REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 18

   

1. Intróito

No século XIII, a humanidade não se conhece a si mesma. O Planeta é um conjunto de pequenos universos fechados que desconhecem a maior parte das terras e dos mares.

Sob o ponto de vista cosmográfico, conhecimentos hoje tão banais como a esfericidade da terra eram apenas aceites por uma parte das pessoas mais cultas da época.

Enquanto os Genoveses, desde muito cedo, começaram a abrir rotas no Mediterrâneo para Oriente, outros - “Italianos”, Catalães e Portugueses - começavam a progredir para Ocidente.

Entre 1329 e 1336, nós, quer por iniciativa da Coroa fosse por resolução do almirantado, organizámos uma primeira expedição que atingiu o arquipélago das Canárias, visitando, pelo menos, Lanzarote e Fuerteventura com as pequenas ilhas que as envolviam. As provas deste 1,º movimento em que interviemos estão abundantemente comprovadas, em termos do século em que ocorreram (1).

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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João Silva de Sousa

A Expansão portuguesa

no século XV

                                                                  
   
 

Em aditamento, tenhamos em conta que, em 1345, como forma de protesto contra a concessão de Eugénio VI [1342-1352], D. Afonso IV alegava que (2): 

“Vendo nós que as mencionadas ilhas [crismadas em Fortuna, ou Afortunadas] estavam mais perto de nós que de nenhum outro príncipe, e que éramos nós quem mais facilmente as podia subjugar, demos a este caso a nossa atenção; e desejando pôr em efeito esse cuidado, mandámos gentes nossas com alguns navios para explorarem as condições daquela terra, as quais, tendo chegado às ditas ilhas, tomaram pela força assim homens como animais e outras coisas que, com grande alvoroço, trouxeram a nossos reinos” (3)

Nova expedição tomou lugar, em 1341, sob as ordens de D. Afonso IV. Foi aos Genoveses que coube o mérito principal. No entanto, estas viagens marcaram o começo da acção oficial dos Portugueses no Mar Oceano.

Ainda antes, e dos princípios da nossa monarquia em diante, foram vários os tipos de vasos de mar que, capitaneados pelos Portugueses, se dirigiam para a actividade piscatória para o Mar do Norte, costas da Escandinávia, muito provavelmente acostando ao Canadá e a América do Norte e, ao Sul, à costa Africana, pelo Atlântico, de Norte a Sul, não esquecendo o Algarve e o Norte de África. Os marinheiros não regressavam com notícias das terras por onde passavam, aportavam, onde pescavam… e o termo “descoberta” não pôde ser usado, com a mesma propriedade, como quando, a partir das Canárias, se regressava com indicações concretas da localização das mesmas, com as descrições, mesmo que parciais, das existências e do que era, entretanto, dado ver e descrever ao marinheiro.

De iniciativa estatal ou particular, multiplicam-se as viagens. Até 1443, quem quer que o desejasse podia empreender viagens de pirataria, de comércio, ou de exploração geográfica a Marrocos ou ainda à costa atlântica da África: o “Estado” cobrava o quinto das mercadorias, desde cedo um direito real, inalienável e imprescritível do soberano.

Podemos dizer que os principais motivos que inspiraram os dirigentes portugueses (Reis, Príncipes, Nobres, Mercadores) foram o desejo de se apoderarem do ouro da Guiné e a procura de especiarias orientais. Outro facto relevante consistiu em ser Portugal um reino unido durante todo o século XV, livre da guerra civil, na quase totalidade da centúria. Pelo contrário, durante quase todo o século, os demais países europeus ocidentais estavam convulsionados por guerras civis, ou com o estrangeiro, como a luta ainda feroz contra os Mouros, que se verificava em Castela, apenas concluída em 1492, com a tomada do Palácio de Alhambra e do Reino de Granada, e a Guerra dos Cem Anos entre Franceses e Ingleses, abrandadas as dissidências em 1453.

Com a chegada ao Golfo da Guiné, aumentaram as dificuldades de navegação e de contacto com os nativos. Por um lado, havia que aprender os meios de comunicação mais directos, além de nos encontrarmos em presença de civilizações organizadas, de influência muçulmana.

Estas sociedades regulamentadas, armadas de flechas envenenadas e de outras artimanhas, dispunham de diversos meios de defesa e de ataque. O clima inóspito com paisagens exóticas trazia também múltiplas ciladas.

Para nós, a expansão representava a continuação da luta contra os mouros. Saliente-se ainda o facto de Portugal beneficiar de uma situação geográfica que lhe facilitou a experiência marítima, além de estar politicamente unificado com fronteiras definidas há mais de um século e com recursos naturais e humanos para as empresas em vista e que podiam ir do mero reconhecimento à luta acesa, passando pelo comércio consentido.

 

***

 

Em termos globais, Portugal e a Europa estavam no século XV completamente isolados do resto do mundo. Com o decorrer do tempo, saímos desse isolamento e transformámo-nos no motor da expansão europeia.

De facto, todo este processo representou uma transformação na mentalidade ocidental. A Europa medieval encontrava-se, no princípio do século XV, dominada pelo princípio da territorialidade e cada centro urbano vivia sobre si mesmo.

Apesar dos múltiplos contactos comerciais, com outras áreas económicas, o conhecimento do que se passa nos demais continentes, é quase sempre escasso e incorrecto.

Funcionários régios, embaixadores, almocreves, peregrinos, mercadores, marceiros, recoveiros, os estudantes universitários eram os indivíduos que se deslocavam entre os núcleos habitacionais e para e do Estrangeiro.

A visão do mundo e os hábitos mentais dos habitantes de várias áreas mostravam-se inadequados para compreender as crenças e os modos de vida dos outros.

À medida que as cidades se iam desenvolvendo, do séc. XIII em diante, gera-se uma intensificação progressiva dos contactos entre elas. Aqui, a corte do monarca, os clérigos (sobretudo os cónegos) e os universitários, ainda os mercadores… multiplicam também os contactos entre si. São ligações regulares que se estabelecem através dos comerciantes das cidades aragonesas e das Republicas Italianas com o mundo islâmico e, por intermédio deste, com o mundo oriental e africano.

Contudo, a população campesina e a trabalhadora das cidades, não fazem a mínima ideia do que se passa para além do horizonte das muralhas da sua cidade e mesmo da sua aldeia.

Para o homem europeu prevalece a ideia da compartimentação do mundo, formado a partir do centro, onde o sujeito habita e que só pode atingir um raio limitado, se ele não se deslocar para lá do âmbito territorial dominado pela respectiva comunidade.

O trânsito de peregrinos, clérigos, mercadores e embaixadores permitiu constituir um arsenal de informação que se foi acumulando ao longo de séculos, embora o facto de eles viajarem quase só dentro da Cristandade permitiu compreender por que é que, no final do século XIV, se conhecia ainda tão mal o resto do globo. Os relatos impediram também uma descrição objectiva dos seus costumes, levando, por vezes, a distorções ou interpretações erradas.

A visão limitada e hierática do mundo representou, por vezes, um cenário clerical e teológico que correspondeu a uma tentativa de compreensão global do mundo. Embora a sua fórmula exacta não fosse partilhada por todos os sectores da sociedade medieval, não deixou de considerar-se como extremamente significativa dos pressupostos que presidiam a uma concepção do mundo, tipicamente medieval e que gozava do prestígio do saber clerical, o mais amplo, o mais coerente e o mais respeitado de todos os saberes medievais.

Um exemplo flagrante é a famosa CARTA DE EBSTORF, desenhada em meados do século XIII e guardada, durante centúrias, no mosteiro feminino que lhe deu o nome (Ver Fig. 1). Trata-se de um exemplo de um mappa-mundi (uma carta geográfica europeia medieval, semelhante ao mapa Hereford, feito por Gervase of Ebstorf, que era possível ser o mesmo que Gervase de Tilbury (4). O mapa foi encontrado num convento em Ebstorf, no Norte da Alemanha, em 1843 (5). No centro está Jerusalém e há um texto em volta do mapa, o qual inclui descrições de animais, a criação do mundo, definições de palavras e uma explicação de como este se acha dividido em três partes. O mapa incorpora quer a história pagã, quer bíblica.

 
Esta carta pode ler-se da seguinte maneira: a área cristã coincide, do ponto de vista clerical europeu, com a área ocupada pela igreja católica, a única a quem Deus confiou um papel salvador nos destinos de toda a humanidade, a única que é protegida por si. Toda esta porção de terra onde reina a verdadeira ordem social, ou seja, onde os homens se sujeitam a uma autoridade legítima, cujo poder vem de Deus e que, através dele, podem procurar a salvação eterna. O seu autor pressupunha a existência de vários deuses, um para cada religião, quando, Deus é uno. A Sua unicidade invocada pelas religiões admite, por isso mesmo, a existência de um só Deus para todo o Universo (Cristão, Muçulmano e Judaico).

Fig. 1 (Reprodução do Mapa de Ebstorf)

 

Fora deste espaço, reina o pecado, a desordem social, a subversão, o caos, onde até a própria natureza se encontra também desordenada. Aqui, os homens são cruéis, não cumprem regras, são selvagens, desprovidos de fé encontrando-se fora da sua vida moral. Também neste espaço não dominado pela igreja cristã existem mais animais ferozes do que no espaço civilizado: os monstros aparecem por toda a parte, onde é mais comum desencadearem-se tempestades e cataclismos inesperados.

Neste mapa, encontramos ainda perto das fronteiras da Cristandade, os lugares sagrados da Palestina, santificados pela presença do Salvador.

Apesar da desordem cósmica que prevalece para lá do mundo cristão, Deus preside a tudo o que existe sobre a Terra. Por este facto, a sua figura é apresentada de braços abertos.

Como pode constatar-se, ainda no mesmo mapa, o centro do seu corpo está na cidade de Jerusalém, onde se situa o seu sepulcro; a cabeça ocupa o ponto mais afastado do Extremo Oriente, junto ao paraíso terrestre; a mão esquerda está sob o aro oceânico a Norte e a mão direita sob o mesmo aro a Sul.

Os pés mergulham no Oceano Atlântico, para além da Península Ibérica.

A sobreposição da figura de Cristo sobre o orbe terrestre significa que nada do que existe à face da terra lhe é alheio e que tudo acaba por concorrer para a sua glória e para o cumprimento do destino que Ele quer para a humanidade.

Tudo isto se ensina nas escolas monásticas e das catedrais, numa síntese de cultura antiga com a cultura cristã.

Na interpretação destas ideias, associa-se uma visão simultânea do espaço e do tempo, do papel da Igreja na História e da sua implantação no mundo terrestre. Deste modo, considera-se que tudo tem um lugar próprio e uma função determinada na ordem estabelecida por Deus, prevalecendo a visão teológica do mundo.

   
 
 1. O Medo do Mar
 

O Homem da Idade Média é preferentemente terrestre.

Apesar do grande número de recortes de terra e da elevada quantidade de pescadores e navegantes, a grande maioria da população europeia tem medo da água e, particularmente, da sua desconhecida extensão.

Quando se desenvolveram os centros urbanos, os mercadores depressa descortinaram que o transporte mais seguro, mais rápido e com menos custos para mercadorias por grosso, fazia-se por via marítima ou fluvial.

Todavia, pescadores e marinheiros faziam normalmente vida à parte, formando comunidades distintas dos camponeses, e, só muito lentamente, os seus conhecimentos começaram a tornar-se património comum da cultura habitual.

Para o homem europeu, o oceano era um lugar perturbador, onde o reino da água excluía a vida humana. O homem podia percorrer os rios, navegar nos mares interiores, mas quando as águas se estendiam a perder de vista, até distâncias completamente desconhecidas, como o caso do oceano Atlântico, então o mar transformava-se no reino de todos os monstros:

 “Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Neptuno furibundo;
Agora a ver parece que deciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Áquilo queriam
Arruinar a máquina do Mundo!
A noite negra e feia se alumia
Cós raios em que o Pólo todo ardia!”

(Luís de Camões, Os Lusíadas, C. VI)
 

Segundo Gaius Plinius [23-79], naturalista romano, autor da Naturalis Historia, a vida animal, no mar, não estava sujeita à ordem, mas à confusão e ao caos. A água era, entre os quatro elementos da natureza, o  que tem a virtude de trazer a fecundidade à terra e, no baptismo, de lavar o homem do pecado. Torna-se, porém, quando acumulada em quantidade excessiva, numa grande massa amarga, com uma superfície lisa, ou encrespada por tempestades que levantam ondas como montanhas, mudando de cor conforme os ventos, como diz o mesmo autor e o secunda Camões. Por tudo isto, o oceano é o lugar onde o homem não pode subsistir. Ao presente facto acrescenta-se a conotação negativa dada ao lugar onde o Sol se põe, associado que fica ao reino da morte, por oposição ao ponto onde ele nasce, local onde a começa a vida.

Desta feita, navegar em direcção contrária à terra, era, pois, como tentar viajar em direcção à morte e para lá dela. É desta concepção que advém o enorme horror à navegação para Ocidente. Na verdade, navegar ao longo da costa para Sul era uma grande aventura, pois o pensamento do homem focalizava o princípio de que aí o calor era tão grande que o mar fervia como uma marmita posta ao lume.

 

 Navigare----------Navigium----------Navigator(em)
Navegar ----------- Navio ----------- Navegador

 

Por outro lado, tomar a rota do Ocidente seria arriscar-se a penetrar no reino dos mortos e ir aí encontrar as ilhas onde eles sofriam o castigo eterno, pelos males que haviam cometido no mundo dos vivos, ou serem recompensados pelo bem que tinham praticado em vida. Como exemplo, refira-se que a Cristóvão Colombo, já no final do século XV, foi necessário sentir-se pessoalmente inspirado por Deus, para empreender tão grande viagem.

No século XV, as navegações portuguesas ao longo da costa africana respeitavam as concepções medievais acerca do mar e do mundo. Tais ideias deviam estar difundidas entre indivíduos de cultura média, formados nas escolas onde predominava a cultura clerical. Não se sabe, porém, se seriam partilhadas por gente habituada ao mar, que fazia da pesca ou do comércio marítimo, o seu modo de vida. A aventura aqui teria como base a indiferença.

Na verdade, verificou-se, através de várias obras, anteriores ao século XIII, que os povos mais em contacto com o mar reflectem conhecimentos mais exactos e menos preconceituosos acerca da terra firme e das ilhas do oceano, de que os mestres responsáveis pelo ensino vulgar da geografia e da cartografia.

Dada a grande extensão do litoral na época medieval, os contactos da gente das áreas costeiras com o Atlântico são consideráveis. Muitos extraem do mar os alimentos fundamentais da sua subsistência como o sal e o peixe, ou, por outro lado, tiram proveito dos conhecimentos da navegação para a prática do comércio.

Saliente-se, porém, igualmente, a violência praticada pelos povos da Normandia que atacaram as costas marítimas portuguesas nos séculos X e XI. Vieram nos seus barcos, imortalizados por odes à árvore, pela comparação, metáfora e alegoria. Em alguns poemas da Edda Poética, do século XIII: no Lokasenna, estrofe 42, parece ser uma floresta que separava o mundo dos deuses do dos gigantes. No início do Volundarkiòa, é o bosque sobrevoado pelas mulheres-cisnes. Noutros, trata-se de uma floresta atravessada por dois guerreiros a caminho da batalha, ou é um mensageiro que tem de percorrer o bosque negro. Surge, porém, igualmente como um dos territórios oferecidos a Gunnar. Por outro lado, um Kenningar é uma perífrase característica da poesia skáldica. Há poetas que utilizam referências como: governador/senhor da floresta (a árvore); as algas da encosta da colina, ou seja a floresta; o carvalho do anel do engano, isto é, o navio; o carvalho das ondas, de novo, o navio; e, ainda, com este significado, a longa árvore do mar e a terrível árvore fria da onda, o barco (Hélio Pires).

Ainda pelos piratas sarracenos, nos séculos XI a XIV, que se transformaram em obstáculos ao desenvolvimento destas actividades, mas que contam no Alcorão com metáforas idênticas.

No século XIII, verifica-se o repovoamento intensivo do litoral e a intensificação da pesca, resultante da diminuição da pirataria muçulmana, depois da destruição dos seus portos de abrigo no Algarve, com a conquista portuguesa, terminada em 1249. Nas últimas décadas do século XIII, houve, na costa próxima de Lisboa, intensos combates marítimos (6).

Segundo historiadores árabes, os ataques dos barcos almóadas que destruíam os barcos portugueses e assolavam as costas, foram intensamente combatidos pela frota nacional. Depois da tomada de Faro, os ataques dos piratas sarracenos não terminaram. Existem numerosas menções dos seus roubos e destruições nas aldeias próximas da costa e da fronteira com Castela:

 “Destarte Afonso, súbito mostrado
Na gente dá, que passa bem segura,
Fere, mata, derriba, denodado;
Foge o Rei Mouro, e só da vida cura.
Dum Pânico terror todo assombrado,
Só de segui-lo o exército procura,
Sendo estes que fizeram tanto abalo
No mais que só sessenta de cavalo”.

(Luís de Camões, Os Lusíadas, c. III)
 

Se a pesca implicava hábitos de navegação costeira, o comércio marítimo com regiões distantes obrigava a ter barcos maiores, e mais bem apetrechados e conhecimento de melhores técnicas de navegação. O desejo do lucro foi, como é óbvio, o grande impulsionador. No século XIV, usavam-se principalmente a nau e a galé. Ambas serviam o comércio e a guerra, se bem que a primeira conviesse mais a fins mercantes e a segunda a objectivos bélicos. Muitos outros tipos de embarcações sulcavam os rios e os mares portugueses, nessa mesma centúria. Eram quase todas de pequeno porte e apenas tinham capacidade para um diminuto número de tripulantes, dedicando-se, de preferência, à pesca e ao tráfico de cabotagem: o baixel, a barca, o batel, o bergantim, a caravela moura, a pinaça.

Com o novo século, a partir de 1401, surge a caravela menos pesada e, com o Infante D. Henrique, o modelo que vai traçar os oceanos, o navio, a barca, o barinel, a nau, a urca, as “galeotas, fustas e taforeiras”, como o refere a documentação de Quatrocentos.

Quanto a técnicas, a agulha de marear, a bússula, o portulano, o astrolábio, quadrante e sextante, o cronómetro, as tábuas solares, a vela latina, o relógio mecânico, o nocturlábio, a toleta de manteloio (uma tabela numérica) …

 

***

 

Se a pesca implicava hábitos de navegação costeira, o comércio marítimo com regiões diversas e distantes obrigava a ter barcos maiores e mais bem apetrechados e conhecimento de melhores técnicas de navegação. O desejo do lucro foi, como é óbvio, o grande impulsionador.

Em 1203, o soberano inglês, João I, o Sem Terra [1199-1216] deu carta de segurança a todos os mercadores portugueses que exerciam as suas actividades no seu reino. Dois anos mais tarde, o mesmo rei garantia-lhes segurança maior.

Em 1266, o seu sucessor, Henrique III [1216-1272], concedeu mais de cem salvo-condutos a mercadores portugueses, dado que, no ano anterior, tinha sido confiscado um navio português carregado de produtos de exportação com 30 marinheiros.

A atracção dos comerciantes pela Inglaterra resultava do lucro obtido com a importação de tecidos, de madeiras que vinham da Irlanda, sobretudos as maleáveis, a bordalha, que serviam para rematar os bordos dos barcos, e a pesca, onde iam regularmente desempenhar-se desta actividade, hoje tão inexplicavelmente abandonada. Era, então, fonte de abastecimento e descanso para prosseguir até ao Mar do Norte e no regresso. Em meados do século XIII, verifica-se a multiplicação de referências a comerciantes portugueses, no Atlântico Norte, em Bordéus e La Rochelle.

A partir de 1280, os mercadores constituem já um grupo suficientemente numeroso e organizado para formarem uma bolsa destinada a associar os que desenvolviam as suas actividades naqueles “Países”.

Na mesma época, surgiam graves conflitos com os Ingleses, devido ao facto de os seus mercadores sofrerem a pirataria portuguesa nas nossas costas. As represálias atingiam mercadores portugueses em Inglaterra e a questão suscitava a correspondência entre soberanos e uma longa negociação que permitiu restabelecer os contactos dois anos mais tarde.

O comércio com a Flandres, Inglaterra, França e com os portos castelhanos, aragoneses e “italianos” do Mediterrâneo desenvolveu-se sem cessar até ao fim do século XIV. Verificou-se que os navegadores portugueses se dirigiam preferentemente aos centros exportadores do Atlântico Norte e frequentavam menos os do Mar Mediterrâneo. Aqui os comerciantes catalães, pisanos, genoveses e venezianos dominavam o comércio marítimo, não conseguindo os Portugueses penetrar nesse mar fechado.

Não se sabe ao certo, desde quando é que o desejo de lucro incitou os marinheiros portugueses a se aventurarem mais para Sul, ao longo da Costa de África, por suspeitarem que poderiam aí encontrar vantagens e riquezas.

A primeira notícia do género foi referida pelo geógrafo árabe Muhammed al-Edrisi [1100-1165/66], e data de meados do século XII. Conta que oito aventureiros partiram de Lisboa e navegaram, durante mais de um mês, no oceano em direcção ao sul. Tinham visitado uma ilha deserta e outra habitada, antes de regressarem por Safim, na costa africana. Se estes destemidos marinheiros, que certamente fizeram a viagem antes da conquista de Lisboa por D. Afonso Henriques em 1147, conseguiram voltar, o mesmo não aconteceu com os irmãos Ugolino e Vadino Vivaldi, genoveses que, com duas galeras, se aventuraram numa grande viagem. Depois de escalas em Maiorca e Ceuta, prosseguiu para Sul, para lá do Estreito de Gibraltar, até aproximadamente à latitude do Cabo marroquino de Rhir (Guer), um pouco a Norte de Agadir. A assinalar, há ainda, 50 anos depois, uma viagem promovida por Catalães: uma galé comandada por Jácome Ferré zarpou de Maiorca em 10 de Agosto de 1346, com destino ao Rio do Ouro, desconhecendo-se se chegou a ultrapassar o Estreito de Gibraltar.

Seguiram-se as Canárias com que abrimos este apontamento.

As prováveis dificuldades e principalmente a desorganização para problemas internos ou as guerras com Castela, durante os reinados de D. Pedro I e de D. Fernando e, por fim, as perturbações causadas pela revolução de 1383, retiraram aos mercadores portugueses, o apoio necessário para empreenderem expedições suficientemente importantes. Os factos parecem indicar que, até ao fim do século XIV, a coroa Portuguesa tinha interesse em explorar o Oceano ou mesmo a costa africana, mas não devia acontecer o mesmo com os armadores e comerciantes. Só depois do início do século XV, parece que acabaram por convencer-se das vantagens económicas que podiam tirar delas.

 
 
 

Fig. 2 (Mapa de África, dominada nos sécs. XV e XVI pelos Portugueses)

 
2.  O Conhecimento Técnico
 

Os Portugueses não podiam desenvolver a economia marítima sem resolver os problemas técnicos que implicavam as longas viagens pelo oceano.

As dificuldades podiam verificar-se não apenas na navegação atlântica, mas mesmo na mediterrânica.

Quanto ao tipo de embarcações, sabemos que os Genoveses utilizavam, de ordinário, galés a remos, mas que não estavam adaptadas à grande ondulação no alto mar. Estes barcos, porém, já tinham sobre os navios mediterrânicos, a vantagem de possuírem leme e não apenas remos laterais para orientarem o rumo. Este melhoramento aparece no Atlântico, provavelmente, em barcos normandos, desde o século XII, e só depois é introduzido no Mediterrâneo.

Simultaneamente, instalam-se francos melhoramentos nos barcos à vela, que, até ao fim do mesmo século, possuíam geralmente apenas um mastro com uma vela quadrada.

Todavia, já existiam outros com vela mais pequena, inclinada para trás e situada perto da proa.

Foi, provavelmente, no Mediterrâneo que se lhes acrescentou um terceiro mastro à popa, permitindo, deste modo, aumentar a velocidade da embarcação.

Contudo, neste domínio, a invenção resultou do facto de conseguir aproveitar-se o vento para navegar em qualquer direcção, mesmo aproximadamente, contra ele, e sem recurso aos remos.

Esta técnica deveu-se à introdução de uma vela triangular para navegar “à bolina”. As origens da mesma são quase desconhecidas e pouco se sabe igualmente acerca da sua difusão, admitindo-se que se generalizou ao longo do século XV, tendo-se conjugado, depois dessa altura, o recurso ao uso da “toleta de marteloio”, isto é, com a utilização de uma tabela de quatro colunas para a resolução de triângulos rectângulos planos por métodos trigonométricos, ou por um processo gráfico que permitia não perder a direcção num rumo em ziguezague, ou seja navegar à bolina. A toleta seria, possivelmente, já conhecida pelo Maiorquino Raimundo Lull [1232-1316], - o Arabicus Christianus ou Doctor Inspiratus - que, no final do século XIII, descreve o seu uso em termos pouco claros e directos.

Contudo, apesar de a técnica de navegar à bolina ser bem conhecida dos Portugueses, durante o século XV, não ficou provado que fosse praticada por estes, antes de 1400. Repare-se que era uma técnica de grande importância na costa africana, onde a orientação do vento provocava frequentes perdas de rumo.

A bússula, de origem chinesa, trazida para Portugal pelos muçulmanos, foi difundida no nosso País. Permitia encontrar o rumo Norte (mais tarde corrigido pelo cálculo exacto da declinação magnética), mesmo com um céu nublado e, por conseguinte, sem recorrer-se à orientação pelos astros.

Além do Sol, outros astros tinham utilidade para os navegantes, principalmente de noite. Estes que serviam os homens do mar, em céu limpo – recordamos - seriam: a Estrela Polar dentro da constelação da Ursa Menor – a Buzina, como então se dizia - que indica o Norte, o Cruzeiro do Sul, estrela que aponta a direcção Sul, embora só descoberta entre 1450 e 1455.

“Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisperio, nova estrela,
Não vista de outra gente, que, ignorante,
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde inda se não sabe
Que outra terra comece ou mar acabe”.

(Luís de Camões, Os Lusíadas, canto V)
 

No que diz respeito às cartas de marear, também chamadas de Portulanos como já acima referimos, as primeiras desenhadas que se conhecem, datam da segunda metade do século XIII. Podemos ainda afirmar que, no século XIV, o seu uso pelos marinheiros do Mediterrâneo, tornou-se frequente.

As descrições dos portos e das condições de navegação também melhoraram, como se verifica, por exemplo, nas indicações precisas acerca das horas das marés de certos portos, que aparecem, por exemplo, na carta catalã de 1375.

Em relação a outros instrumentos de navegação, refira-se o chamado astrolábio, aparelho destinado a determinar, com algum rigor, a passagem das horas durante a noite, com a ajuda da observação das estrelas. Estes já conhecidos pelos gregos foram desenvolvidos pelos Árabes e Persas. O recurso ao astrolábio, porém, com vista à determinação da latitude, provavelmente desenvolvida pelos Portugueses, só está provado depois dos inícios de Quatrocentos.

O interesse demonstrado pelo conhecimento científico e técnicas náuticas mais evoluídas pode documentar-se por ter existido em certos sectores da nossa sociedade.

Um dos cientistas portugueses que se notabilizaram na área das Ciências, durante o século XIII, é o bem conhecido Pedro Hispano ou Pedro Julião, o Papa João XXI [1276-1277], estudando em Paris ou em Montpellier, medicina e teologia, dedicando especial atenção a palestras de dialéctica, lógica e sobretudo a física e metafísica de Aristóteles, legando-nos obras célebres, como o Tratado Summulae Logicales que foi o manual de referência sobre lógica aristotélica, durante mais de trezentos anos, nas universidades europeias, com 260 edições em toda a Europa, traduzido para grego e hebraico. Outro terá sido o dominicano Frei Gil de Santarém [1184 ou 1190-1265], a quem ficou a dever-se uma tradução do tratado de Natura de Rasis (Crónica do Mouro Rasi). Frade dominicano, arabista, fora físico, taumaturgo, teólogo e pregador português dos séculos XII e XIII, tendo vindo a ser canonizado pelo papa Bento XIV, a 9 de Maio de 1748.

Apesar da pouca informação consagrada ao estudo das Ciências naquela centúria, presume-se a sua existência no domínio da Astronomia, de obras de Afonso X [1221-1284], o Sábio ou o Astrólogo. Colaborou no El Libro del Saber de Astronomia, obra baseada no sistema ptolemaico. Esta teve a participação de vários cientistas que o rei congregara e aos quais proporcionava meios de estudo e investigação, tendo mesmo mandado instalar um Observatório Astronómico em Toledo. Compôs as chamadas Tabelas Afonsinas sobre as posições astronómicas dos planetas, baseadas nos cálculos de cientistas árabes. Como tributo à sua influência para o conhecimento da Astronomia, o seu nome foi atribuído à cratera lunar Alfonsus. Outras obras com o seu contributo são o Lapidário, um tratado sobre as propriedades das pedras em relação com a Astronomia e o Libro de los juegos, sobre temas lúdicos (xadrez, dados e tabelas - uma família de jogos a que pertence o gamão), praticados pela nobreza da época.

Por esta altura, a astrologia era considerada uma verdadeira ciência que se baseava em observações objectivas e num verdadeiro conhecimento da natureza, embora a partir de esquemas mentais que foram sendo progressivamente abandonados.

A partir de meados do séc. XIII, os relatos acerca de viagens de europeus ao Oriente suscitados pela expansão do império Mongol, trazendo ao Ocidente relatos fantásticos, alimentaram a ideia de um Oriente fabuloso, o qual era concebido como um lugar onde se encontravam abundantes tesouros e riquezas, mas albergando monstros e prodígios.

A curiosidade pelo Oriente e o desejo de alcançá-lo foram também sustentados pela lenda do Preste João das Índias.  

Oliveira Martins viria a referir, a par da comunicação da Reconquista, outro factor:

era abrir a Portugal as portas douradas do Oriente vago e misterioso, onde havia cristãos com efeito, os cristãos do Preste João, mas onde havia também as especiarias, os tecidos preciosos, o oiro fulvo, e tudo o mais que as caravanas traziam através do deserto, desde o mar Roxo, pelo Egipto, pela Tripolitânia e por Argel, até Marrocos, de que Ceuta era a Nova Iorque e Fez a capital,  como Washington,  uma corte apenas’. (Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I, Lisboa, 1983, p. 26)

 
3.  O Despertar da Violência
 

Impulsionados pelo estímulo do corso e do comércio, as navegações atlânticas do século XV deslocaram para Ocidente, os circuitos comerciais e inauguraram um espaço promissor para as actividades predatórias.

Inicialmente, a violência provocada por piratas e corsários expandiu-se ao longo das costas de Marrocos e na zona dos arquipélagos das Canárias, da Madeira e dos Açores.

À medida que as navegações progrediram para Sul e logo que a América, a Ásia e as ilhas do Pacífico passaram a figurar no atlas dos navegadores europeus, o cenário onde os assaltos marítimos e as surtidas terrestres podiam conciliar-se – como se viu -, com proveito, dilatou-se extraordinariamente.

Certas zonas costeiras, alguns arquipélagos e, em especial, os estreitos que balizavam as rotas do comércio exótico, converteram-se em lugares privilegiados para o exercício de actos violentos e pilhagens.

A profunda mutação das coordenadas geopolíticas e comerciais segregou rivalidades entre os “estados”, depredações e conquistas. Para piratas e corsários, a instabilidade das relações internacionais, conjugada com os avultados fluxos de tráfico, proporcionava-lhes um mundo de oportunidades que não hesitaram em explorar. Investir em actividades de piratas e corsários tornou-se, por conseguinte, um risco aliciante.

Contudo, devido ao aumento das distâncias nas viagens e à navegação no mar alto, a estrutura dos armamentos, quer no plano técnico, quer no financeiro, sofreu alterações. Exigiam-se, para o futuro, elevadas somas de capital, para organizar uma expedição de longo curso.

Adquirir barcos e equipá-los, dispor de instrumentos náuticos actualizados, obter mapas secretos ou raros, contratar pilotos competentes e outras técnicas de navegação, tudo isto implicava avultadas despesas e capacidade para mover influências.

Por fim, era indispensável reunir homens audaciosos, capazes de enfrentar os perigos do mar e a sua permanência, e ainda prontos para arriscarem a vida em combates incertos e inesperados. Uma empresa de corso, ao demandar os mares distantes, assemelhava-se, frequentemente, a uma viagem de exploração geográfica. Alguns piratas distinguiram-se como excelentes navegadores.

Nos confrontos que marcaram a disputa pela hegemonia do novo mundo, piratas e corsários ao serviço de grupos sociais poderosos, e até de alguns “estados” (Portugal, França, Espanha, Inglaterra e Países Baixos), protagonizaram várias acções de autêntica guerra marítima. Os mais experientes e afortunados venceram batalhas, fundaram colónias e criaram condições para a implantação de impérios marítimos da época moderna. Se a violência marítima e terrestre sofreu um rápido incremento com a extensão dos limites do mundo conhecido, o próprio corso esteve intimamente associado aos projectos exploratórios da fase de arranque das viagens de descoberta e expansionistas.

A tomada de Ceuta em 1415 pelos Portugueses – episódio bélico relacionado com as primeiras viagens de exploração do litoral africano – não pode desligar-se, como refere Vitorino Magalhães Godinho, das expectativas de lucro criadas pelo florescente comércio marítimo muçulmano. Com efeito, os tráficos que uniam Marrocos e o reino de Granada aos mercadores do Mediterrâneo despertaram a cobiça dos mareantes do Sul de Portugal, tal como, mais tarde, com o Oriente, do Próximo ao Extremo, em busca de glória, nome e comércio que os sustentasse.

“A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhes farás tão fàcilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas Que vitórias?”

(Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV)
 

Deste modo, não faltaram os meios financeiros para alimentar os armados corsários e deles extrair dividendos. Armadores, mercadores, cavaleiros e escudeiros de Lisboa e do Algarve, e à frente de todos o Infante D. Henrique, ao qual cabia, desde 1443, o direito do quinto régio das presas efectuadas. Vejamos: nas viagens organizadas com sua licença, mas a expensas dos armadores, ao Infante cabiam 1/5 das presas, como direito seu e mais 1/5, também do total apresado, que, por concessão especial, o rei D. João I e seus sucessores, por outorga e depois por confirmação do importante privilégio, lhe outorgaram e asseguraram.

O porto ceptense tornou-se a base da pirataria naval destinada a combater a sua correspondente sarracena. Revelou-se, pois, contrariamente aos que duvidam do seu interesse, um verdadeiro entreposto comercial que teve de ser, por isso, várias vezes defendido (1418, 1419, 1424, 1437, 1458…). Na obra consagrada por Gomes Eanes de Zurara ao Infante D. Henrique e pelo mesmo a D. Pedro de Meneses, 1.º Capitão da Praça, comprova-se, facilmente, a nossa afirmação e são constantes as exacções cometidas pelos navegadores do Príncipe, nas suas investidas piráticas, quer no Litoral do reino de Granada quer ao longo do Norte de África e rápido pelos mares que banhavam a Mauritânia de Norte a Sudoeste (Ver Fig. 2). Refira-se que, em Portugal, como pode observar-se, o corso não fora prática sem tradições. Na verdade, para além dos sucessos anteriormente mencionados, é possível compulsar na documentação trecentista elementos que permitam fundamentar a ideia de um antigo reconhecimento régio das actividades corsárias.

D. Dinis, no contrato assinado, em 1317, com o genovês Manuel Pessanha, mencionava os homens que designa como “os meus corsários” em pé de igualdade com os marinheiros da frota real. Inclusive, uma das cláusulas do referido acordo autoriza Pessagno a dedicar-se às actividades de corso. Ao almirante e aos sucessores neste no cargo, o rei garantia o quinto do valor das presas a realizar. Esta partilha não incluía o preço atingido pelo casco dos navios, das armas e do aparelho, quantitativo inteiramente reservado ao monarca.

Sobre esta matéria da divisão das presas, que tantos conflitos ocasionavam entre os intervenientes diversos - capitão de barco, tripulantes e erário régio – é muito esclarecedor um instrumento legal datado de 1388, do governo de D. João I. No que dizia respeito às tomadias de barcos de grande porte, tudo o que fosse encontrado sobre a tilha, isto é, sobre a cobertura, era pertença dos apresadores, com excepção das mercadorias de tipo sumptuário que revertiam para a fazenda régia. Ainda, toda a carga transportada sob a coberta, assim como o corpo do navio, aparelhos de navegação e prisioneiros eram igualmente pertença do rei. Todavia, quando se tratava de um navio de escassa tonelagem, era ao patrão da galé apresadora que cabia a posse do mesmo. As mercadorias e gentes sob captura revertiam para o fisco.

No século XV, novos diplomas sancionaram esta actividade e, em 1433, o rei D. Duarte concedeu uma carta de mercê a D. Pedro, onde se regista a intenção deste infante armar alguns navios para andarem de corso no Estreito.

Mais tarde, documentação outorgada por D. Afonso V confirmava o prosseguimento do corso e as vantagens que a prática continuava a proporcionar. Por doação de 1450, dois anos após o fim da Regência, dos bens sumptuários capturados pelos corsários régios, o monarca concedia a D. Isabel, a rainha, sua mulher, uma parte do valor apurado.

Estudos recentes sobre o corso no Mediterrâneo revelaram que, entre 1433 e 1462, o corso português manifestou-se bastante activo no ataque à navegação aragonesa. Já no ano de 1449, o soberano fez a concessão ao Infante D. Henrique da parte dos direitos do comércio a realizar em certas zonas do litoral africano, dando-lhe também a devida protecção. A segurança atribuída tinha em vista a eventualidade de assaltos a navios henriquinos por parte de piratas portugueses.

Registe-se, contudo, que alguns dos navegadores ao serviço do Infante, em vez de prosseguirem a tarefa que lhes fora fixada, consagraram o essencial das suas energias a atacar os agregados populacionais avistados nas regiões costeiras. Por este motivo, o Infante, a partir de certa altura, determinou que os seus homens cumprissem, em primeiro lugar, os deveres da descoberta; só depois, conforme prescreviam os regimentos, cada qual ficaria livre para “fazer de o que lhe aprover”.

“Não nego que há, contudo, descendentes
De generoso tronco e casa rica,
Que, com costumes altos e excelentes,
Sustentam a nobreza que lhe fica;
E, se a luz dos antigos seus parentes
Neles mais o valor não clarifica,
Não falta, ao menos, nem se faz escura;
Mas destes acha poucos a pintura”.

(Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto VI)

 
4. As navegações e a Partilha do Mundo Desconhecido
 

No seguimento da conquista de Ceuta e da passagem do Cabo Bojador, os Portugueses instalaram um dispositivo comercial ao longo das costas africanas. Gradualmente implantaram diversas feitorias, a fim de promover as trocas com os sucessivos mercados locais: Arguim, Rios da Guiné, Costa da Malagueta, Costa do Ouro, Costa do Marfim e Benim.

Impulsionados pelas múltiplas navegações quatrocentistas que se realizaram, o complexo mercantil foi tomando forma. No mercado europeu, o ouro das caravanas saarianas, os escravos, a malagueta e o marfim da África negra eram mercadoria apreciada e com procura assegurada. Era ainda ao Pontífice de Roma que competia dirimir conflitos de soberania relativos aos territórios recém-descobertos. Nesta matéria, a autoridade pontifícia vinha sendo construída desde há muito pelos cronistas da Igreja.

Uma primeira manifestação de interesse da Santa Sé pelos feitos dos Portugueses em África, ocorreu, alguns anos após a conquista de Ceuta, quando Martinho V, três anos depois, concedeu indulgências aos Cristãos que defendessem a Praça do assédio sarraceno, Os reis portugueses, empenhados em evitar, a todo o custo, a intromissão de estranhos em mercados tão persistentemente construídos ao longo de décadas, viam, por regra, diplomas pontifícios, fazendo valer os seus pontos de vista, junto das instâncias jurídicas e diplomáticas internacionais.

A bula Romanus pontifex (1455) é um dos mais significativos documentos da corte pontifícia alusiva à questão. Concedeu-a ao rei D. Afonso V e ao Infante D. Henrique o papa Nicolau V. A bula consagra os direitos da soberania da coroa portuguesa na costa meridional do continente africano dando a posse e direitos de exploração aos Portugueses desde o Cabo Não ou Bojador até além da Guiné, onde chegássemos. Estes direitos contam, por inerência, fundamentos devidamente enunciados: a prioridade da descoberta, a luta contra os Infiéis e o esforço de evangelização dos gentios.

Nesta confirmação, o diploma do ano seguinte atribui ainda à Ordem de Cristo o domínio espiritual da mesma área. Ao Príncipe de Avis e à Ordem por ele administrada doa, a título vitalício, as praias, terras, portos, costas, abras, rios, ilhas, mares, comércio e pescarias a título de monopólio e exclusividade.

À morte do Infante, em Novembro de 1460, as viagens marítimas foram arrendadas e o rei de Portugal voltou-se de novo para as conquistas no Norte de África.

Quem prosseguiu a política do tio-avô, veio a ser D. João II, desde que seu pai, Afonso V, lhe entregara a política das navegações comerciais. Assim se projectaram, ao que parece, as viagens à Índia e a descoberta oficial do Brasil. Ao tempo de D. Manuel I, seu primo e cunhado que lhe sucedeu no trono, a armada capitaneada por Vasco da Gama, parte de Lisboa, circunda a África por rotas conhecidas, chega a Moçambique, passa a Melinde e fica-se ao largo de Calecut. Inicia a rota da Índia extremamente produtiva para os Portugueses. Pedro Álvares Cabral aporta na costa brasileira e completa-se, desta feita, o sonho de D. João II, se não o fora, já antes, do Navegador, no que respeita à fonte das especiarias, que, modernamente, os historiadores pretendem negar, por motivos que não explicam.

 
Notas
 

(1)    Veja-se A. H. de Oliveira Marques,”A Expansão no Atlântico”, in A Expansão Quatrocentista, coordenação de A. H. de Oliveira Marques, in Nova História da Expansão Portuguesa, dir. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Vol. II, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, Parte 1. Pp.11 e ss. Veja-se p. 36.

(2)    Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, publ. e prefac.  por João Martins da Silva Marques, Vol. I, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1944, doc. N.º 74, pp. 86-88 e n.º 75, pp. 88-90; Monumento Henricina, dir., organiz. e notas críticas de A. J. Dias Dinis, Vol. I, Coimbra, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960, doc. 97, pp.231-234.

(3)    Com efeito, desde então, as ilhas Canárias passaram de mão em mão, ora eram de Portugal, ora de Castela, tendo apenas, definitivamente, pertencido ao nosso Reino vizinho, com o Tratado de Paz de 1479.

(4)    Gervase of Tilbury, Otia Imperialia, Oxford, Oxford Medieval Texts, 2002, p. XXXIV. Ver Wikipedia, the free encyclopediae.

(5)    B. Bildhauer, “Blood, Jews and Monsters”, in The Monstruous Middle-Ages, ed. por B. Bildhauer e R. Mills, Cardiff, 2003, p. 77.

 

 

João Silva de Sousa (Portugal)
Professor do Departamento de História, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico correspondente da Academia Portuguesa da História

 

 

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