esquecimento de que afinal «o essencial é invisível aos olhos» (como dizia o «Principezinho» do Exupéry), o famigerado «instinto de rebanho», que converte cada vez mais as pessoas numa massa amorfa sem espírito crítico, criaturas ambulantes e não pensantes. Enfim, para além disso, alguns assaltos que enfeitarão as páginas dos jornais, acidentes de viação motivados pela falta de civismo e pelo desrespeito pelo «outro», um ou outro escândalo das «marionetas» da alta sociedade; alguns fenómenos de poluição e de desprezo pela magnífica natureza que nos rodeia e que vão conduzindo a uma lenta destruição, plasmada de agonias, aliadas à subida constante do desemprego.

De resto, continua a desvalorizar-se o essencial (esse mesmo, o que é «invisível»), como é o caso da Educação, da Saúde, da Formação, da Arte e da Cultura em geral, investindo-se cada vez mais em estruturas de betão, obras megalómanas (que às vezes lembram a edificação do convento que Saramago tão bem desenvolveu no seu “Memorial”), adaptadas, claro, aos vossos dias, pois já não viveis em tempo de palácios, nem de conventos, mas sim de aeroportos…é que as lições da História continuam a ser ignoradas, esquecidas.

Como podeis constatar, continuo muito bem informado, o meu interesse pela vida portuguesa aumentou, inclusive, desde que “à cova escura meu estro foi parar desfeito em vento”. É como se essa «nesga de terra debruada de mar» (como lhe chamou Torga) e esse povo triste de «suicidas» (como referiu Unamuno) fossem parte integrante da minha alma sofrida – aliás, o sofrimento sempre foi o meu companheiro de todas as horas.

    Enfim, é o «medo de existir» (de que falou recentemente o filósofo José Gil) que padeceis como nação – ou melhor, talvez, como país adiado e cada vez mais degradado. No entanto, estas inquietações já não me dizem respeito, este não é o meu espaço nem o meu tempo.

Por isso, é ao passado que regresso, à minha história. Fiquei preso no Limoeiro até 14 de Novembro de 1797, tendo depois dado entrada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Aí permaneci até 17 de Fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe Neri, após uma efémera passagem pelo Convento dos Beneditinos.

Que vos poderei dizer deste longo e doloroso período da minha vida? Estranhamente, foi a época da redenção e do profundo encontro com o âmago do meu ser, onde o arrependimento emergiu com a força e a pujança de um ciclone. Finalmente sóbrio e afastado das aventuras, mudei o meu comportamento e principiei a trabalhar seriamente como redactor e tradutor. Só sai em liberdade no último dia de 1798. A partir daí, ao aperceber-me que havia evaporado meu ser na lida insana, confessei: “Prazeres, sócios meus e meus tiranos! / Esta alma, que sedenta em si não coube, / No abismo vos sumiu dos desengano”[10], desejei ganhar “um momento o que perderam anos, / e que soubesse “morrer o que viver não soube”.

Em suma, foi laboriosa a última fase da minha existência, passada numa casa arrendada no bairro Alto, onde um implacável aneurisma me surpreendeu a 21 de Dezembro de 1805, com apenas quarenta anos.

Por isso, hoje, data do meu aniversário, vou passar o resto do dia a contemplar a minha cidade de Setúbal (que me honra com o seu feriado municipal), o meu Tejo e a sonhar com a vida que nunca tive, inscrevendo em cada vaga de espuma uma esperança que não vivi, mas que vos caberá a vós viver, rumo a um novo amanhecer.

 

 

[1] Bocage, Sonetos, in Poesias Bocage, Lisboa, ed. Círculo de Leitores, 1973.

[2] Idem

[3] Idem

[4] Idem

[5] Idem

[6] Idem

[7] Idem, p. 162.

[8] Idem, ibidem.

[9] Idem, p. 148.

[10] Idem, p. 98.

 

 

 

 

Dora Nunes Gago (Portugal)
Nascida  a 20/6/1972 em S. Brás de Alportel, é Professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008.
Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações sobre as “imagens do estrangeiro na Literatura Portuguesa” em Congressos Internacionais.
Contacto:
doragago@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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