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Julgo que o mal é
generalizado… Portugal, apesar de o regime se declarar e se constituir
juridicamente na base da democracia representativa sufragada pelo
interesse colectivo geral, nunca foi tão corporativo como o é de facto:
umas vezes por via de corporações assumidas (classes sócio-profissionais,
mesmo que sob o manto sindical), outras num misto de cruzamentos
“lobísticos” (de lóbis ou lobos, decidam os leitores o significado deste
neologismo) comandado do interior sector a sector, e em nome da dita
“classe” (corporação) organizado no “saque” do erário público que resta,
com a locupletação dos “chefes” e as migalhas para quem lhes preste
vassalagem.
No caso do teatro, digo
com a mais absoluta independência (“paga” com uma solidão quase total),
o que se me apresenta como mais gritante é que só a gritaria “una” as
gentes do ofício, quando lhes mexem no “dinheirinho” duns, no
“dinheirão” doutros. A ausência de reflexão e preocupação com outros
múltiplos aspectos deste sector é, por si, chocante. Mas, para mim, do
mais chocante é o esquecimento do papel social do teatro em direcção à
comunidade, preterido por um culto narcísico doentio. A coisa é tão
aberrante que, num encontro em Almada, não vai muito tempo, após
riquíssimas comunicações de Barata Moura e Rui Vieira Nery, ouvi a
lapidar idiotice quando, da plateia, um artista declarou que lhe
“era completamente indiferente que houvesse um único ou mesmo nenhum
espectador”!
Não será – já o disse,
mas repiso-o – que com posições destas (afirmadas e, pior, praticadas)
que se abre o caminho para um “corte cego” da parte do
ultra-neo-liberalismo no apoio à produção artística? Com aplauso
esmagador da gente comum, porque, de facto, pensamentos e práticas assim
não “justificam” o uso de dinheiros públicos. Se o justificassem, eu,
por exemplo, como criador de flores no meu jardim, também teria direito
a um subsídio, o que é absurdo.
Essa maneira de estar,
mesmo que “muito de esquerda reclamada”, vai ao arrepio do que a própria
Constituição consagra (e porque o consagra) do e no papel do Estado face
à cultura: a sua fruição democratizante, mas não massificadora, que é a
leitura contrária de uma visão mercantilista da arte e da cultura como
“produto industrial” de “consumo”, logo sujeito às “leis do mercado”.
Irónico é resultarem ambas iguais, porque demissionárias do carácter
educativo e formativo do cidadão fruidor: em cultura não se trata de
“consumidores”; tal como não se trata de satisfação egoísta do criador.
Ou a criação visa a fruição para o alargamento de massa crítica (ou,
como sua extensão e por excepção de casos, a pesquisa séria) ou que se
auto-sustentem, de facto os que falam para dentro. Alguém aceitaria que
o dinheiro do sector da saúde servisse para abrir “cliniquetas” num
aterro onde só iam os amigos do director clínico mudar de penso rápido,
ainda que se dando ares de complexa intervenção cirúrgica?
Por isso, idealizar uma
“classe” ou “sector” teatral unido, com práticas antagónicas, é uma
impossibilidade, como a “Carta del Lavóro” de Mussolini, logo
transformada em “carta straccia” da demagogia. O teatro, como
emanação da própria sociedade há-de reflectir o “ponto de vista” de onde
parte e onde se encaixa. Garantida a diversidade estética (como parte
intrínseca da própria liberdade de expressão), ao Estado cabe zelar pelo
interesse geral e não por interesses particulares: nas artes cénicas,
porque efémeras, o público é elemento constitutivo da sua própria
existência enquanto objecto artístico. As plateias vazias (e a demissão
do esforço para as encher) representam absoluto desprezo pelo “PIB”
cultural em défice, maior que o económico e parte (repercussiva) da
razão deste último. Eventos pontuais (nacionais ou internacionais), no
caso específico das artes cénicas, na vez de trabalho regular e
continuado pelo “país real” é mais aberrante que o TGV, quando se cortam
ligações ferroviárias básicas.
Daí o meu “sit venia
verbo” em consensos corporativos ou sequer diálogos cheios de
omissão dos beneficiários deste caos libertino, que não libertário. A
reanimação do teatro português passa, hoje, pela assunção das clivagens,
debates fracturantes, confronto de ideias… Para ao menos, no seu próprio
interior, se desenvolver a tal massa crítica, produzindo pensamento, de
onde nasça uma verdadeira estratégia verdadeiramente cultural, passe a
redundância dos termos… Ou não termos!
Castro Guedes, Encenador
castroguedes9@gmail.com
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(Jorge) Castro Guedes (Portugal)
Encenador, natural do porto, nascido em 1954. fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93). encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses. director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo). professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril. autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação. acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92).
castroguedes9@gmail.com |