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Poucos pensadores refletiram sobre o ensaio como gênero. O alemão
Theodor W. Adorno (1903-1969) foi um deles e o fez com rara percuciência.
Como se pode comprovar em "O ensaio como forma", texto de abertura do
livro Notas de Literatura I, que acaba de ser publicado pela Editora 34,
em conjunto com a Livraria Editora Duas Cidades, de São Paulo, reunindo
outros sete ensaios escritos por Adorno logo depois de seu retorno na
década de 1950 à Alemanha após o exílio, além de um fragmento do início
da década de 1940.
Para se compreender melhor o
contexto em que Adorno escreveu estes textos de intervenção, é preciso
que se diga que, à época, a crítica literária alemã vivia um tempo de
crise, a ponto de ter difamado o ensaio como um produto bastardo. O
pensador faz nesse texto uma defesa intransigente e lúcida da forma
ensaística, mostrando que o gênero constitui a maneira mais adequada de
se traduzir os movimentos do pensamento dialético, que decifra o objeto
sem prendê-lo à teia rígida dos conceitos. |
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Segundo o
pensador, a crítica literária alemã havia perdido seus vínculos com a
tradição da crítica dialética que, nas obras de Georg Luckács e de
Walter Benjamin, pensara de maneira instigante e sem reducionismos a
relação entre a arte e a sociedade, como observa na apresentação o
tradutor Jorge de Almeida, professor do Departamento de Teoria Literária
e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo.
Dos ensaios
reunidos por Adorno em 1958, dois textos já haviam sido divulgados em
tradução brasileira na década de 1970 - "Posição do narrador no romance
contemporâneo", por Modesto Carone, e "Lírica e sociedade", por Rubens
Rodrigues Torres Filho -, mas foram retraduzidos "em busca de uma dicção
própria e da unidade do conjunto da obra", o que significa adequá-los à
"fluência quase musical" do texto de Adorno, segundo Almeida.
Além desses
textos célebres, o leitor encontrará neste primeiro volume ensaios menos
conhecidos sobre Homero, Heine, Eichendorff, Valéry, o Surrealismo e as
relações entre a fala, a escrita e os sinais de pontuação. Mais três
volumes estão previstos e vão reunir textos publicados em 1961 e 1965,
além de ensaios que saíram postumamente em 1974.
No ensaio
"Posição do narrador no romance contemporâneo", Adorno discute os
limites do romancista e sua obra, observando que o romance deveria se
concentrar naquilo que não é possível dar conta por meio do relato. Só
que, em contraste com a pintura, diz, a emancipação do romance em
relação ao objeto foi limitada pela linguagem, já que esta ainda o
constrange à ficção do relato. Por isso, ressalta a grandeza de James
Joyce que foi coerente ao vincular a rebelião do romance contra o
realismo a uma revolta contra a linguagem discursiva.
Leitura
fundamental para a compreensão da sociedade e da literatura do século XX,
estes ensaios de Adorno merecem ser lidos por todos aqueles que se
dedicam ao exercício solitário da crítica literária. São ferramentes
indispensáveis ao ofício porque ensinam o crítico a compreender a obra
de arte, dela libertar-se para criar a sua própria obra.
Afinal, embora
parta de um texto já criado, o ensaio, se feito com brilho, pode se
tornar também uma obra de arte, como se tem visto desde Sainte-Beuve a
Edmund Wilson, passando pelo próprio Adorno, por Erich Auerbach, T.S.
Eliot, Mikhail Bakhtin, Northrop Frye e tantos outros. |
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Adelto Gonçalves, doutor em
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail:
marilizadelto@uol.com.br |