REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 18

   

 

 

O paduano Domingos Agostinho Vandelli (1735-1816) foi um naturalista (nome que se dava aos cientistas entre os séculos XVII a XIX) que atingiu grande renome ao dar a Portugal muito de sua organização iluminista que o país conseguiu entre os séculos XVIII e XIX. Seu pai, Girolamo Vandelli, fora médico e professor na Universidade de Pádua, sendo sua mãe conhecida por Francesca Stringa. Domingos Vandelli tornou-se Doutor em Filosofia pela Universidade de Pádua. Publicou muitas obras sobre os mais variados assuntos naturais e sociais, tendo consolidado seu nome na História Natural pela Universidade de Coimbra, Portugal, inicialmente pelo “Dicionário dos termos técnicos de história natural extraídos das obras de Lineu” (1788), assim como pela publicação de “Florae lusitanicae et brasiliensis specimen”.[1] O naturalista Vandelli converteu temas como agricultura e natureza para uma finalidade prática, visando assim à recuperação dos Reinos europeus. A fisiocracia surgirá “em suas Memórias e ensaios como realização prática dos estudos efetuados no campo das ciências naturais”.[2]

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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ADÍLIO JORGE MARQUES

As tradições místicas européias e
Domingos Vandelli.

Um naturalista e revolucionário no cenário ilustrado luso-brasileiro.
 

                                                                  
 

Coimbra marcou o local na trajetória de Vandelli em que foram elaborados e definidos seus principais procedimentos para conhecer os “segredos da natureza”, para torná-los disponíveis ao uso daqueles que estivessem em condições para tal naqueles tempos difíceis no que tangia à educação, principalmente a popular.

O percurso de Domingos Vandelli é bem elucidativo da simbiose entre o domínio da História Natural e as preocupações de natureza econômica e que o envolviam, assim como a outros naturalistas dos séculos XVIII e XIX, tendo adotado tanto os princípios fisiocráticos italianos das Escolas de Milão e Nápoles quanto os princípios do liberalismo inglês. Nas décadas que se seguiram ao terremoto de Lisboa (ocorrido em 1755 e que destruiu grande parte da cidade), os ilustrados como Vandelli e os demais estrangeiros contratados que chegavam a Portugal deveriam transformar a cambaleante economia portuguesa o quanto antes. Perceberam que o desenvolvimento da indústria (compreendida aqui como atividade empreendedora em geral) seria a salvação modernizadora do Reino português, já atrasado em relação aos ingleses e franceses, por exemplo. Era importante e fundamental promover novas técnicas nas várias culturas, visando uma maior produtividade. A aclimatação de novas plantas, por exemplo, era vista como atividade científica necessária, pois elas poderiam ser úteis ao mercado e às artes em geral, principalmente em um Reino tão vasto quanto o português (incluindo-se, claro, todas as colônias de além-mar, como o Brasil).

Desde 1759 Domingos manteve contato com o renomado botânico, zoólogo e médico sueco Carlos Lineu (1707-1778), reconhecido mundialmente pela criação da nomenclatura binomial e da classificação científica que estudamos em Biologia, utilizando os princípios da classificação racional ilustrada. Lineu é assim considerado o pai da taxonomia moderna, e foi um dos fundadores da Academia Real das Ciências da Suécia, de grande importância para as ciências.

A corrente científica da "economia da natureza", sistematizada por Lineu, constituiu um elo fundamental na gênese da perspectiva científica que, em meados do século seguinte, veio a ser chamada de ecologia, algo atualmente muito em voga.[3] Nesse tipo de economia pressupunha-se a existência de um sistema de equilíbrios interdependentes entre as diversas partes do mundo natural, em um sistema no qual cada elemento possuía uma função relevante para a dinâmica coletiva. Vemos, assim, que o pensamento ecológico já era motivo de reflexões há alguns séculos.

Quando o Marquês de Pombal decretou a reforma da Universidade de Coimbra convidou Vandelli, entre outros naturalistas, para lá trabalhar. Domingos Vandelli chegou para lecionar História Natural e Química na Faculdade de Filosofia Natural, tendo-lhe sido conferido, para esse feito, o grau de Doutor em Medicina e Filosofia. Em 1772 Sebastião José de Carvalho e Mello, primeiro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal, notifica Vandelli que as suas atribuições incluíam também a organização do Jardim Botânico de Coimbra, do Museu de História Natural e do Laboratório de Química daquela universidade, local onde ocorriam reuniões maçônicas. É de se registrar que a época Pombalina foi de tolerância para a existência da Maçonaria portuguesa, coincidindo com a expulsão dos jesuítas do país em 1759. Algo que mudaria radicalmente com a chegada ao poder de D. Maria I (depois a Rainha louca), mãe de nosso conhecido D. João VI e fervorosa católica.

Tendo em vista o tradicionalismo que imperava na cultura portuguesa, seu impacto intelectual foi profundamente renovador, segundo o pesquisador Cruz Costa.[4] A questão da terra para os portugueses era oriunda do “caráter comercial e cosmopolita da vida portuguesa dos fins do século XV e começos do século XVI”, dando aos lusitanos uma praticidade no lidar com o conhecimento. Tal fato pode ter tornado a adaptação de Domingos Vandelli mais fácil, pois se tornou um grande mestre do naturalismo português, formando toda uma geração de estudiosos, entre os quais muitos brasileiros. Vários dos discípulos de Vandelli, sob sua orientação direta, percorreram o interior de Portugal e de suas colônias (inclusive o Brasil) em missão de coleta e pesquisa científica. Domingos Vandelli ajudou a estabelecer o naturalismo de campo como forma reconhecida de trabalho, mesmo que não servindo, ainda, de profissão das mais reconhecidas em Portugal.

Domingos Vandelli dedicou-se especialmente ao Museu e ao Jardim Botânico e, em conjunto com o físico italiano Giovanni Dalla Bella (1726-1823), elaborou o primeiro plano para o Jardim Botânico de Coimbra, tendo escolhido o local para instalá-lo apenas em 1773. Todavia, Pombal não aprovou o plano, tendo a organização do Jardim terminado apenas em 1790, quando Felix Avelar Brotero (1744-1828) foi nomeado professor de Botânica e Agricultura.  

 

 

Figuras 1a e 1b – Possível imagem de Domingos Vandelli em cerâmica de sua própria fábrica de Coimbra. Única imagem disponível, já que não há qualquer outro registro iconográfico conhecido de Domingos Vandelli, até o momento. Acervo do Museu Machado de Castro, Coimbra. Também ver exposição “O gabinete transnatural de Domingos Vandelli”. Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.

 

Domingos foi Mestre, através da renomada Universidade de Coimbra, de vários alunos brasileiros. Surgem então para a História das Ciências alguns dos principais nomes, os alunos brasileiros de Domingos Vandelli[5]:

Manuel Arruda da Câmara (1752-1811), de Pernambuco; Baltasar da Silva Lisboa (1761-1840) e Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá (1762-1835), da Bahia; Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), da Bahia, e que empreendeu uma extensa viagem percorrendo o interior da Amazônia até o Mato Grosso, entre 1783 e 1792; José Álvares Maciel (1761-1804), participante com Tiradentes da Inconfidência, supostamente influenciado pelo Mestre Domingos em suas ideias libertadoras; Vicente Coelho de Seabra Silva e Teles (1764-1804), também de Minas Gerais, nomeado em 1791 Demonstrador de Química, passando a substituto de Zoologia e Mineralogia, Botânica e Agricultura; Bernardino Antonio Gomes (1768-1823), que trabalhou no Laboratório da Casa da Moeda (inclusive com o filho primogênito de Domingos, Alexandre Antonio Vandelli[6]), descobridor da cinchonina, lendo na Academia Real das Ciências de Lisboa, em sete de Agosto de 1810, o “Ensaio sobre o cincho nino e sobre a sua influência na virtude da Quina e doutras cascas”.[7]

José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o mais proeminente desse grupo de estudantes, diferenciou-se dos demais por seu retorno tardio ao Brasil. Enquanto os outros retornaram a seu país natal no final do século XVIII e início do XIX, Bonifácio permaneceu envolvido com inúmeras tarefas acadêmicas e administrativas em Portugal até 1819, vindo neste mesmo ano para o Brasil desenvolver os trabalhos políticos que levaram à nossa independência. Lembro, contudo, que Bonifácio foi antes de tudo um grande cientista, para depois ser o nosso Patriarca.[8] Bonifácio foi sogro de Alexandre Vandelli, e ao que tudo indica, também foi recebido nos preceitos maçônicos e carbonários por influência de seu Mestre Domingos Vandelli.

Com as viagens dos estudantes e naturalistas, Domingos Vandelli consolidou algumas das medidas que permitiram um aproveitamento mais racional e útil da natureza pela intelligentsia portuguesa, a saber: a criação de estabelecimentos científicos capazes de estudar e organizar o material oriundo das coletas; as próprias viagens, necessárias ao conhecimento científico do vasto Reino português; a formação de pessoal especializado em Portugal, sem ter que recorrer novamente à importação de mão de obra; um incremento da industriosidade.

Até 1807 Domingos Vandelli manteve sua vida equilibrada em Portugal, dividindo-se entre Coimbra e Lisboa, mais particularmente nas atividades da Ajuda, onde trabalhava como Diretor de seu Jardim Botânico. Além de Sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, também se associou às Academias de Upsala, Lusacia, Pádua e Florença.

Contudo, com as invasões francesas[9], sua vida e a de sua família mudariam de rumo. Napoleão chegou ao poder na França como 1º Cônsul (1799), vindo a ser coroado Imperador em 1804 sob o título de Napoleão I. A partir de 1807 conduziu seu governo sem atender aos Corpos Legislativos e com características autoritárias, imperiais e expansionistas. As guerras, a princípio localizadas como conflitos entre soberanos, tornaram-se guerras nacionais a partir da resistência popular da Espanha e de Portugal aos invasores napoleônicos, transformando-se nas chamadas Guerras Peninsulares. Com o apoio da Inglaterra, as nações europeias, derrotadas em sucessivas coligações, acabariam por se impor a Napoleão na Batalha de Waterloo em 1815.[10] Com o crescente poderio dos franceses e sendo Conselheiro do Príncipe Regente D. João, Domingos Vandelli escreveu muitas Memórias econômicas e políticas, mostrando às vezes oscilar entre aceitar o apoio inglês ou a forte presença napoleônica em seu país. Por fim, em fins de 1807 Napoleão invadiu Portugal, fazendo com que boa parte da Corte viesse para o Rio de Janeiro, evento comemorado em 2008 no Brasil.8 Domingos Vandelli e seus familiares ficaram em Portugal, pois ele já possuía idade avançada para uma difícil travessia marítima.[11]

Como resultado das emoções inerentes a qualquer guerra, a “Setembrizada” acabou por ser uma reação do governo português ao final das invasões contra supostos colaboracionistas, abrangendo muitos estrangeiros e maçons que trabalhavam em Portugal fazia bastante tempo. Foram apelidados de “afrancesados”, pois seriam personalidades que apoiariam politicamente a França. A ação persecutória atingiu o seu auge entre os dias 10 e 13 de setembro de 1810, com várias prisões e deportações. Domingos Vandelli e seu filho Alexandre Vandelli são também acusados de traição. Na noite de 10 para 11 de Setembro de 1810 são presos, juntamente com outros “estrangeirados”, e conduzidos para o Forte de São Julião da Barra (Lisboa). Em seguida são embarcados na fragata Amazona com destino à ilha Terceira, nos Açores. Notícias se espalham, denunciando a suposta colaboração dos Vandelli com o naturalista francês Geoffroy de Saint-Hillaire na pilhagem levada a cabo por este aos acervos museológicos mais importantes de Portugal, especialmente no Museu da Ajuda, justamente na época em que Domingos fora seu Diretor. Todavia, essas denúncias jamais foram comprovadas, assim como outras, assacadas contra muitos cidadãos acusados de “afrancesamento”. Com isso o filho Alexandre Vandelli é solto e retorna para Portugal.

Os militares maçons ingleses ajudaram os presos que possuíam alguma ligação com a Maçonaria a sair dos Açores rumo a Londres, isso entre 1810 e 1811, havendo a intervenção de mentes da Royal Society de Londres a ilustrados como Domingos Vandelli. A Royal Society também foi uma Sociedade com muitos membros ligados aos pedreiros-livres e aos antigos Rosacruzes. As ligações maçônicas de Domingos Vandelli são corroboradas pelas Obediências de Portugal, assim como acontece com José Bonifácio em relação à Maçonaria brasileira. A Iniciação de Vandelli, porém, parece ter ocorrido ainda quando estava na Itália.

Além do Mestre Vandelli, outro personagem muito lembrado neste episódio (seriam muitos personagens para tão curto espaço) é o do francês Jacome Ratton (1736-1822), negociante e membro da Loja Maçônica “Amizade” em Lisboa, que também foi preso e deportado para os Açores, exilado pelas mesmas circunstâncias que Vandelli. Domingos Vandelli ficou no exílio em Londres entre 1811 e em 1815, quando retorna a Lisboa, já está alquebrado pelos momentos passados, vindo a falecer logo depois em 27 de junho de 1816, dia do aniversário de seu filho mais velho e continuador nas ciências, Alexandre Antonio Vandelli. Historicamente podem-se mencionar vários motivos que levaram ao difícil fim de vida de Domingos Vandelli em Portugal: suas relações e nomeações da época pombalina (Pombal era considerado um inimigo político para a família de D. João VI); seu suposto “deísmo maçônico”, além das relações reais com a Maçonaria portuguesa e mesmo a carbonária italiana; o fato de ter uma esposa de sobrenome francês (Bon);[12] o “espírito de guerra” que tomou conta de Portugal após as invasões; as invejas pessoais e profissionais; as intrigas palacianas (Domingos era médico e Conselheiro da Corte); e o fato de alugar um quarto de suas dependências em Lisboa a um inquilino considerado jacobino.[13]

Para muitos dos naturalistas que ficaram em Portugal, os Vandelli foram motivo de dúvidas quanto à sua atuação, tanto política quanto científica, e ainda hoje Portugal discute tal fato. O preconceito contra Domingos Vandelli pode em parte explicar, talvez, o “esquecimento” quanto às obras e atuações histórico-científicas do próprio filho cientista Alexandre Vandelli, a ponto de não existir nenhuma imagem de ambos nem em Portugal e nem em outro país, ao que se saiba. Teriam sido destruídas? Fica a questão em aberto para ser respondida.

A Maçonaria portuguesa, em todos os momentos, esteve ao lado deste ilustre cientista e de sua família na década derradeira dos oitocentos, apesar das vicissitudes finais. Nobre homem, que inspirou maçons da grandeza de um José Álvares Maciel e de um José Bonifácio de Andrada e Silva, a quem os brasileiros também são muito gratos.
 

 

Notas

 

[1] CARDOSO, José Luís (Org.). Memórias de História Natural. Domingos Vandelli. Porto: Porto Editora, 2003. 
[2] Idem. 
[3] WORSTER, Donald. Nature’s Economy: a History of Ecological Ideas. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. 
[4] COSTA, João Cruz. Panorama da história da filosofia no Brasil. São Paulo: Cultrix, 1960.
[5] OLIVEIRA, Luiz Henrique Milagres de, CARVALHO, Regina Simplício. Um olhar sobre a história da Química no Brasil. Revista Ponto de Vista, Vol.3, 2006.
[6] MARQUES, Adílio Jorge. O professor do jovem Imperador. Um naturalista luso-brasileiro. Alexandre António Vandelli (1784-1862). Rio de Janeiro: Vieira & Lent Casa Editorial, 2010.
[7] MENDES, António Rosa. O naturalista Domingos Vandelli, novos elementos para a sua biografia. Revista da Universidade de Lisboa, v. 5, 1984-5.
[8] MARQUES, Adílio Jorge. Os 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil. Revista “A Trolha”, nº 276, 2009.
[9] Guerras Napoleônicas: designação do conflito armado que se estendeu de 1799 a 1815, opondo a quase totalidade das nações da Europa a Napoleão Bonaparte.
[10] SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal – A instauração do Liberalismo (1807-1832). Vol. VII, Viseu: Editorial Verbo, 1982.
[11] GUEDES, Maria Estela. Domingos Vandelli & Agostinho de Macedo: a propaganda anti-maçônica. Revista Triplov, http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/vandelli/meg.html, acesso em 10 de janeiro de 2011.
[12] Feliciana Isabella Bon, mãe de Alexandre A. Vandelli, foi acusada de possuir origem francesa, e de estar ligada ao naturalista francês Geoffroy de Saint-Hilaire.
[13] SEQUEIRA, Gustavo de Matos. A casa onde morreu Vandelli. Depois do Terramoto. Subsídios para a História dos bairros ocidentais de Lisboa. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, Vol. II, 1967, p. 93-96. In: Revista Triplov. Stella Carbono14. Os Orientes eternos de Vandelli.
http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/vandelli/oriente_eterno/oriente_eterno.htm , acesso em 10/04/2011.
 

 

 

ADÍLIO JORGE MARQUES (BRASIL)
Doutor em História das Ciências e Epistemologia
 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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