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Comento aqui três poemas visuais de Almandrade, poeta
visual brasileiro que vem se destacando pela sua produção de qualidade
teórica e estética no âmbito da poesia de vanguarda.
O nome do poeta já conota toda uma estratégia poética. Antônio Luiz M.
Andrade, cujas iniciais formam A.L.M.A., daí o compósito “Almandrade”.
Mas esse é o país dos “andrades”: Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Carlos Drummond de Andrade... Destaco que “Almandrade” lembra também o
proparoxítono “Sousândrade”. Assim temos uma reunião de nomes de poetas
marcados pela irreverência, pela ousadia e, principalmente, pela
radicalidade da invenção.
Num verbete do site “Expoart”[1] li acerca de uma estratégia minimalista
nos poemas que aqui comento. De fato, é possível perceber uma economia
de meios nos poemas que apontam para um processo centrípeto de síntese
que une significado e significante no código verbal de tal forma que os
aspectos visuais do grafema se destacam como elemento significativo
semântico e estético do poema.
O primeiro poema que comento é “HomeMulher”. O poema se forma da
justaposição do “M” final de “Homem” com o “M” inicial de “Mulher”. O
“M” é destacado no tamanho e na forma, constituindo-se duma linha fina
que ocupa todo o espaço central do poema. De um lado fica o semema
“Home” - significando casa, do inglês - do outro “ulher” que pode ser
dividido em “ul / her”, parte de terminação sufixal do inglês (beautiful,
wonderful, spoonful) e pronome. Os sememas dos extremos formam “home her”,
o que confere um sutil domínio do feminino sobre o masculino, domínio
que ainda se desdobra no âmbito dos grafemas/fonemas, uma vez que o “H”
inicial de “Homem” não tem som nessa palavra, mas forma um dígrafo
sonoro em “muLHer”, por sua vez, o “M”, grafema da união das duas
palavras e que inicia a palavra “mulher” aparece duas vezes em “hoMeM”
com forte significância sonora. Assim esse “homeMulher” não é apenas a
união de “homem” e “mulher”, mas é também a feminilização do masculino,
mais do que a “masculinização” do feminino. Lembramos aqui, do mito
adâmico de caráter esotérico, gnóstico, que conferia ao ser humano
primordial a condição de ser “homem” e “mulher” e que após a separação
dos sexos surge a constante busca de um no outro.
O segundo poema que comento é “Seios”. Nesse poema o “i”, bem ao centro
da palavra é destacado em tamanho tal que separa o espaço do poema em
duas partes. De um lado “se”, de outro “os”. O “i” é o espaço entre os
“seios”, estes, por sua vez, configurados pelas formas das linhas
sinuosas e curvas das letras “s” e “o”. Os sememas “se” e “os” formam o
início de uma frase condicional, interrompida: “se os...”. O condicional
é o elemento que qualifica, por um lado, o poema. Os “seios” representam
a concretização de possibilidades condicionais. Podem significar
maternidade, mas por outro lado, sensualidade e desejo. O “i” cortando
espaço e sendo formado por dois segmentos de reta, um menor e superior
para representar o “pingo” e o outro, maior, para o corpo da letra,
sugerem um zíper a ser aberto, para que se possa ver por sob a camada da
palavra/roupa a coisa concreta que ela representa. Lembro que quando
trabalhava de auxiliar de escritório um dos pequenos truques que fazia
na máquina de calcular era digitar o número 50.135 e virando a máquina
ao contrário se podia ler no mostrador a palavra “seios”, Almandrade faz
aqui algo mais intenso e poético. Não inverteu a posição, mas destacou
um elemento formal que estava ali na palavra, oculto, impregnado pela
visão mecânica de leitura linear.
Em “Voz” - terceiro poema - o “o” é dimensionado para parecer um enorme
balão ou ovo, dentro dele um balão de comics, de linhas retas (um
quadrado) em que se lê/vê inscrito a letra “x” vazada. A voz assim se
constrói pelos balões, é a fala representada nos quadrinhos. O “o” surge
como uma janela, uma abertura dentro da significância da palavra, uma
abertura para a visualidade e esta, por sua vez, materializa a
representação da “voz” pelo balão. O contraste entre círculo (“o”) e
quadrado do balão conota uma das mais teóricas discussões da geometria
matemática e da esotérica: a curvatura do círculo. A fala “x” é o
mistério, o enigma que no poema é a relação entre palavra e coisa,
significante e significado, forma e conteúdo. Notemos ainda que a
seqüência v/x/z sugerida na leitura do poema corresponde às três últimas
letras do alfabeto português até tempos recentes quando as letras “k, w,
y” foram consideradas como letras estrangeiras. O “x” que falta para dar
significado à seqüência e formar uma palavra é o “o” imenso, cuja
dimensão mais concretiza visualmente o sentido da palavra.
Almandrade consegue assim, economicamente, sinteticamente, revelar o que
estava oculto, mas visível na palavra. Oculto porque não se via o que
está lá para ser visto antes de ser lido. Num texto acerca da poesia de
Wlademir Dias-Pino, Almandrade[2] escreve algo que também bem pode se
referir aos seus próprios poemas:
“A mão do poeta inventa e relaciona imagens, mobiliza o pensamento de
quem olha na busca de uma história, ou melhor, de uma pré-história das
artes gráficas e sua poética. Uma performance da visualidade que viaja
no tempo e exige de nós uma contemplação provocante.”.
Almandrade nos oferece com seus poemas uma “performance da visualidade”
que exige sem dúvida do leitor uma atitude de “contemplação provocante”.
A economia de meios se por lado indica uma poética minimalista, doutra
parte é também uma síntese complexa de elementos, seus poemas são quase
como pantáculos, chaves poéticas que o iniciado deve analisar sob vários
ângulos e possibilidades de estratos: fônicos, semânticos, semióticos,
lingüísticos, geométricos, etc. para poder no âmbito das relações dessas
possibilidades ver a dimensão e o alcance simbólico ali contido.
Jayro Luna |