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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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ÁLVARO ALVES DE FARIA
Três sentimentos em Idanha |
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Seleção de alguns poemas do livro: «Três
sentimentos em Idanha
e outros poemas portugueses» |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Página Principal |
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Índice de Autores |
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SÍTIOS ALIADOS |
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TriploII - Blog do TriploV |
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O Bule |
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Jornal de Poesia |
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Domador de Sonhos |
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O Contrário do Tempo |
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TRÊS SENTIMENTOS
EM IDANHA |
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1. |
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Pois que no olho dessa ovelha
está minha vida
não sei dizer das minhas
palavras a frase certa
mas o verso de minha existência
no olho dessa ovelha que me olha
em sua volta
como se a conhecer-me de outra
vida
essa que habitei nas Primaveras
por estas casas de pedra e o céu
tão branco como a luz
este silêncio que corta a noite
a colina tão ampla de tantas
distâncias feita
o amanhecer tão nítido na asa
dessa ave
a despertar o dia no
esquecimento.
Meu pai está ali sentado
ao pé da porta da casa como se a
me esperar
com seu paletó escuro e sua
gravata antiga
como se a saltar de uma
fotografia e comigo se deparasse
num abraço escondido no bolso
seu cajado como a de um pastor a
olhar as horas
na relva úmida da manhã.
Meu pai está ali sentado a
olhar-me
não fala as palavras que me
ensinou
nem acena o aceno que me tinha
talvez me guarde entre os dedos
num afago das mãos
e do lado esquerdo deixe
escorrer silencioso o tempo
como se a me aguardar aqui em
Idanha
eu pastor de mim a caminhar
comigo em minha volta
a procurar-me ainda
que não me busco só para viver
mas para caminhar
pressentimentos.
A planície se estende quase azul
onde o verde termina
passageiro em meus sapatos
aqui
onde nasce o sonho porque a vida
se abre
é só saltar pelos telhados
escuros destas casas
e se deixar dentro da terra
raiz da vida
onde vivem os passos passados
e os pés de uva. |
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2. |
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Pois que neste caminho
a andar à tarde
como se a colher das ovelhas os
rumos das montanhas
eis que
neste caminho
a percorrer igrejas e pátios
nas aldeias de meu pai
neste caminho
neste altar
pois aqui
encontro a Senhora do Almortão
e com ela saio
a caminhar no mais fundo de mim
onde não me encontro mais
a cantar com ela a reza do povo
a cantar com ela modinhas
que me ensinou a infância
quando o olhar ainda não
pressentia
o som das horas no tecido tênue
da face
o nascer da vida e o que estava
por vir
a cantar com ela
a Senhora do Almortão Virgem
Santa mãe de Deus
nestas pequenas ruas de Idanha
seu vestido talvez amarelo quase
verde branco talvez azul
da cor do céu e das nuvens da lã
dos carneiros
os olhos brilhantes Senhora
e essa coroa de um ouro que não
conheço
essa mão de beleza feita
como se tudo fosse da tarde
esse manto de estrelas distantes
a cantar com ela
a Santíssima Virgem
Senhora do Almortão
a caminhar sandálias dos
pastores que me guardam.
Com a Senhora ando
a poesia que me espanta e salta
da terra
com ela a cantar entre as vilas
chapéus que cobrem os presságios
os olhos ternos destes homens
como os cabelos das mulheres
guarda-chuva da espera
a cantar com ela
entre as crianças e as planícies
Senhora do Almortão
Para lá vou eu agora
O meu coração cada dia
Minha alma a toda hora.
com ela saio de mim em tanta
distância
no que de ausência trago na boca
por minha terra no destino de
meus sapatos
em minha busca
porque está aqui a minha
essência
meu nascimento para a vida a
calar nas aves
o que do vôo me interrompe
este poema que me percorre
e comigo se deixa ficar
Senhora
como se fosse sempre assim
o que haverá um dia de ser
entre o esquecimento e a palavra
o gesto e a planície
a colina que se estende à minha
frente
vida de meu lugar
onde me renasce o sonho
que talvez
seja ainda possível sonhar.
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3. |
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Sempre será preciso partir
como se a cortar o áspero
sentido do poema
como se fosse assim um pouco de
morrer.
Há dois anjos a guardar este
altar em que me vejo
parte de mim não está mais no
meu corpo
esta igreja que agora me povoa
o olhar desses anjos parecidos
divinos
serão anjos que talvez não saiba
lhes dizer a sina
como se a voar como as cegonhas
a fazer seus ninhos
que seja o verso mais longo que
me tenha
desses que ultrapassem todas as
palavras
que seja essa procissão de meu
passado a encomendar as almas
que me possa caminhar entre as
ruínas dos castelos
que me veja nas pedras e nas
ruas
que me descobrem na face de
Portugal.
A noite é tão espessa que densa
se faz a dança
que denso se faz o deus do
encanto
a dúvida e a dádiva
o desejo de me deixar depois em
mim deserto
que denso desgosto sinto
a me dormir em mim dono que não
me sou
nem me desperto a dor que dói a
deslizar
talvez destinos
os domingos adormecidos
meu dote dolorido no dia
derradeiro.
Sempre haverá esse momento de
partir
a cortar no peito como se fosse
uma espada
que se fere à sombra que não se
conhece
como se a espreitar a tarde que
finda.
Sempre será preciso partir:
atrás de mim
vejo as pedras das montanhas
um risco vermelho no céu
como se estivesse sempre a
nascer na pele
de uma campina
essa música que me adormece
no avental branco de minha mãe.
Talvez me ajoelhe nesta igreja e
me reze por dentro
o que nunca soube rezar
a palavra que escorre pela
madeira dos bancos
no chão de pedra
pequena sala de infortúnios e
pedidos de perdão
de tantas juras de amor
confissão de meus pecados
desses que não cometi
e que cometo sempre
nesta igreja
onde agora me observo por dentro
de mim
onde a alma não reside mais.
Sempre será preciso partir
como se num dia a abrir a janela
e caminhar lento pelas ruas
como se fosse a última vez.
O olhar não alcança o dia.
É preciso fechar o tempo como se
fecha uma casa.
Depois será preciso calar o que
se sente
para que tudo se complete
que seja esse sentimento de
ficar aqui
a rodopiar as imagens
memória de tudo onde me guardo
gaveta de mim que não me sei
que nunca me saberei. |
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AQUELE
HOMEM |
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Sou aquele homem que não voltou,
que saiu de casa ao amanhecer
e se perdeu para sempre.
Sou aquele homem da fotografia
na parede
da casa fechada por dentro.
Sou aquele homem que inventou a
tarde,
mas não viu anoitecer.
Sou aquele homem que se perdeu
sem saber.
Aquele que não soube nunca,
sou aquele que não soube.
Sou aquele homem que
desapareceu,
aquele que acreditou,
e ao se ausentar de si mesmo
sentiu o vazio absoluto de todas
as coisas.
Sou aquele homem que se foi
e quando pensou em voltar
não tinha mais tempo,
era tarde demais.
Sou aquele homem que se desfez
depois de enlouquecer
e enlouquecido
tentou refazer o seu destino.
Sou aquele homem que engoliu
um rio
e se afogou adormecido.
Aquele que falou sozinho
diante do espelho
se vendo do avesso.
Sou aquele homem que falava com
as pedras
palavras desesperadas
que saltavam da boca
como gafanhotos doentes.
Aquele homem que conversava com
os santos
numa igreja sem portas
e que dizia silêncios
em sílabas de gesso.
Sou aquele homem que numa imagem
poética
enfiou um punhal no coração
como um poeta romântico do
século 18.
Sou aquele homem quase lírico
que chamava os pássaros
para uma ceia de sementes.
Aquele homem que rezava
com os anjos expulsos do céu,
sem saber que eu estava
expulso de mim.
Sou aquele homem que amou 30
mulheres
e matou-se por amor 29 vezes.
Sou aquele homem que ao jogar
xadrez
fugiu com a Rainha
para um castelo medieval.
Aquele que diante de Deus
pediu para ser destruído,
mas como castigo deixou-me viver
mais.
Sou aquele homem que amou
mulheres de
porcelana,
com sexo de
porcelana,
boca de porcelana,
beijo de porcelana,
língua de porcelana.
Sou aquele homem de porcelana
que se quebra como uma xícara
que cai da mesa.
Sou aquele homem que saiu para
dar uma volta
e esqueceu de regressar.
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OCO
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Tenho pensado em desatinos,
como por exemplo
matar todos os poemas
de todos os livros do mundo,
palavra por palavra,
sílaba por sílaba,
deixando só uma coisa oca no lugar,
o poema mais perfeito. |
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ALMA |
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Tudo vale a pena
quando a alma diminui
seu tamanho natural,
assim reduzida em sua forma.
Tudo vale a pena
quando a alma escapa
e no seu delírio ama
a possibilidade de sua vida,
assim pequena,
tão frágil alma
que não cabe numa xícara
ou num cálice que se quebra,
essa alma sem começo
e sem fim em seu destino.
Tudo vale a pena
quando a alma
no fundo rigor de sua pena
fica sem Deus. |
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SOMBRAS |
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1. |
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A ave
que na árvore adormece voará
pela manhã enquanto houver manhã para voar,
já eu,
poeta de última hora despojado
de mim, voo com três anjos escondidos,
que em pecados se perderam
diante da justiça de deus,
e condenados para sempre
permanecem nos cantos mais escuro das casas
e do mundo,
como se escondidos da fúria
divina pudessem viver.
Já eu,
poeta nas horas vagas e
ausentes, apagadas nos relógios,
voo com trinta anjos
desconhecidos que, perdidos, procuram pelas chuvas
com asas feridas, mas encontram
o desespero.
quando então renasce a manhã.
A ave
que na árvore adormece
sai em busca das raízes, aquelas
engolidas pela terra,
como as mãos que se perdem num
aceno,
essa ave então retorna de seu
voo como se regressasse à vida,
mas o tempo é incerto.
Já eu,
poeta dos instantes aflitos,
tento me perdoar dos crimes que cometo
contra mim,
essa ave
que na árvore adormece
e que espera seu voo derradeiro
para assim completar o meu
destino. |
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2. |
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Encho de pedras os bolsos de meu
casaco
para atirar-me num rio de
sombras para sempre, onde nas águas vejo meu rosto,
um corte melancólico que me faz
lembrar das coisas que desapareceram,
e em mim renascem como facas e
lâminas que separam meus dedos em pedaços.
Basta apenas pular e me deixar
levar como se nada tivesse acontecendo,
assim a calar-me cada vez mais
por dentro, até que de mim desaparecesse para sempre,
deixando em meu lugar aquela
fotografia que não houve e o poema que não foi escrito.
No entanto, as pedras me guardam
em silêncio porque agora participam de mim,
no próprio naufrágio que me
imponho a costurar minha pele com essa agulha
que mais fere o ferimento aberto
para meu universo mais íntimo:
não haverei de me revelar e
saltarei nas águas com um livro qualquer,
dos que deixei de escrever
quando as imagens ainda eram nítidas,
de um tempo em que eu falava com
os anjos e comia com eles pão e avelãs,
antes que voássemos a noite que
nos batia na face.
Não escrevi poema nenhum
e a poesia neste instante são as
pedras no bolso de meu casaco.
Comigo afundarão duas cartas que
não deixei
e duas ou três estrelas que fiz
de pedaços de espelhos
onde minha sombra se deixa
morrer. |
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3. |
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As palavras desaparecem, lápides
de si mesmas, como se numa planície,
foram-se como vêm às chuvas e os
temporais, num instante que não se percebe,
então fica o lábio partido,
vidro que se trinca, a pintar silabadas de sangue,
como exclamações desnecessárias,
mas definitivas, porque quando termina a vida
os poetas não sabem dizer
qualquer palavra de significado, das mais sem importância,
daquelas que surgem na boca com
um gafanhoto em cima de uma folha,
os olhos dois pontos verdes
escuros e observam o mundo,
pequena sala de pressentimentos
e coisas ausentes, as mãos cortadas,
a ostra que se esconde onde não
chega o sal das águas
e este percorrer silêncios nas
sombras do que não é,
aquele envolver-se na terra como
as raízes mais intensas
que se perdem entre as conchas
do ferimento.
Senhora do mar, nas sombras da
Ilha de São Miguel,
deixa-me falar com Deus por esta
necessidade de me arrepender,
para que faça da palavra morta o
que ainda se pode viver.
Deixa-me, Senhora do mar, aqui
diante das águas que me emudecem
reinventar meus gestos perdidos
para sempre
no exato instante em que tudo se
perdeu.
Deixa-me, Senhora do mar,
olhar-te nos olhos apagados das imagens,
para que possa em mim acender o
dia
nesse calendário que se volta
para trás. |
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AS ÁGUAS
DO RIO |
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Ao molhar os pés nestas águas,
percebo este mergulho que me dou,
assim submerso em mim mesmo,
como se a ferir-me da existência
para salvar-me não sei do quê.
São as águas deste rio que cortam
Coimbra ao meio,
como se fosse Coimbra um pedaço
de pão com azeite
que se põe à mesa ao anoitecer.
Neste gesto de molhar os pés
está o significado das vidas que me habitam,
um aceno grave que grava minha face na pele.
Parco é o sinal em que me adivinho,
uma linha que me divide
diante do espelho,
o que é
e o que ainda está por ser.
Nestas águas sinto também
o telhado das casas
a escorrer chuvas antigas
manchadas do musgo das paredes.
O Mondego vive mais à noite,
quando as águas recebem a luz das janelas
e respiram os peixes tardios.
Lento vai ao seu destino,
onde molho meus pés,
como se assim me completasse
inteiro em mim,
a morrer por necessário. |
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MEMÓRIA |
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Sou aquele homem que esqueceu:
faz trinta anos que estou parado
num período do tempo
que não sei,
embora antes colecionasse relógios.
Colecionador de relógios,
passava os dias observando os pássaros.
Sou aquele homem que esqueceu:
caminho agora no quarto
cm círculos que não terminam.
Esquecido,
corro pelas brumas
em busca de cavalos
que nunca encontrei.
Sou aquele homem que se perdeu:
Foi talvez numa paisagem noturna
ou numa cidade que nunca conheci.
Nesse tempo
eu plantava cerejeiras
e colhia a água dos rios.
Sou aquele homem que morreu:
apaguei as janelas da minha casa
e me tranquei por dentro
como se assim pudesse
livrar-me de mim.
Sou aquele homem
que pulou do décimo andar:
nesse tempo eu olhava as aves
que faziam ninhos nas igrejas
e delas recebi as asas
que precisava para voar. |
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SACERDOTE |
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Quando eu pensei em ser padre,
Deus não precisava ser temido por ninguém.
Depois desisti,
sem saber exatamente porquê.
A freira que ia casar-se comigo se matou
numa sexta-feira da Semana Santa.
Joguei então minha batina no fogo
que também me consumiu.
Então virei santo,
mas ainda não fiz nenhum milagre,
tenho muito a aprender. |
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DA
PEDRA, DA PALAVRA |
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Porque dos sentidos de uma
solidão de pedra pode-se tirar uma palavra,
daquelas esquecidas nos livros
que falam com a página a linguagem dos mágicos,
como se assim se revelassem ao
mundo de suas sombras,
mas não há significado algum
nessa tentativa de dizer-se,
já que a morte se espeta nos
objetos e cerca as portas e as janelas,
paredes que dividem o nada,
espectro do espectro, espelho do espelho,
onde as faces se misturam e se
deixam desenhar com a nitidez das águas.
O poema há de ser longo, mas sem
palavras,
como se não houvesse em sua
própria circunstância,
como se assim se pudesse melhor
compreender silêncios e cortes.
Está na pedra, na alma da pedra,
a alma da pedra.
Está nela, dura como ela
própria, pedra de outro tempo,
da palavra áspera na rudeza da
boca,
um ferimento que se abre sempre,
quando a noite inicia seu
percurso de sombras inesperadas.
Então assim se compreende essa
alma que cada dia some mais,
até desaparecer para sempre
dentro do corpo
e de dentro do corpo saltar para
o universo de todas as coisas,
a palavra que cala, a voz do
silêncio que fala. |
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|
A MULHER
DA RUA DE SÃO NICOLAU |
|
Essa mulher que vende castanha
na rua de São Nicolau, em Lisboa,
não sabe que daqui
vejo despir-se sua alma.
Essa mulher que vende castanhas
na rua de São Nicolau
é também costureira,
dá-me essa certeza sua mão esquerda
que mexe nas castanhas
como se tecesse uma toalha.
Dá-me essa certeza
o detalhe do seu dedo do meio,
que ao cortar a casca,
risca com a unha
esse pele que se abre
e mostra o fruto branco
ao calor do carvão que queima.
Também nessa mulher que despe sua alma
a vender castanhas na rua de São Nicolau,
vejo um navegante
que sai pelo mar adentro
a calar as estrelas que vivem no fundo das águas.
Vejo nessa mulher
que vende castanhas nesta rua de Lisboa,
vejo nela
uma mulher que se desconhece
e se fala palavras que não ouve,
assim a vender castanhas
para o frio,
como se estivesse ela
ao pé de uma tabacaria
a conversar com Álvaro de Campos.
Nessa mulher que vende castanhas,
vejo um rosto que não esquecerei
e dela guardarei as palavras que não me diz,
como se me conhecesse há muito tempo,
o que a torna íntima
a tratar-me com o zelo de seu silêncio.
Dessa mulher guardarei
o lenço que traz na cabeça,
seus olhos escuros
como sombras
que escondidas se deixam
na rua de São Nicolau,
em Lisboa,
perto do rio Tejo
onde me deixo ficar
para sempre. |
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ESPELHO
MEU |
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Diga-me espelho meu:
há no espaço da minha cara
alguém que chora como eu ?
Diga-me espelho meu:
há no universo de minha alma
algum pecado que não seja meu ?
Diga-me espelho meu:
há na minha rua
alguém que comigo se perdeu ?
Diga-me espelho meu:
está entre os sonhos da Poesia
o meu sonho que morreu? |
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FINAL |
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Ponho fim à vida,
em legítima defesa. |
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Álvaro Alves de Faria, poeta, escritor
e jornalista brasileiro. Filho de pais portugueses. Seu pai, Álvaro, de
Angola; sua mãe, Lucília, de Anadia. Vive em São Paulo, onde nasceu.
Autor de mais de 50 livros, entre romances, novelas, livros de
entrevistas literárias, ensaios, crônicas, além de peças de teatro. Mas
é fundamentalmente poeta. Uma das vozes mais conceituadas da Geração 60
da Poesia Brasileira. No Jornalismo, desde jovem, sempre foi combativo,
o que lhe causou sérios problemas na carreira. Editor de um suplemento
cultural na ditadura brasileira, era obrigado a ter ao seu lado, no
encerramento, um censor da Polícia Federal. Fora os assuntos políticos,
sempre se dedicou, também, ao jornalismo cultural, com intenso e
reconhecido trabalho em defesa do livro. Considera-se um poeta
português. Por declamar poemas no centro da cidade de São Paulo, com
microfone e alto-falantes, foi preso cinco vezes como subversivo.
Escreve e interpreta sátiras políticas e de comportamento na TV da Rede
Jovem Pan-SAT, (Rádio Panamericana) em São Paulo, na qual é também
editorialista do Departamento de Jornalismo. Escreve e desenha uma
história em quadrinhos que tem como personagem um passarinho, Pintim, no
Portal da emissora. Assina o “Blog do Poeta”, no mesmo site, que já
recebeu mais de 1 milhão de acessos. Vem publicando livros em Portugal
desde 1999. Diz, veio para Portugal em busca da poesia que lhe falta no
Brasil. Seus livros de poesia publicados em Portugal são: "20 poemas
quase líricos e algumas canções para Coimbra" (A Mar Arte, 1999),
"Poemas Portugueses" (Alma Azul, 2002), "Sete Anos de Pastor"
(Palimage,2005), “A Memória do Pai” (Palimage, 2006), “Inês” (Palimage,
2007), “Livro de Sophia” (Palimage, 2008), e pela Editora Temas
Originais “Este gosto de Sal – Mar Português” (2010) e a novela “Cartas
de Abril para Júlia” (2010). Este novo livro “Três sentimentos em Idanha
e outros Poemas Portugueses” representa mais uma afirmação da poesia
desse poeta brasileiro que, essencialmente, se liga à vida e à condição
existencial do ser humano. |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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