REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 18

   

 

 

 

 

Como o título deixa adivinhar, estes poemas são alguns daqueles
 com que respondi a solicitações
que através dos tempos me foram feitas por confrades,
visando a colaboração em diversos espaços
culturais a que estavam ligados.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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NICOLAU SAIÃO

 

POEMAS A PEDIDO

Com dois desenhos de Eugénio Granell

                                                                  
 
TRÍPTICO PARA MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
 

Alguns traços podem matar, é o que dizem.

Alguns traços são como cadeiras sangrentas.

E na verdade eles erguem, podem erguer, o tempo

e transformar-se (por exemplo) em substâncias breves

comummente sagradas: um peixe metralhado

uma lata de bolachas, um pequeno dedal

três ou quatro rostos humanos

uma pirâmide da cidade santa do Peru

ou, apenas, a imagem (real) da tradição

para a qual um morto (usado ou virgem) é tão belo como o destino

(vamos lá) a intervalos regulares.

 

 

Mas que sabem, que sabem (eles) da floresta?

Eles, os do pessegueiro feito plácido azeite

os da enfeitada confirmação acessória, os da matéria que

provê as mais cegas necessidades de

ar (digamos) sete vezes por semana.

Terá de haver, é certo, uma razão

para tudo isto. Isto, serve dizer: um deslumbrante

som, uma casa que fica sendo o quase princípio das coisas

ou, por antítese, a velocidade completa

dum sol rude e destroçado. Mas

com que alegria! a cor tem também o seu lugar:

- a ilusão viva desta mão, um copo (é exacto) azul

bem mais que aterrador, sendo como que a espádua

duma figura marítima ou de

uma qualquer linguagem irredutível.

 

 

Tantos anos passei

sem conhecer esta cerâmica inquietante. Tantos anos

que incluem aliás os meus anos repletos de chapéus e segredos

e toda uma filosofia de amargura, às vezes

uma realidade verdadeiramente (?) retratada e

 

os longos passeios (doridos) pelas quentes, sonolentas

existentes vilas falando (suavemente), abrigos

que são para diferentes caminhos de (in) submissão

a um incerto deus.

 

 

Um desejo afinal que a cidade afastou, essa cidade

exaurida de medo.

 

E sei bem que não basta

que à palavra se junte outra vontade

interrogada não pelo elemento

que tudo irá ligar: outra vontade

à semelhança de muita gente (havida), de multidões talhadas

nesses riscos ardentes, geografia altiva, vivos de ferocidade, vivos de

inumeráveis quartos, praças, canaviais, inúmeráveis mares

 

 

onde um morto (de acaso?) se multiplica pelos séculos inatingíveis.

 

(Por Mário Cesariny, para a revista “MELE” - Honolulu) 

   
 

   
   
 
VARIAÇÕES PARA UM AMIGO QUE ME ENDEREÇOU UM REPTO
 

 

                                                 “D. Quichote é o Cristo deste tempo” - MT

 

D.Quichote e o burro que são Cristo por ora

Ou o Sancho cavalo andando junto dos quatro

Moinho que Rocinante foi antes de todos eles

Mais a voz de Dona Aldonsa que por seu valor se ergueu

Seja manhã ou tarde ou muito depois de isso

Que vai ou fica no século que se gerou de trás

 

Cristo que por Rocinante se conhece com seu imenso

Tempo de burro como peregrino semi-morto e tenaz

Em frente suas andanças com a póstuma piedade

De ser cavalo no tempo de ser não mais que miragem.

 

Mas agora Quichote e Sancho e Rocinante

E D.Aldonsa e o burro sobre as suas figuras todas

E os gigantes que olham seu testemunho de séculos

Seja nos campos de Espanha seja nos outros lugares

Da erma melancolia para um burro ou um cavalo

Só Quichote só Cristo só Sancho ou só Aldonsa

 

Que param junto a moinhos no depois de essas vozes

Que se geram de frente como no tempo de outros tantos

Gigantes sempre de antes como miragens valorosas

Peregrinos todos eles como muitos junto de isso.

 

E por Sancho ou por Cristo Quichote se faz tarde

Na manhã do cavalo seu testemunho dos tempos

 

Bem cedo por seus campos no depois do seu burro

Seja em lugares de Espanha ou nos séculos de piedade.

 

(Por Nuno Rebocho, para o jornal “O Liberal” – Cabo Verde)

   
   
 
POEMA
 

Sugeriram-me um poema sobre Setembro. Comecei

de imediato a pensar: tirar um Setembro das recordações? Criar

um Setembro que jamais existiu? E criar como? Só como entidade

fortuita, como vivência crepuscular? Num princípio de manhã?

Setembro como lugar e hora, como estância perdida? Porque

Setembro é algo de impalpável, estranhamente inexistente, um risco numa

parede entre duas portas cerradas. Ou então

algo tão intenso e cheio de presença como uma sombra enorme

num pátio abandonado. Setembro como memória perene? Setembro como fuga

como chegada à palavra e ao horizonte das formas?

 

Eis a voz. Eis o nome. Eis o lugar que se escolheu. Um vestígio

de matéria absurdamente concreta. Porque os demais momentos

são agora um ruído junto das casas que se habitaram

com todo o seu encanto e desencanto primordiais. Com a semelhança

de olhares e de ausências.

 

E assim Setembro me poisou num ombro

como réstea de sol num dia inteiramente comum. Setembro

que é dito, que é escrito, que é rememorado

Setembro que se olha e nos define como seres ao anoitecer

ante este muro sobre o qual já se vêem os astros habituais

e que são tão nossos como o grito súbito de uma ave indistinta.

 

Setembro que não sei dizer

Setembro que nos foge quando o tentamos olhar

Setembro que lembro e que conheço como uma cor amada

mês que morre e revive em mim como um soluço um beijo um aceno

 

de mão sulcada por muitas linhas e pensamentos.

 

(Por Manuel de Almeida e Sousa, para a revista “Bicicleta” – Cascais)

   
   
 
RETRATO RASGADO
 

O ritual de construir está muito para além das intenções atingidas com o produto da pedra, do papel, do cimento e do vidro.

A arquitectura é a arte dos demónios fixos, por isso no grande mapa imaginário só se compreende e justifica uma casa enquanto escultura indecisa entre permanecer e ficar imersa em inexistência. Há fragmentos de cabeças assim como há fragmentos de janelas. Tudo passa, tudo reflui, tudo atinge de momento a momento a memória dos seres e os objectos com que pedem mais tempo: o pão, a madeira seca e caída nos bosques, um que outro animalejo (insecto veloz? pássaro atingido por um raio?), sinos ao começar do dia, o retrato rasgado de alguém que se amou.

Os rostos, no negrume entre estátuas, são como frutos amaldiçoados ou luzes que se acendem e apagam sem plano prévio.

 

(Por Palácios da Silva, para o catálogo da exposição “Foto-síntese da pedra” – Lisboa)

   
   
 
POEMA
 

Não eram vulgares   as mãos de meu  Pai.

Um dos dedos tinha mesmo uma unha rachada

E quando pela noite o vento me fazia

tremer

algo me entrava pelos olhos   e era

uma espécie de mapa

e eu lembrava-me   esforçando-me   contraindo

a cara

se era de facto uma luz o que se via

rés-vés ao telhado   muito perto

do grande portão de pedra em ruínas.

 

 

Naqueles tempos morávamos no campo

Muitos anos mais tarde visitei a casa

com dois filhos e vários garotos vizinhos

numa tarde ao fim dum passeio pelas matas

dos arredores. Ao canto da cozinha

estava um banco velho   e a madeira

ganhara uma cor acinzentada   devido

ao tempo. Disse-me depois

- enquanto comíamos pão com azeitonas - 

o dono dessa quinta alucinante

no pátio da outra moradia da herdade

que durante trinta e cinco anos

não morara ali ninguém. Éramos pois

nós os fantasmas daquele lugar.

 

Era no Inverno e as palavras   repousavam

e de vez em quando ouvia-se um ruído

como de turbilhão

- certo dia um pássaro morreu junto à

porta da entrada, onde havia

uma planta como de antigas eras -

 

e algum tempo depois tive de partir  e olhar

o universo de tudo   de isto e daquilo

 

O oceano e as vozes recriavam-se algures.

 

(Por Manuel Caldeira, para a revista “Meandros” – Londres)

   
   
 
ENVIO MENSAL
 

Se nos pedem um poema, num qualquer dia de Abril

a nós que moramos entre o exílio e o reino

que é como quem diz   entre a hora do lobo e a hora

do  cigarro, devemos responder: “Sim senhor. Vá com Deus.

Lá o terá, em tempo”. Ou, entrando na verdade – entrando

na grande manhã – dizer logo que não

que ultimamente os meses nos aborrecem

que há um som inquietante à hora de deitar

em suma, estamos a Sul

da tal alegria, do tal raminho de hortelã

como quando em criança isso bastava ao velho olhar

de um dia a outro dia: segunda, sexta-feira…

Mas descrevamos os meses, descrevamo-los

como mapa deslindado ou então como simples hipótese

(ou seja, maravilha abandonada, imagem temerosa

que o acaso nos ofertou, coisa feita de somenos

ou de somais realidade legítima ou sinistra): descrevamos

Janeiro, lugar onde há um rasto de sangue numa pedra

ou Fevereiro, o tempo em que a voz disse coisas inúteis

e Março, paraíso dos calendários e dos planetas que rodam

no céu de Abril quando a cinza cobre os campos e as fontes.

Olhemos Maio, pátio lajeado onde a chuva já não tamborila

a não ser que uma certa mão faça deter as horas

e olhemos ainda Junho, e façamos uma pausa

para pensar, por fora do poema, em coisas como uma sala vazia

um rumor de passos atravessando o antigo corredor

e a lembrança dos outros países de mistério

para sempre desaparecidos. E Julho, com os seus vultos imprecisos

com nuvens e ventos e outra quinquilharia poética, que

no entanto prende as horas de realidade ou de abandono

dos minutos de Agosto, lugar verdadeiramente ausente

- que nisto não há simulações, apesar do que se possa conceber

e a cada ondear do poema corresponde uma recordação

ou uma tristeza  ou uma

perda de coisa ou pessoa, de imagem ou reflexo

(esse Agosto das flores mortas sobre rostos de pedra) –

E então chega Setembro, a antecâmara dos finos silêncios

quando uma linha traçada num papel pode representar o adeus

e já se anuncia Outubro, guindaste sobre uma ponte derrocada

para que o Natal se apresente com as amplas figuras do mundo

e os ventos tornados brisas de angústia e de lembrança desaparecida.

E antes ficou Novembro, com plantas que se estendem sobre os corpos

com dias de aniversário que os anos foram devorando, com

algumas velas no mar, alguns animais passeando entre as árvores.

O Novembro dos seres e dos não seres imateriais e algo solenes

por vezes com vinho novo dentro e fora do que se escreveu

e os olhos em amêndoa e plantas exóticas pelos cantos.

 

Os meses têm o seu minuto e o seu perfil

chegam sem que a gente se dê conta e então é tarde demais

eles oscilam por vezes como se o cansaço os apertasse

entre designações ora vagas ora luminosas (como a chama duma vela)

e mal nos distraímos é de novo madrugada.

E eis que já partiram, com seu logro e sua bondade

como vagabundos ao luar, olhando os horizontes exactos

naturalmente reconhecidos, amados    com sua eternidade

 

ou ironia.

 

(Por Luís Vintém/Eduarda Dionísio, para a revista “Abril em Maio” - Lisboa)

   
   
 
CRISTOVAM PAVIA
 

Entre mim e as casas estão as árvores e a ribeira

e milhões de anos feitos para a Lua e as estevas.

Essa ribeira que corre sabe-se lá para onde

talvez p'ra São Mamede, talvez p'ra  esses campos

de Espanha - vida minha! - que jamais conhecerei.

Dionísio teria olhado o vale e a montanha

quando neles se ocultava o rasto de animais

depois desaparecidos. Pensamentos e memórias

entre um olhar e um silêncio, como o odor

do fumo dos lares ao fim da tarde.

Serena é a madrugada, despertando

um vôo de coruja sobre os ombros de quem vela

- pastor ou aguadeiro

homem que na terra coloca a semente do tempo

ou do trigo fremente para os sonhos e os minutos.

 

Algures, junto a uma parede devastada

onde a cal cristaliza a inocência e a perfídia

as abelhas são mais que uma simples razão

do Universo gerando recordação e inquietude

de anos e anos a vir: são o retrato

multiplicado da vida que fugiu

quando a nossa voz íntima se cala. Na terra

marco os dedos e os vestígios

de avós e bisavós, do solitário

cão que me adorou na infância:

o contorno das palavras que escrevi e que despertam

as sombras do futuro e do passado. E lá entre segredos

de amigos, de quimeras, das ofertas

que nem ousamos preferir

- gramínea, barco, gazela, primavera -

e que por isso são nossas

mais que tudo o que foi

o nosso quinhão misericordioso

hei-de lembrá-las sempre, como puras

e felizes sombras sobre o rio

Sobre as casas que vi como as imagens

 

que tive    e que inventei.

 

(Por João Mendonça, para Supl. Cult. “Distrito de Portalegre”)

   
   
 
O VENTO
 

No começo era o vento:

o vento da chuva, o vento do sol

o vento só vento ou não mais do que um sopro

na cara no corpo ou à esquina das casas

 

O vento das palavras e o vento que se lembra

ou que se esquece e nos faz pensar

em manhãs de vento, do vento que vem

de noite e atormenta

e nos rouba de súbito

todas as memórias, todos os minutos.

 

Vento

das árvores e dos desejos

vento vulgar vento da solidão

agora já só vento de vazios ou de presenças idas

vento duma ave que passa

vento duma voz que já se não ouve

vento que se ouve ao longe

vento dos anos vento nas mãos que se não tocam

vento de tudo o que morreu.

 

Vento que não existe

que nunca existirá

vento das folhas que ondeiam no ar

vento das folhas dos livros nunca escritos

vento que pára de repente e cresce em nossa volta

e nos ensina os pontos cardeais

e nos faz erguer o rosto e olhar o horizonte

vento de coisas ao vento de momentos tão nossos

vento do mar na nossa cabeça inclinada.

 

Vento que sabe nascer nas florestas

nos desertos e nas ruelas

vento que sabe matar nas cidades

vento que corre em todo o tempo em todo o mundo

vento que é só remorso

só um sinal

 

só o sinal que jamais tivemos

de vento que rola no nosso perfil desfeito.

 

(Por Pedro Salvado, para a revista “Sombras de vozes”– Gardunha, Castelo Branco)

   
   
 
COMO EM FOLHA ESTRANGEIRA
 

 

          “A liberdade umas vezes é azul outras amarela, às vezes visível e outras
invisível” - Georges Schéadé

 

                                                                                                                   

Senhora vossa excelência madame chegue aqui ao pé de mim

quando tu me olhas o meu ouvido que há tantos anos esqueci

o meu ouvido esquerdo se assim o digo o do meio aquele mesmo do fundo

o que amei mais do que posso pensar o tal que me fazia tanta falta

ou é dos meus olhos já agora o outro do outro lado

aquele meio assombrado um lábio ou talvez o nariz

uma espécie de abalo de terra um braço um dedo mindinho mais que não fôsse

a estranha combinação entre um ponto cardeal e uma frase assombrada.

Então como é que vai ser?

 

Mas como dizia madame minha senhora sua relambona de firmes convicções

Quero eu dizer há por perto uma estrela um caco de barro um encantamento

Pois não será assim ó tu a quem julguei como Job na primeira aparição

Senhora aqui entre nós por entre os ramos sentem-se figuras um pouco sumidas

E o teu contentamento o teu digamos medo admiração digamos mesmo surpresa

Calada senhora caladinha é que tu devias estar

E mesmo que fôsse frente ao mar e então e isso que é que tinha

As coisas negras madame não se acoitam em folhas em trejeitos em limites menores

Já devias sabê-lo desde que Hefestos passou para o lado onde tudo se reconvertia.

 

Fatalmente senhora isto teria de acabar mal bem mal

Como madame você talvez saiba os destinos ora fecham ora acabam

Ora abrem e se suspendem no ar como uma lamentação intempestiva

E eles sabem compreendem concebem mesmo disfarçadamente

Que um pedaço de carne um bocado de sangue um rasgo de veias vibrantes

Ouvem-se ao crepúsculo. Como se ouvem, essas palpitações!

Um impulso vem de cima, dizem-me algures

Outro impulso vem de baixo, se é que não se enganaram

Segue-se o norte

E depois o sudoeste e provavelmente o ainda mais ao lado

E - quereis acreditar - a solução é fingir que se não vê

Que nem há estrela, nem nada que se pareça com madeira, nem sequer

Palavras que um qualquer esqueceu e que procura esconder atrás das costas.

 

Madame senhora ó linda virgem das vestes arrepanhadas

O melhor é esquecermos tudo e passarmos brandamente para o lugar vazio

O melhor é verdadeiramente colocar a mão sobre as palavras amadas

Palavras isso sim postas num papel, espalhando-se sobre a nossa língua

A língua das palavras dos gritos a língua língua dos mitos e dos medos

Pois e agora como é que eu o vou encontrar?

 

Disso não há em parte alguma

Disso não se conhece senão a silhueta

Disso não há nem menção nem perfil

E muito menos um gesto a esperança um arrepio.

Senhora querida madame ó vulto que desenho em mim em ti com emoção com fúria

Com pequenos amuos com prováveis excelentes intenções

 

Veias minhas traços meus de sangue sem que o soubesse mais estranhos

que o sol. 

   
   
 
ARS MAGNA
 

A arte

contemporânea - ou seja, a que com independência

de espírito se estabelece como tal - tem

o selo de quem ama de facto os traços, as cores e as

inflexões matéricas que nela se contêm

e, por isso, os cria fogosa ou serenamente.

 

(Aqui um esboço

de Beckman ou

de Lyle Carbajal ou mesmo

uma aguarela incompleta de Cézanne

ou até uma folha semi-queimada

semi-rasgada de Wolfli, o que no seu

quarto do manicómio onde residiu uma vintena

de anos, acendia velas de estearina a Santa Realidade

que para ele

era a enfermeira que o amparava no seu desgosto).

 

Esses que a fazem

por um imperativo da força que lhes sai do corpo

e da sua organização em ossos e pele,

músculos, cartilagens e sentimentos - e que depois

cristaliza em quadros, peças escultóricas

e elementos mistos - sabem que isso em seguida

se repercute em nós e faz nascer

outras cores e traços e substâncias

vitais rodeados de palavras e de realidades

por vezes raras e acrescentadas. Coisas

 

que umas vezes em cima outra vezes em baixo

do mundo que as fundamenta

são como um rosto convulso

ou inteiramente apaziguado

 

entre as mãos de quem rememora

o tempo vivo e desfeito.

 

 (Por Amadeu Baptista, para a revista “Saudade” - Amarante)

   
   
 
O SOLITÁRIO
 

 

                           a Wilfred Wobber

 

Um esforço que faça

transformar os mortos

arquitectos dos dias

como as luas deslizantes

 

Nunca me deu

resultado: a treva era favo

igualzinho à febre

de árvores e pedras

e milhares de frases

se acumulavam

deslumbradas. Nunca escrever pude

coisas assim como “à tua janela, fatigado

ir aos cumes supremos”, “só, à margem da tarde

ou, melhor ainda “o que nunca se vai sem nunca

ser visto”. Seria maldição? Mas para isso

era necessário

consentir-me momentos

como os semelhantes

ao “caminho subindo entre ervas altas” (Renoir)

ou a neblina em Setembro.

 

Parto muito surpreso. A polpa de meus ombros

atravessa a argila

que o tempo reencontra

purificada. Em todas as cidades

serei erva seca

sagrado como

mijo de gato.

 

Tinha tudo dentro. Antecipo-me

e afago

antes do mergulho

uma fina cabeça negra

 

que nunca me desiludiu.

 

(Por Alex Centeno, para a revista “Carré Rouge” – Paris)

   
   
 
EVOCAÇÃO
 

Foste a palavra és a palavra

Mas para lá da palavra está a silhueta

a figura completa e incompleta

além das velhas salas da casa do jardim

A voz de inverno de verão

a voz nas manhãs de outono quando um vento súbito bulia

nas ramagens maiores que o meu desconhecimento

A tua mão no meu ombro uma inquietude

pelo menino pequeno tão deserto tão vago

a criança primordial dispersa pelos anos

talvez como um soluço

E era tão frio o corredor naqueles anos

- a luz que chegava vinha nas tuas mãos -

A tua figura um pouco enevoada como a lembro

Mais tarde percorrendo os muitos domingos a vir

Fazias bolos rias choravas

um dia te vi chorar com as mãos entrelaçadas

por um desgosto qualquer uma morte na família

Um dia te vi cosendo serenamente no clarão da janela

Mãe

onde estão onde estão os caminhos de outrora

o Pai os parentes a cabrinha branca

o teu lampejo fortuito de um momento de amargura

Idos como flocos de neve num horizonte cerrado

O teu vestido que nas feiras te dava luzimento

e o pão que barravas cuidadosamente como um trabalho árduo

erguendo o natural de um momento

Na noite de ruídos recordo o teu olhar

longínquo como porta que se fecha sem parar

 

próximo como uma toada um afago um sereno minuto.

 

(Por J.O. Travanca-Rego, para a revista “Caia” da CMP Elvas)

 

 

 NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTACTO: nicolau49@yahoo.com

 

 

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