REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 18

 

 

Como o Jorge morava na Rua da Imprensa Nacional, perto do meu local de trabalho, nos museus da Politécnica, víamo-nos com alguma frequência. Sobretudo na Lira d'Ouro, um dos mais antigos restaurantes da zona, frente à igreja de São Mamede, mais raramente na Nossa Casa, outro restaurante, mais despretensioso, quase ao lado do casarão cor-de-rosa onde residia. O Jorge era sensual, gostava de boa comida e de cozinhar, uma vez veio à sala de visitas mostrar o cheiroso coelho que ele mesmo tinha levado ao forno, e convidar-me para jantar.

Foi neste ambiente bem corpóreo, na Lira d'Ouro, que o encontrei pela última vez, há uns meses. Fiquei chocada com a sua magreza, olheiras e aspeto escuro da pele, que associo a quem sofre de insuficiência cardíaca. Recordou-me logo o Prof. Sacarrão, personagem conhecida no bairro, não só por ser naturalista no Museu Bocage, como por frequentar, enquanto existiu, a tertúlia da Escolar Editora, na Rua da Escola Politécnica. A minha última imagem dele foi a mesma: rosto escurecido, por imperfeitamente oxigenado.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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MARIA ESTELA GUEDES

 

Jorge Lima Barreto

O ESPÍRITO DA VANGUARDA

Foto: Ed. Guimarães                                                    

 

Colhe-se da leitura de outros amigos, que os problemas cardíacos que estou a supor no Jorge tinham caráter afetivo. O peso e a mágoa de todos os que se sentem abandonados, num país que gera artistas de fulgor internacional, que neles e em todos assenta as bases da governação (como pensar e governar um país sem arte, sem cultura?), mas que não sabe estimulá-los, reconhecê-los, e sobretudo promover a sua obra junto da maioria das pessoas. O fosso entre a arte e a população é incomensurável. A um certo nível intelectual e de execução técnica, a audiência reduz-se drasticamente, porque não foi preparada, logo na escola mais básica, para assimilar valores estéticos da modernidade. Na generalidade, a escola e a educação familiar só transmitem os valores estéticos da representação, do estabelecimento de referências claras entre a arte e a imagem que temos da realidade. Por isso o isolamento pode assumir contornos dramáticos: não se trata tanto de o artista se sentir incompreendido, sim injustiçado pelo silêncio. Em Portugal, a arte, no nível de experimentação em que a praticava o Jorge, não tem interlocutores. Como lhe escreve do Brasil E.M. de Melo e Castro,  «tu sabias muito bem que todos estamos sós e esquecidos, a olharmos uns para os outros, uns tantos muito poucos, cada vez menos, a resistir ao desgaste que a mediocridade do tempo e das pseudo-pessoas-circulantes nos querem impor» (1)

O Jorge era meu amigo, disse que me referia na sua tese de doutoramento. Não sei, ainda não tive oportunidade de a ler. Nessa altura, a da citação, ainda não nos conhecíamos pessoalmente. Só vim a travar relações com ele mais tarde, talvez durante as andanças com o Ernesto de Sousa. O CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra), por essa via, foi um ponto de contacto, ao tempo em que por ele acudia a pintora Túlia Saldanha. Porém a casa do Jorge era também ela uma instituição cultural, onde se encontravam artistas de diversas áreas, livros para ler, discos para ouvir, vídeos para ver, numa época em que o vídeo era ainda um suporte vanguardista, sem expressão comercial junto do grande público. E instituição artística, onde alguns privilegiados, como eu, recebiam solicitação para assistir aos ensaios. Reporto-me aos anos 80, com os Telectu: o Jorge Lima Barreto e o Vítor Rua em apogeu, criando música minimal-repetitiva, sons novos e muito delicados para o meu ouvido alienígena. O Vítor Rua (1) expõe muito bem esse lado pedagógico do Jorge, que fez dele um mestre de várias gerações, uma pessoa capaz de rasgar novos horizontes a quem vivia no espaço da arte em geral.

Gosto muito da música deles. Ao tempo eu tinha umas intervenções na Rádio e adorava os sons estranhos que me iam chegando na maior parte, direta ou indiretamente, através do programa «Musonautas», de Jorge Lima Barreto. Foi o caso da minha maior paixão musical da altura, Laurie Anderson. A Rádio hoje já não exerce o magistério de programas como esse, divulgando a música mais de vanguarda que havia. A vanguarda, ao contrário da música na moda, pode não ser agradável ao ouvido, nem bela, no sentido corrente.

Recordo, em casa do Jorge Lima Barreto, um ensaio a que também esteve presente o Rui Reininho, já então fazendo sucesso como vocalista dos GNR, após o projeto Anar Band com o Jorge. Estas bandas estavam próximas e permutaram músicos, caso de Vítor Rua, que saiu dos GNR para os Telectu. Nessa tarde de ensaio, vimos um vídeo que fazia parte da criação multifacetada dos Telectu, e sobretudo vimos os objetos reais de que partia a máquina de filmar: figuras pequenas, salvo erro de plasticina, à maneira de soldadinhos de chumbo. A arte de vanguarda é híbrida, trabalha com vários registos, tende para a obra total, e chega a criar o seu suporte, caso do papel. O Jorge usava o papel milimétrico em que anotava a música noutras dimensões estéticas. Foi esse o contributo dos Telectu na primeira caixa Pipxou, obra de arte coletiva organizada por mim e pelo Fernando Camecelha, com direção do José Ernesto de Sousa. Não era apenas músico, se bem que a música o defina: era um artista plástico, e ensaísta, claro. Guardo um presente dele na minha pequena pinacoteca: um gato sobre folha A4, desenhado com bic de várias cores.

Nessa tarde em que também estava o Rui Reininho, o Jorge experimentava algo de novo, ele usava instrumentos fora do comum. Qualquer coisa à maneira de ferrinhos, de que conservo sobretudo a memória do tinido metálico. O Rui Reininho andava por essa época interessado nas vozes dos animais. Falou das baleias, e eu disse-lhe que os ornitólogos e os herpetologistas começavam a gravar o canto das aves e das rãs. De vez em quando, as revistas da especialidade faziam-se acompanhar por CDs. Ele parecia bem informado dos diferentes cantos, que hoje todos conhecemos, pois já saltaram das revistas da especialidade para os documentários da televisão. O Rui Reininho tira partido brilhante das pequenas coisas da vida, como essas - o canto dos pássaros, o coaxar das rãs.

Excelente grupo de artistas que o Jorge Lima Barreto orientava nas direções anárquicas, transgressoras, e por isso criadoras da arte, sem talvez dar-se conta, e sem nós sentirmos o peso do seu dedo indicador. Era um magistério de estar assim na vida, como um exemplo, o de quem trata de outra coisa, como exibir os dotes de cozinheiro que perfuma a sala de música com uma travessa de coelho fumegante, acabado de tirar do forno. O magistério artístico é esse exemplo discreto, feito de doçura; quando se impõe à força, não passa de doutrina e prepotência.

   
 

(1) Ver dossier de Jorge Lima Barreto, em:
http://www.triplov.com/cyber_art/jorge-lima-barreto/

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

 

 

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