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Como o Jorge morava na Rua da Imprensa Nacional, perto do
meu local de trabalho, nos museus da Politécnica, víamo-nos com alguma
frequência. Sobretudo na Lira d'Ouro, um dos mais antigos restaurantes da
zona, frente à igreja de São Mamede, mais raramente na Nossa Casa, outro
restaurante, mais despretensioso, quase ao lado do casarão cor-de-rosa
onde residia. O Jorge era
sensual, gostava de boa comida e de cozinhar, uma vez veio à sala de
visitas mostrar o cheiroso coelho que ele mesmo tinha levado ao forno, e
convidar-me para jantar. Foi neste ambiente bem
corpóreo, na
Lira d'Ouro, que o encontrei pela última
vez, há uns meses. Fiquei chocada com a sua magreza, olheiras e aspeto escuro
da pele, que associo a quem sofre de insuficiência cardíaca. Recordou-me
logo o Prof. Sacarrão, personagem conhecida no bairro,
não só por ser naturalista no Museu Bocage, como por frequentar,
enquanto existiu, a tertúlia da Escolar Editora, na Rua da Escola
Politécnica. A minha última imagem dele foi a mesma: rosto escurecido,
por imperfeitamente oxigenado. |
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Colhe-se
da leitura de outros amigos, que os problemas cardíacos que estou a
supor no Jorge tinham caráter afetivo. O peso e a mágoa de
todos os que se sentem abandonados, num país que gera artistas de fulgor
internacional, que neles e em todos assenta as bases da governação (como
pensar e governar um país sem arte, sem cultura?), mas que não sabe
estimulá-los, reconhecê-los, e sobretudo promover a sua obra junto da
maioria das pessoas. O fosso entre a arte e a população é
incomensurável. A um certo nível intelectual e de execução técnica, a
audiência reduz-se drasticamente, porque não foi preparada, logo na
escola mais básica, para assimilar valores estéticos da modernidade. Na
generalidade, a escola e a educação familiar só transmitem os valores
estéticos da representação, do estabelecimento de referências claras
entre a arte e a imagem que temos da realidade. Por isso o isolamento
pode assumir contornos dramáticos: não se trata tanto de o artista se
sentir incompreendido, sim injustiçado pelo silêncio. Em Portugal, a
arte, no nível de experimentação em que a praticava o Jorge, não tem
interlocutores. Como lhe escreve do Brasil E.M. de Melo e Castro, «tu sabias muito bem que todos estamos sós
e esquecidos, a olharmos uns para os outros, uns tantos muito poucos,
cada vez menos, a resistir ao desgaste que a mediocridade do tempo e das
pseudo-pessoas-circulantes nos querem impor» (1)
O Jorge era meu amigo, disse que me referia na sua tese de
doutoramento. Não sei, ainda não tive oportunidade de a ler. Nessa
altura, a da citação, ainda não nos conhecíamos
pessoalmente. Só vim a travar relações com ele mais tarde, talvez
durante as andanças com o Ernesto de Sousa. O CAPC (Círculo de Artes
Plásticas de Coimbra), por essa via, foi um
ponto de contacto, ao tempo em que por ele acudia a pintora Túlia Saldanha. Porém a casa do Jorge era também ela uma instituição
cultural, onde se encontravam artistas de diversas áreas, livros para
ler, discos para ouvir, vídeos para ver, numa época em que o vídeo era
ainda um suporte vanguardista, sem expressão comercial junto do grande
público. E instituição
artística, onde alguns privilegiados, como eu, recebiam solicitação para
assistir aos ensaios. Reporto-me aos anos 80, com os Telectu: o Jorge
Lima Barreto e o Vítor Rua em apogeu, criando música minimal-repetitiva,
sons novos e muito delicados para o meu ouvido alienígena. O Vítor Rua
(1) expõe muito bem esse lado pedagógico do Jorge, que fez dele um
mestre de várias gerações, uma pessoa capaz de rasgar novos horizontes a
quem vivia no espaço da arte em geral.
Gosto muito da
música deles. Ao tempo eu tinha umas intervenções na Rádio e
adorava os sons estranhos que me iam chegando na maior parte, direta ou
indiretamente, através do programa «Musonautas», de Jorge Lima Barreto.
Foi o caso da minha maior paixão musical da altura, Laurie
Anderson. A Rádio hoje já não exerce o magistério
de programas como esse, divulgando a música
mais de vanguarda que havia. A vanguarda, ao contrário da música na
moda, pode não ser agradável ao ouvido, nem bela, no sentido corrente.
Recordo, em casa do Jorge Lima Barreto, um ensaio a
que também esteve presente o Rui Reininho, já então fazendo sucesso como vocalista dos
GNR, após o projeto Anar Band com o Jorge. Estas bandas estavam próximas e permutaram músicos, caso de Vítor
Rua, que saiu dos GNR para os Telectu. Nessa tarde de ensaio, vimos um
vídeo que fazia parte da criação multifacetada dos Telectu, e sobretudo
vimos os objetos reais de que partia a máquina de filmar: figuras
pequenas, salvo erro de plasticina, à maneira de soldadinhos de chumbo.
A arte de vanguarda é híbrida, trabalha com vários registos, tende para
a obra total, e chega a criar o seu suporte, caso do papel. O Jorge
usava o papel milimétrico em que anotava a música noutras dimensões estéticas. Foi esse o contributo dos Telectu
na primeira caixa Pipxou, obra de arte coletiva organizada por mim e
pelo Fernando Camecelha, com direção do José Ernesto de Sousa. Não era
apenas músico, se bem que a música o defina: era um artista plástico, e
ensaísta, claro. Guardo um presente dele na minha pequena pinacoteca: um
gato sobre folha A4, desenhado com bic de várias cores.
Nessa tarde em que também estava o Rui Reininho, o
Jorge experimentava algo de novo, ele usava instrumentos fora do comum.
Qualquer coisa à maneira de ferrinhos, de que conservo sobretudo a
memória do tinido metálico. O Rui Reininho andava por essa época interessado nas vozes dos animais.
Falou das baleias, e eu disse-lhe que os ornitólogos e os herpetologistas começavam a gravar o canto das aves e das rãs.
De vez em quando, as revistas da especialidade faziam-se acompanhar por CDs.
Ele parecia bem informado dos diferentes cantos, que hoje todos
conhecemos, pois já saltaram das revistas da especialidade para os
documentários da televisão. O Rui Reininho tira partido
brilhante das pequenas coisas da vida, como essas - o canto dos pássaros,
o coaxar das rãs.
Excelente grupo de artistas que o Jorge Lima Barreto
orientava nas direções anárquicas, transgressoras, e por isso criadoras da arte, sem
talvez dar-se conta, e sem nós sentirmos o peso do seu dedo indicador.
Era um magistério de estar assim na vida, como um exemplo, o de quem
trata de outra coisa, como exibir os dotes de cozinheiro que
perfuma a sala de música com uma travessa de coelho fumegante, acabado
de tirar do forno. O magistério artístico é esse exemplo discreto, feito
de doçura; quando se impõe à força, não
passa de doutrina e prepotência. |
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de
Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011. TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |