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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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I
KURSK - Chegar no verão a Kursk (Kypck em russo), capital da divisão
federal de Oblast, já perto do Mar Negro, no Oeste da Rússia, na parte
europeia do país, é uma surpresa até mesmo para quem sai dos trópicos:
os termômetros chegam tranquilamente a 43 graus. Já no inverno há dias
em que não é possível nem sair de casa ou do hotel: com 26 graus abaixo
de zero, não só é preciso estar com roupas e calçados adequados como
andar com cuidado para não sofrer escorregões no gelo. Além disso, até
abrir a porta da rua é uma dificuldade por causa do gelo acumulado.
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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ADELTO
GONÇALVES
Com brasileiros em Kursk |
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I |
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Com 412 mil habitantes, Kursk é nome
comum nos livros que descrevem os combates da Segunda Guerra Mundial,
pois se tornou palco da maior batalha de tanques da História que foi
decisiva para a vitória dos russos sobre os alemães, que ocuparam a
cidade de novembro de 1941 a fevereiro de 1943. Além disso, era o nome –
dado em homenagem à cidade – de um submarino nuclear que, em 2000,
naufragou no mar de Barents (Ártico), no Norte da Rússia, matando seus
118 tripulantes, o maior desastre desse tipo até hoje.
A mais de 11 mil quilômetros do Brasil, é
claro que ninguém imagina encontrar um brasileiro por lá. Mas, durante o
verão, andando a pé pela Avenida Lenina, a principal da cidade, não é
difícil ouvir alguma expressão em português: mais de cem jovens
brasileiros estudam lá, principalmente Medicina (em russo ou inglês) na
Universidade Estatal Médica de Kursk, atraídos pelos baixos preços
cobrados: US$ 4.500 por semestre, o que inclui não só o que se paga à
universidade como a hospedagem num alojamento (obshchezhitie), em que se
tem de dividir o quarto com outro colega, e ainda cerca de US$ 500 por
mês para a sobrevivência, se bem que é possível sobreviver com menos
ainda, já que a alimentação diária é feita no restaurante da
universidade a preços módicos. Em média, o estudante estrangeiro gasta
menos de US$ 900 por mês.
Por ano, a Universidade cobra US$ 3.700,
o que inclui seguro médico, tutoria acadêmica e acesso a livros. O curso
de Medicina é de seis anos, mas antes é preciso fazer um curso
preparatório de nove meses de inglês ou de russo. Já os cursos de
Odontologia e Farmácia duram cinco anos. É possível também fazer
pós-graduação a partir de US$ 2.800. Quem faz a arregimentação de
estudantes no Brasil é a Aliança Russa, em São Paulo.
Em razão de seus preços baixos, Kursk,
cidade industrial localizada numa rica região de minério de ferro,
tornou-se também um burgo universitário: além da Universidade Estatal
Médica, há a Universidade Técnica Estadual, a Universidade Estadual (ex-Universidade
Pedagógica) e a Academia Agrícola, além do Instituto Social Regional
Aberto, de ensino privado. Todas as instituições têm atraído estudantes
de todo o mundo, especialmente de países em desenvolvimento, como
Nigéria, Malásia, Índia e Paquistão, e países árabes. |
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II |
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Construído em 1935, ao tempo do ditador
Josef Stalin (1878-1953), o prédio principal da Universidade Estatal
Médica de Kursk fica no início da ampla Avenida Lenina, que termina
cinco quilômetros depois, diante da Catedral (ortodoxa). Suas
instalações são antigas e passavam por reformas em julho de 2011.
No hall de entrada, as paredes estão
decoradas por fotos antigas da época da construção do edifício: em todas
se destaca ao fundo o retrato de Stálin. À frente do vetusto edifício da
Universidade, onde todo estudante recém-chegado se coloca para tirar
fotos, há também um monumento em homenagem àqueles que lutaram na
batalha de Kursk, na Segunda Guerra Mundial.
Reconhecida pela Organização Mundial da
Saúde, a Universidade abriga laboratórios de pesquisa e está ligada a 28
hospitais afiliados. Mas, no retorno ao Brasil, o estudante formado
precisa passar por um exame de equivalência, o que não é fácil. “Os
professores são exigentes e, às vezes, até ríspidos”, queixa-se o
paulista André (nome fictício), que estuda Medicina há dois anos.
Para André, a Universidade é forte na
parte teórica, mas na prática deixa um pouco a desejar. Além disso, os
equipamentos não são muito modernos. “Por isso, aproveito as férias de
meio de ano para fazer prática em algum hospital de São Paulo”, diz,
ressaltando que um grupo de quatro estudantes brasileiros preferiu, em
julho, trocar o curso de Medicina em Kursk por outro equivalente em São
Petersburgo, a capital cultural da Rússia.
Seja como for, André e outros estudantes
brasileiros reconhecem que os mestres “puxam” bastante pelo aluno. “É um
pouco diferente do que estávamos acostumados no Brasil. Aqui, primeiro,
somos obrigados a estudar no dia anterior a matéria que será dada pelo
professor na aula seguinte. Em classe, o professor só procura tirar as
dúvidas”, explica. “Por isso, é preciso passar a noite estudando”, diz.
Segundo o estudante, alguns professores,
embora tenham consciência de que a ideologia é um fenômeno do século XX
e o comunismo uma possibilidade perdida no passado, não disfarçam certa
nostalgia dos tempos soviéticos. “Muitos dizem que na época da Guerra
Fria havia competição com os Estados Unidos e isso estimulava o
crescimento, ao passo que hoje o país se encontra um pouco paralisado”,
conta. “Além disso, os professores reclamam que ganham pouco e que não
são valorizados como deveriam”, acrescenta.
Aliás, na Avenida Lenina, um outdoor
mostra que o Partido Comunista continua ativo, mas há quem diga que o
símbolo com a foice e o martelo virou até marca de supermercado. As
estátuas que reverenciam os grandes nomes e feitos dos tempos soviéticos
continuam de pé. O atentado a bomba contra uma estátua de Lênin em
Moscou ocorrido há dois anos é reprovado pela maioria das pessoas. Vinte
anos depois da queda do regime soviético, há um clima de maior
liberalidade: a liberdade religiosa, por exemplo, é mais respeitada. E,
em Kursk, há até procissões religiosas na Avenida Lenina. |
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III |
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Os prédios dos alojamentos da Universidade não são bem cuidados, mas
isso é comum à maioria dos edifícios da cidade: muitos exibem
encanamentos que deveriam passar por dentro das paredes. E, como em
Moscou, há prédios de apartamentos dos tempos soviéticos que se mostram
em situação um pouco precária.
Nos alojamentos universitários, a
vigilância é rigorosa: ninguém que não mora lá pode entrar, sem deixar o
passaporte ou documento de identidade na portaria. Ao visitante não é
permitido dormir lá, ainda que seja pai ou mãe de aluno. Por isso, os
pais dos alunos, se não quiserem gastar muito com hotel, podem alugar um
apartamento. Só que, para isso, é preciso acompanhar o proprietário ao
correio ou ao centro de controle de migração mais próximo para fazer a
chamada registração.
(Aliás, esse tipo de registro é feito tão
logo o turista pisa em solo russo, mas fica por conta do hotel, que o
registra automaticamente e deve entregar ao estrangeiro um papel
devidamente carimbado e assinado. Se o turista mudar de cidade, o
registro também deve ser feito pelo hotel seguinte. O papel de
registração fica com o estrangeiro e serve para todo o tempo de sua
permanência naquele hotel. Se ficar na casa de um russo, este cidadão
tem que registrar o visitante estrangeiro, caso este pretenda ficar em
sua casa por mais de três dias. O cidadão russo deve ser o proprietário
do apartamento cujo endereço tem de constar do papel de registração. Se
o estrangeiro pretende ficar menos de três dias numa cidade, não é
necessário fazer o documento).
A entrada no alojamento universitário
depois da meia-noite também é proibida, mesmo para quem resida no local.
Barulho não é aceito. Por isso, não é recomendável sair para baladas em
Kursk. Recentemente, alguns jovens brasileiros estavam numa discoteca,
quando houve uma altercação e a polícia chegou e levou todos os
freqüentadores para a cadeia. “Todo mundo foi obrigado a permanecer
horas com os braços para cima, inclusive os brasileiros”, conta Mariana
(nome fictício), outra estudante brasileira. Por essas e outras, a
Embaixada do Brasil em Moscou já enviou representantes a Kursk para ver
como os estudantes brasileiros estão sendo tratados.
Não são poucos os brasileiros que se
mostram arrependidos por ter encarado esse desafio de estudar Medicina
na Rússia, principalmente os recém-chegados, que ainda lutam para se
adaptar a costumes bem diferentes dos brasileiros. E sentem saudade de
casa. Mesmo assim, há aqueles que dizem que vale a pena, levando em
conta principalmente os baixos custos do curso. “No Brasil, minha
família nunca poderia me pagar um curso de Medicina”, argumenta João
Carlos (nome fictício), que está lá há três anos.
A vida na cidade não parece muito fácil,
à primeira vista. Até porque a Rússia não é nenhum exemplo de
modernidade. Os trens que cortam o país, geralmente, são
desconfortáveis. Como as viagens são longas – de São Petersburgo, no
Norte, a Kursk, por exemplo, são 16 horas –, os passageiros dormem em
assentos/camas abertos. Há trens mais caros com compartimentos fechados
com quatro camas.
O banheiro de cada vagão é usado tanto
por homens como por mulheres e, em poucas horas, começa a exalar um
cheiro nauseabundo. Como o país tem um clima frio durante dez meses do
ano, todo vagão dispõe de um equipamento que fornece água quente. Por
isso, o viajante russo já viaja com embalagens de alimentos
pré-preparados (chá, macarrão e sopa) na bagagem.
Na estação (vokzal) de trem, o
desconforto também é uma herança do regime anterior. Ao lado de
decorações ao estilo do realismo socialista, há sempre cenas de guerras.
Ou um soldado em bronze. Na estação de Kursk, há um painel que mostra o
avanço das tropas russas diante dos invasores nazistas. O problema da
estação são os sanitários públicos. O viajante paga vinte rublos (R$
1,25) para usar um sanitário que não oferece nenhum conforto e só dispõe
de latrina turca, no chão (tanto para homem quanto para mulher).
Além disso, há uma dificuldade-extra:
para um turista que não fala russo, é um martírio comprar passagem. O
atendente, geralmente, não tem paciência nem disposição para entender o
que o outro fala, ainda que seja em inglês. Trata logo de demonstrar que
não pode perder tempo com quem não fala o idioma russo e já dirige o
olhar para o usuário que está atrás na fila.
Aliás, fila é algo que os russos ainda
não aprenderam a fazer: geralmente, acotovelam-se ao redor do guichê e,
não raro, quando espertamente um trata de passar à frente do outro,
eclode uma desavença. Não é difícil ver um homem de meia-idade avançar
numa mulher da mesma geração com gestos bruscos e impropérios. Por isso,
há sempre um policial por perto para serenar os ânimos. É o que se vê na
estação de trem. |
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IV |
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Kursk não é uma cidade turística –
o que, às vezes, é uma vantagem. Talvez por isso, ao contrário de seus
colegas moscovitas, os motoristas de táxi costumam ser honestos –
acertam com o cliente o preço da corrida antes de dar partida ao
veículo. E, como a cidade é relativamente pequena, o preço de uma
corrida entre a estação de trem e a Avenida Lenina, por exemplo, fica em
torno de 100 rublos (seis reais).
Além disso, há transporte coletivo em
abundância, desde que o usuário não se importe em andar num tramvay (bonde
ou elétrico) que parece saído de um filme dos anos 50. A outra opção é
recorrer ao transporte em van ou ônibus – na maioria, antigos. É o
próprio motorista quem cobra a passagem de dez rublos (R$ 0,60).
Há na cidade pelo menos dois shoppings
centers com praças de alimentação, que são modernos, além de um
McDonald´s e outros restaurantes que oferecem fast food. Nas ruas e nos
restaurantes, poucos falam inglês. E a saída é a universal linguagem dos
gestos, principalmente nas lojas dos shopping centers, onde há maior boa
vontade com os estrangeiros. Nas ruas e nos trens intermunicipais, o que
surpreende no verão é o estilo à-vontade nos trajes das russas, que
chegam a ser mais liberais que as brasileiras.
A culinária russa é à base de batatas e
massas (pelimene) com recheio. Tudo com smetano, um creme branco meio
azedo. Mas, cuidado: há sempre um exagero de pimenta (bulgarian pepper)
nos pratos. De sobremesa, não se pode deixar de comer blini (panqueca),
um clássico da cozinha russa, com recheio doce ou salgado, que
normalmente é servido com creme azedo e caviar. Os sorvetes (morozhenoe)
também são baratos: nas ruas, há locais que vendem sorvetes populares
por até dez rublos (R$ 0,60). |
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IV |
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Entre as atrações turísticas de Kursk, estão vários
monumentos em memória da Segunda Guerra Mundial, inclusive um que mostra
um tanque blindado da época. O edifício mais antigo de Kursk é a igreja
superior do Mosteiro da Trindade, da época do czar Pedro, o Grande
(1672-1725). Entre os prédios urbanos, que não foram construídos com
fins religiosos, o mais antigo é o Romodanovsky, nome de uma família
poderosa da época e erguido em meados do século XVIII.
A catedral de Kursk, ao final da Avenida
Lenina, foi construída entre 1752 a 1778 e segue o estilo barroco. A
catedral tem duas histórias: a igreja menor é consagrada a São Sérgio de
Radonezh e a maior a Theotokos de Kazan. A catedral do Mosteiro do Sinal
(1816-1826) é outro imponente edifício religioso, que segue o mais puro
estilo neoclássico, com uma cúpula medindo 20 metros de diâmetro e 48
metros de altura. Em Kursk, há também uma Praça Vermelha, que se destaca
pela imponência de seus edifícios.
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail:
marilizadelto@uol.com.br |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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