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Em tempos, Carl Rodgers foi um dos meus melhores
alimentos intelectuais para a alma. Já não o lia há muito tempo, mas eis
que me chega à caixa de correio uma generosa e providencial encomenda,
oferta da Padrões Culturais, onde mergulhei de imediato. O que li na
primeira página não me deixou indiferente. Rodgers nunca me deixou
indiferente:
“A questão pronominal ou, para ser mais exacto, a
saída para a situação “o/a”, tem-me inquietado bastante. Partilho,
inteiramente, o ponto de vista segundo o qual as mulheres são
subtilmente inferiorizadas pelo emprego do pronome masculino quando
se fala, na generalidade, de um membro da espécie humana. Gosto, por
outro lado, de uma escrita convincente e um “ele/ela” no meio de uma
frase destrói-lhe, muitas vezes, o impacto. Não acredito que se
possa encontrar uma solução satisfatória, até que alguém sugira um
conjunto aceitável de pronomes sem género.
Decidi abordar o problema desta maneira: todas as referências gerais
a membros da nossa espécie serão, num capítulo, femininas e no
seguinte masculinas. Por isso, utilizo, no primeiro capítulo
pronomes femininos onde a referência é geral, no seguinte pronomes
masculinos, e assim sucessivamente, ao longo do livro. Foi a melhor
solução que consegui encontrar e que satisfizesse os meus dois
propósitos: um objectivo de igualdade e um desejo de convivência.”
Carl Rogers, “Nota Especial” in: O Poder Pessoal, Padrões Culturais
Editora
Por sua vez, Fanny Van Laere, em El Resurgir de lo
Femenino, afirma:
“Desde pequeñas, a través del lenguaje, las niñas
tienen que asumir que están incluidas en el masculino genérico
universal, en el cual lo femenino queda invisibilizado. En la
mayoría de los idiomas, se utiliza el masculino como genérico
referencial para ambos sexos. En gramática se enseña que: “La
concordancia se hace según el género masculino, incluso si es
minoritario o implícito”. Todos los niños y niñas en la escuela
aprenden de memoria: “El masculino abarca a lo femenino”, es decir,
que lo femenino se hace invisible quedando englobado.”
Refere também o exemplo do francês, em que “le
masculin l’emporte sur le féminin”, que o mesmo é dizer-se que o
masculino predomina sobre o feminino. “Emporter”, o mesmo verbo
utilizado para significar uma vitória.
Por isso, esta escritora opta por “usar, a veces, un femenino genérico
universal, otras veces el masculino genérico universal habitual; y en
otras ocasiones, utilizo ambos.”
Opta, como Rodgers, pela alternância de géneros. Já passou o tempo da
queima dos soutiens. Evoluiu-se. Agora, o que se pretende está explícito
noutra passagem do mesmo livro, da mesma autora:
“Me gustaria aclarar que el resurgir de lo
femenino, por supuesto, no significa que los hombres lleguen a estar
subordinados a las mujeres, ya que esto no seria más que irse al
otro extremo; sino que invita a establecer un equilibrio entre los
valores femeninos y masculinos en nuestras estructuras mentales,
emocionales y sociales.
Cualquier relación que no sea de cooperación está
basada en la negación, o en la represión del lado femenino: negación de
las necesidades afectivas, de la intuición, de la creatividad, de la
visión de conjunto, de la necessidad de búsqueda y de las vivencias
espirituales, […]”
Também Álvaro García Meseguer, professor e investigador do Conselho de
Investigações Científicas,
“publicó un libro en 1977 donde afirmaba que la
lengua española era profundamente sexista.” Mais tarde, vem dizer
que “un estudio más profundo del género gramatical me hizo ver que
había confundido género por sexo. Ahora afirmo que la pobre lengua
es inocente y que el sexismo lingüístico radica en el hablante o en
el oyente, pero no en la lengua.”
La Opinión. 23 de noviembre, 2002
Portanto, o problema está no utilizador e não na
língua. O que vem dar razão aos dois autores acima citados que
resolveram, por sua alta recreação, mudar as regras do jogo. O que faz
sentido: uma vez adquirida a consciência de uma dada realidade, temos
uma de três coisas a fazer: ou não podemos fazer nada e aceitamos o que
não podemos mudar, ou podemos mudá-la e isso é pacífico para todos, ou
podemos mudá-la e, embora não sendo pacífico em termos sociais,
assumimos as consequências e contribuímos para pôr em movimento a lenta
alavanca da mudança. O que os dois autores fizeram. Este seu gesto
assume, implicitamente que a língua não é sexista, que são os falantes
(ou os legisladores) que a fazem. A língua, em si, é inocente.
Mas quando Álvaro García Meseguer ainda afirmava que a língua espanhola
era sexista, publicava os seguintes resultados comparativos da sua
investigação, quantificando e ordenando os países/línguas quanto ao grau
de discriminação apresentado nos seus idiomas em relação à mulher:
Finlandês: 1%; Sueco: 8%; Inglês: 15%; Alemão:
30%; Russo: 35%; Francês: 40%; Catalão: 70%; Italiano: 75%;
Castelhano: 80%; Árabe: 90%.
O Português não parece constar deste estudo.
A mesma Fanny Van Laer, em Renacimiento y
Purificación Espiritual, vai mais longe, e “mete-se com” o género de
Deus:
“A mi me gusta usar la palabra Divinidad ya que
no conlleva, en general, tantos condicionamentos, al tiempo que nos
recuerda el aspecto femenino de la vida; lo cual há sido tan
olvidado por las religiones en general y por nuestra civilización.
La Divinidad, la Vida, Diós o el Espíritu Eterno, ya que abarca todo
lo que existe, no és ni solo femenino ni sólo masculino. Sin
embargo, no existe en la mayoría de los idiomas una palabra de
género neutro para poder describirla.”
Mas não é novo, este inconformismo em relação a
certas características da língua.
Já António Telmo, em Gramática Secreta da Língua Portuguesa, apresenta
uma interessantíssima reflexão do poeta Teixeira de Pascoaes acerca do
“y” (esse filho pródigo que agora voltou até que alguém volte a pô-lo
fora) “que os foneticistas expulsaram do alfabeto por se mostrar
supérfluo” (isto faz-vos lembrar alguma coisa da actualidade?). A. Telmo
acrescenta que “Teixeira de Pascoaes escreveu que na palavra “lagryma” o
“y” exprimia graficamente a queda da própria lágrima e, com este e
outros exemplos, insurgia-se contra a tentativa de uniformizar a
ortografia.” E não sei porquê, este texto publicado em 1981 parece-me
muito actual e familiar. Continua A. Telmo: “O argumento era demasiado
ingénuo no seu sabor poético para poder sugestionar homens práticos que
usam o “uniforme” para unir e formar. Defendia o poeta a liberdade de
cada um exprimir como sentisse a palavra. Não queria talvez ensinar que
não se tratava só de sentimento, mas também de conhecimento.”
Eu adoro a ironia e a polissemia (para quem não navega pelas águas
técnicas da língua, eu explico: a coexistência ou possibilidade de
diferentes sentidos numa mesma palavra) que ele põe no termo “uniforme”.
O conhecimento a que Telmo alude é a profundidade simbólica do “y” (e do
Português) do ponto de vista cabalístico. Mas não vou internar-me agora
nesta selva conceptual. Porque já cheguei onde queria chegar. E onde eu
queria chegar era precisamente ao ponto que cada um entendeu para si. |
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Risoleta C Pinto Pedro (Elvas, Portugal)
Publicou até hoje: A Criança Suspensa, Prémio
Ferreira de Castro, O Corpo e a Tela, Hugin, O Aniversário, Prémio
Revelação APE/IPBL 1994, Difel, O Arquitecto, Hugin, Venite In Silentio,
Unicepe, Porto, 2004, O Sol do Tarot de Sintra, Indícios de Oiro, 2009,
Adelaide Cabete e a Palavra encontrada, Padrões Culturais, 2010, entre
outros. Foi também premiada na poesia pela SLP, tem escrito teatro,
canções, libretos de ópera, cantata, musical, texto para bandas
desenhadas. Fez crónica (“Quarta-Crescente”) para a Antena 2. Continua a
publicar crónicas em periódicos generalistas,
literários e de artes plásticas.
http://aluzdascasas.blogspot.com
risoletacpintopedro@gmail.com |