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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 15
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1. Introito
Com os braços estendidos para o
céu revolto, no tempestuoso mistério duma paisagem insólita, a mão
direita suavemente aberta contrastando com a esquerda espalmada, em
frenesi e arrebatação do espírito, e mirando o firmamento, as expressões
insinuantes de São João, impregnadas de sentido ascensional, denotam o
instante visionário, o alumbramento metafísico. Ao lado do evangelista
e preenchendo espaços da cenografia, figuras nuas em se contorcem em
gestos de desespero e pedidos de clemência. A túnica em azul do
protagonista, que nasce sobre um despojo em púrpura, alastra-se à
esquerda do quadro. É a imagem do apocalipse, o juízo final. Nesse
contexto onírico, a concretizarem o espiritualismo quase agônico do
pintor, crianças são lançadas ao ar e algumas indumentárias flutuam.
Todas as figuras, situadas defronte de tecidos verdes e amarelos,
parecem como que estiradas em levitação, como que banidas da
contingência física, tornando-se etéreas, flutuantes. Sugerem, no âmbito
imaginativo e delirante da obra, a sublimação da quimera pela recusa dos
valores ordinários, tangíveis e existenciais. É a hora profética de os
humanos prestarem contas pelos atos da vida. |
EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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ROMILDO
SANT'ANNA
El Greco:
Quadros em Êxtase
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Este texto enseja-se na conferência
“O Misticismo Barroco em El Greco”, proferida no III Seminário de
Cultura (abril de 2011), da Academia Rio-pretense de Letras e
Cultura.
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Com essas
expressões icono-gráficas de atormentada teatra-lidade,
o gênio prodigioso de El Greco (1541-1614), já no ocaso
da vida, plasmou em tela a sua Visão de São João (na
versão do Museu Metropolitano de Arte, de Nova Iorque).
Tal imagem ilustra a passagem apocalíptica em que, após
a morte e ressurreição de Jesus, o mundo está chegando
ao fim: |
ElGreco. Visão de São João
(1608-14). Óleo s/ tela, 225 x 193 cm,
The Metropolitan Museum of Art
- Nova Iorque. |
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No dia do Senhor, o Espírito tomou conta de
mim. E atrás de mim ouvi uma voz forte como trombeta, que dizia:
Escreva num livro tudo o que você está vendo. Depois mande para as
sete igrejas [representadas pelas comunidades da Ásia]: Éfeso,
Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia.
(Apocalipse, Prólogo).
Nessa esplêndida pintura que chama
os humanos à conversão para o bem, como no excepcional caudal de obras
concebidas pelo artista, acenos expressionistas, a livre associação de
ideias e automatismo psíquico, e as sobreposições espaço-temporais se
conjugam para a consagração dum momento culminante, um instante
paradigmático de uma das mais belas e inspiradas invenções do gênio
artístico, com sua lógica reversa da comunicação baseada nos princípios
da linguagem sugestiva. Há prenúncios cubistas e surrealistas nessa
obra, tornados estética e intelectualmente plausíveis nos tempos
modernos. |
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2. Ambiente Religioso e Contrarreforma |
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Há notícias pouco
consistentes acerca da vida do pintor, escultor e arquiteto
Doménikos Theodokópoulos, apelidado El Greco (o artigo é
espanhol, o substantivo próprio é italiano), sobre os anos e
desenganos de sua inquietude. Plasmava em telas a óleo suas
complexidades psicológicas, iconoclastias e sentimento de
liberdade inventiva. Nascido em Cândia, na ilha grega de Creta
(que pertencia ao domínio veneziano), exilado aos 20 anos em
Veneza, com rápida, porém fecunda, passagem por Roma, centro
cultural e artístico do cinquecento italiano, nessas paragens se
prefiguram e se esquadrinham as matrizes genealógicas de seu
estilo único na história da arte.
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Autorretrato
(1595-1600). Óleo s/ tela, 52 x 46 cm,
The Metropolitan Museum of Art
(Nova Iorque). |
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Vivendo definitivamente na
Espanha, onde passou os últimos 38 anos da vida, El Greco encontrou no
ambiente medieval e místico de Toledo a ambientação para seu espírito
exasperado, ardor religioso, para sua inclinação à autonomia de
expressão plástica, próprios aos espíritos profundamente criativos,
tensos e dionisíacos. A Espanha de seu tempo, sintetizada na paisagem
toledana, manifestava o arrebatamento zeloso pelo Concílio de Trento,
acontecimento basilar da Contrarreforma, em reação aos movimentos
protestantes do norte da Europa, de meados do século 16.
Por consequência duma existência
itinerante no início, o artista confecciona a mescla de influências
sedimentadas no imbricamento de civilizações mediterrâneas distintas. Em
tais influências vibram o temperamento de três línguas – instrumento com
o qual se pensa o mundo – e a tensão provocada por ressonância e
estranhamento de três tendências estéticas: o ambiente voltado à
representação religiosa, à antiga maneira estática e inatural bizantina
(Ilha de Creta), o clima de apogeu do humanismo renascentista, em que
frequentou os estúdios dos mestres Tiziano e Tintoretto e conviveu com o
gosto pelo fantástico (Veneza), e o ambiente de Toledo, austero e
solene, centro da vida eclesiástica espanhola, nos tempos do rei Felipe
II. Na Espanha, o mesmo anseio religioso e de elevação espiritual já
forjara outros místicos e devotos do século 16, como Santo Ignacio de
Loyola (Ejercicios Espirituales), Santa Teresa de Ávila em seu labirinto
de labirintos (Las Moradas) e San Juan de la Cruz (Cántico Espiritual e
Noche Oscura), todos absorvidos pelo grande interesse intelectual e
literário do pintor. Instalado na velha Toledo, “esa montaña que,
precipitante, / ha tantos siglos que se viene abajo” (Góngora), Toledo
da esplêndida catedral gótica, do Alcázar, da ponte de Alcántara, do rio
Tajo (o Tejo), do “barrio judío” onde inda hoje se conserva a residência
do artista, El Greco pode desenvolver sua vocação estética e espiritual
de evasão aos espaços imaginários e sobrenaturais, e tornar-se um dos
artistas culminantes da história.
Ainda que não fosse de berço
ibérico, e orgulhoso de sua premissa helênica (assinava seus quadros com
letras maiúsculas do alfabeto grego), ninguém com mais agudez que
Doménikos Theotokópoulos soube exprimir com igual fecundidade a
atmosfera religiosa da Espanha de seu tempo. Contudo, como todo autor
ungido de genialidade, esteve além dos contornos peninsulares,
tornando-se atemporal e universal, como seu contemporâneo Miguel de
Cervantes e seu “caballero de la triste figura”, espelho donde se miram
os impulsos de evasão aos recantos dos sonhos e os enlevos da alma.
Como mestre de todos os tempos,
atual, inexaurível e antecipando-se a seu tempo, El Greco suscitou
inspirações artísticas impressionistas, expressionistas e da
modernidade, como se observa na beleza rósea e precursora do Les
Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso, obra motora do cubismo na arte.
Nessa tela, o artista malaguenho reverencia a pintura dos instintos, das
subjetividades essencialmente inventivas, das sobreposições
espaço-temporais das formas semântico-pictóricas, da irreverência aos
padrões dominantes, enfim, seu afeiçoamento ao tino pessoal e estro do
artista toledano. Em verdade, embora posicionado em pedestais
altíssimos, mas considerado um tanto estranho para os valores de sua
época, El Greco foi redescoberto e revalorizado em finais do século 19 e
inícios 20. |
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Picasso. Les Demoiselles d’Avignon
(1907). Óleo s/ tela, 243 x 233 cm, MoMa
- The Museum of Modern Art, Nova Iorque e Visão de São João, de El Greco. |
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3. Configurações
Plásticas |
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Um matiz radical na expressão
plástica desse barroco é seu fascínio pela composição assimétrica, pelo
geometrismo sutil, pelas desconstruções das imagens, seu desdém pelas
formas e cores naturais e imitativas, sua constância em representar
figuras verticalizantes, alongadas, esguias e etéreas. São marcas
herdadas pelo amor a Tintoretto, claramente perceptíveis em obras como
São Marcos Liberta um Escravo (Galeria da Academia, Veneza), A Conversão
de São Paulo (Galeria Nacional de Arte, Washington, DC), Reencontro do
Corpo de São Marcos (Pinacoteca de Brera, Milão). A esse
desapreço às convenções formais, preferência pelos pormenores e exagero
de elementos, desproporções das massas em grácil harmonia, gestos
enigmáticos, cores brilhantes e tratamento irracional do espaço e da luz
evocam o maneirismo italiano, tentência que alcançou em El Greco sua
última e mais sublime expressão em pintura.
Alguns estudiosos chegaram a
explicar esse maneirismo das figuras espichadas na obra do artista como
resultado de um defeito ocular, o astigmatismo. De qualquer modo,
através dessa recorrência estilística de representação de criaturas
estilizadas, El Greco, loquaz anatomista de figuras retorcidas e
serpenteantes, exprime com singularidade sua devoção aos temas
religiosos, manifestos com excitação e teatralidade. Passagens do Antigo
e Novo Testamento se afiguram como atos de celebração. Em sua obra,
personagens delgados e ondulantes elevam-se às alturas (O Enterro do
Conde de Orgaz, Igreja de São Tomé - Toledo), como que emanadas de
várias fontes artificiais da luz, cores diáfanas, trêmulas e
fosforescentes esculpindo as formas. A espacialidade múltipla dentro do
mesmo espaço ficcional realça convivências simultâneas no plano
principal e instauram uma atmosfera de visões prodigiosas,
sobrenaturais. Como técnica recorrente em sua carreira, realçam-se,
entre tantas obras, em A Agonia do Horto (National Gallery, Londres) e O
Espólio (Catedral de Toledo).
Tendo-se como base a percepção da
plurissignificância dos planos pictóricos na obra do artista, o cineasta
e estudioso russo Sergei Eisenstein (do filme O Encouraçado Potenkin,
1925) viu elementos que também serviram de inspiração para sua famosa
“estética da montagem cinematográfica”. Seus estudos e admiração por El
Greco ajudaram-no a conceber alguns de seus procedimentos de
representação da “visão lisérgica”, dos fulgores alucinantes por meio da
captação da imagem pela lente de 28mm (a objetiva de grande angular) que
altera as figuras e realça a profundidade do campo focal
cinematográfico. Sobre esse particular, o belo ensaio de Arlindo Machado
(“Eisenstein: Um Dialogismo Radical”), abordando tal procedimento da
linguagem como montagem, escreve que “trata-se da desproporção entre os
planos de frente e de fundo que permite ao motivo do fundo saltar para o
primeiro plano, numa violação absolutamente cinematográfica da escava
perspectivística convencional”. |
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Ilustração
para O Encouraçado Potenkin, de Eisenstein. |
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No processo de codificação das
figuras em El Greco, ao descartar os critérios usuais da composição em
pintura, suas cores multifacetadas, suas figuras adelgaçadas, suas
fulgurantes e incisivas marcas de pincel criam nos interiores das cenas
e, mormente nas vestes dos personagens, ondulações e refrações rápidas e
flamejantes donde parecem emanar chispas verticalizantes e imprimem
sentidos de intensidade devocional, leveza e espiritualismo, o
dialogismo entre as zonas de significações superiores e inferiores,
caráter transcendente e vida material. Instaura as tensões entre a
existência terrena do ser e seu anelo de infinitude. Repare, leitor, com
todo o peso do corpo sustentado na perna esquerda, quase que na ponta
dos pés, a imagem de Jesus salta para o primeiro plano (em contraposição
à turba tempestuosa de seus verdugos e personagens periféricos), e
parece flutuar em consonância com a representação de seus olhos,
esquecidos das coisas deste mundo e perdidos nas miragens do além. Sua
mão direita, como num gesto de feminilidade sentimental e romântica (a
apontar o corpo físico, em contraste com a evasão dos olhos), enfatiza a
emotividade latente e arrebatadora da cena evangélica. |
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A visão em “grande
angular” propicia às obras do artista um perspectivismo
desconcertante (dado por linhas imaginárias em diagonal) e
imprime quase sempre dimensões superlativizantes ou aumentativas
à figura central. Esta, descon-siderada nas leis das
representações realistas, se assoma e se avoluma em contorções
rítmicas em meio à perturbação dinâmica e “teatral” dos corpos,
dando-se a impressão de que Cristo é mesmo o filho do Pai
(essência infinita) que se fez homem (natureza finita).
Mortalidade e divindade se corporificam nas tramas da tela e
milagre das tintas. O vigor cromático dado pela irisação de
luzes contrastantes (o púrpura metálico em confronto com os tons
baços ou enevoados ao redor) determina que a organização
plástica da obra supere a dimensão do visível, aparentada ao
mundo pulsante e, por meio de procedimentos simbólicos, anuncie
a dissipação gradativa das correlações com os espaços terrenos
para o alcance idealizado das plagas divinais e transcendentais.
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El Greco. O
Espólio (1577-79). Óleo s/ tela, 285 x 173 cm, Sacristia da
Cate-dral de Toledo. |
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Esse pendor para a
abstração ocorre mesmo quando o artista enfocava temas
tangíveis. Numa espécie de cartão postal subjetivo, eis a
tradução da velha Toledo que, na gradação da terra para o céu, é
paulatinamente esvaída da mate-rialidade verdejante e pedregosa
de sua paisagem, e retratada debaixo de um agongorado e
misterioso painel de enigmas: |
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(detalhe) |
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Vista de
Toledo (1597). Óleo s/ tela, 121 x 108 cm,
The Motropolitan Museum of Art
(Nova Iorque) |
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4. Pinturas e Repinturas |
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Nas cerca de duas centenas de
telas que produziu, El Greco usava modelos vivos, miniaturas
articuláveis ou desenhava de cabeça até chegar ao esboço principal
esforçadamente conseguido. A partir duma concepção primária, costumava
produzir diversas variações ou réplicas do mesmo esboço, às vezes
marcadas por amplos intervalos de tempo. A visão equivocava de que
“pintava com rapidez”, em vista da profusão célere de suas concepções,
contradiz com o rigor com que se debruçava diante duma ideia, labutando
incansavelmente para chegar às expressões fundamentais de cada detalhe
em harmonização com o todo. Reparemos na singeleza das mãos que
acariciam, elas sozinhas a enfatizarem ou a emotividade quase infantil
ou feminina do Cavalheiro com a Mão no Peito, ou a resignação
santificada de Cristo ante o padecimento da cruz ou em meio aos algozes
que lhe arrancarão as vestes, nas diversas versões de Cristo Abraçado à
Cruz e O Espólio: |
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Às vezes demorava dois, quatro
anos ou mais anos para finalizar uma obra e não recusava solicitações de
encomendas vindas de todas as partes da Espanha e países da Europa
(convivia em seu atelier com vários ajudantes e aprendizes). Hoje,
diante de seus quadros em museus e galerias de arte de todos os
continentes (no Museu de Arte ‘Assis Chateaubriand’ de São Paulo, o MASP,
há uma das versões de O Êxtase de São Francisco, produzido entre
1590-95), às vezes se tem a impressão de tratar-se da mesma pintura,
tamanha coincidência de elementos que compõem o enfoque do tema,
enquadramentos das formas no espaço e constância das mesmas cores sempre
usadas de forma simbólica. Ainda que conservasse seus estudos e
rascunhos, não há como não admirar no artista sua extraordinária memória
visual que permitia com que suas criações, mesmo que fisicamente
distantes entre si no espaço e no tempo (vendi-as para colecionadores e
instituições sacras de diversas partes), permanecessem vivas e presentes
dentro dele, prontas para serem repintadas. Sugerem também que o artista
realizava uma revisitação ritualística àquelas obras, pintadas como atos
sinceros de devoção e louvor religioso. Reparemos as versões de Cristo
Abraçado à Cruz a seguir, realizadas com a diferença de dezoito anos
entre uma e outra. Contra o céu borrascoso e ameaçador, o Messias
plácido, resignado e com os olhos em fuga para o além, cumpre o desígnio
do martírio para nos purificar. |
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1. Tela de 1580. 105 x 79 cm, The
Metropolitan Museum of Art (Nova Iorque). 2. Tela de 1602. 108 x 87 cm,
Museo del Prado (Madrid) |
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O tema da “purificação do templo”, não muito comum na
tradição da pintura, atesta como diversas versões da mesma composição
saíam de seu estúdio. Nesse caso, faz referência simbólica às heresias
de seu tempo, assunto de especial importância à Contrarreforma, ação
sociopolítica (de ideologia católica) absolutamente fervorosa na cidade
onde vivia. A Expulsão dos Mercadores do Templo, além da famosa versão
da Galeria Nacional, de Londres, há a versão de 1568-70, da Galeria
Nacional (Washington DC), a de 1570-75 (Instito de Artes – Minneapolis,
EUA), concebida sob influência direta da renascença italiana, a versão
no Museu de Belas Artes (Boston) e, três décadas após, a de 1600, da
Coleção Flick (Nova Iorque), e a de 1600-14 da Igreja de San Ginés de
Arlés (Madri), estas mais concentradamente barrocas.
Lionello Venturi, referindo-se às diversas variações
sobre a mesma obra, avalia que “os volumes das primeiras versões
executadas na Itália se adelgaçam pela sequência e se tornam no quadro
da National Gallery, de Londres, e naquele da Iglesia de San Ginés, de
Madrid, puras aparições de luz, com as representações do espaço se
reduzindo a indicações simbólicas. Enquanto que no início encontramos a
coexistência contrastante das diferentes tradições, nas últimas versões
a fusão de todas as ocorrências é total e o estilo perfeitamente
realizado”. |
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1. Tela de 1570-75. 106 x 147 cm, Minneapolis Institute
of Arts (EUA). 2. Tela de 1568-70. 88 x 107 cm, The National Gallery of
Art (Washington DC) |
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Os quadros logo acima, quase um preito à escola
veneziana, são bastante parecidos. Foram pintados pouco antes de o
artista instalar-se em Toledo, em 1577. Na versão do Instituto de Artes,
de Minneapolis, no canto inferior direito, El Greco compõe um grupo de
personagens que, de costas para a cena, ao mesmo tempo em que se ligam a
ela como “comentaristas”, representam explícita homenagem a artistas da
renascença italiana que o influenciaram no começo: retrata os bustos de
Tiziano, Michelangelo, Giulio Clovio e Rafaello. A partir dessa
concepção realizada à base de semicírculos formais enfeixando os
personagens e o geometrismo de certos elementos da composição, El Greco,
devoto inspirado em temas sagrados, exprime em tom eloquente sua visão
emocionante do episódio evangélico em que Jesus flagela com um açoite
aqueles que fizeram de sua igreja um lugar de comércio e profanação. |
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Na versão acima, da Galeria Nacional, de
Londres, repito, o pintor expressa com nitidez metalinguística
seu acercamento à obra de Tintoretto: construções urbanas
servindo de cenário, o piso quadriculado, geométrico,
enqua-dramento de personagens em ação e coloração típica do
maneirismo veneziano (àquela época os próprios artistas
fabricavam as tintas e mantinham a sete chaves o segredo de suas
cores). |
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Expulsão dos Mercadores do
Templo (1600), Óleo s/ tela, 107 x 124 cm, The Flick Collection
(Nova Iorque) |
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Nas formas arquitetônicas, os
baixos-relevos da parede enfatizam a ideia predominante da “purificação
do templo”: como que perifericamente, as cenas do Antigo Testamento da
expulsão de Adão e Eva do paraíso, e do episódio em que Abraão, por
obediência a Deus, sacrifica seu único filho, Isaac.
São referências paralelas que se
conectam e interagem com o tema da “purificação”. Por outro lado, a
concepção plástica do artista se inspira na natureza das imagens
tipicamente barrocas: a cena é expressa como um instantâneo fotográfico
em que as figuras aparecem em movimento. Consagra-se o instante de
barulho e grave reprimenda pela fixação dos gestos incompletos: um
personagem se abaixa para recolher a mercadoria, outro se desequilibra,
outro se atropela em tribulação, outro se protege do açoite, uns
comentam, indignados com o que presenciam, outro observa, ajoelhado, em
expressão tensa, como a ouvir uma interpretação do fato. |
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Expulsão dos Mercadores do Templo
(1600), óleo s/ tela, 106 x 130
cm, The National Gallery (Londres) |
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Numa aparente desordem, no
entanto, os personagens se distribuem de maneira homogênea e unitária,
tanto pelo enquadramento das atrações em cena, quanto pelo cromatismo a
esculpir os panos das vestimentas. Observemos: bem ao centro, como no
cruzamento de duas linhas imaginárias em diagonal, a figura de Cristo,
arrodeada por amarelos flamejantes e poderosamente explosivos,
apresenta-se com vestes em matizes de cores púrpura e azuladas,
incrementadas de formas ondulantes e rápidas de reflexos da luz (o
vermelho simbolizava nobreza). Sustentado na ponta do pé esquerdo e a
mão direita alevantada, a figura do Messias se contorce em espiral, como
num “S” ao revés. Nesse contexto de signos, a forma verticalizada e a
sensualidade de Cristo dão-lhe um aspecto de etérea leveza, pairando no
espaço, a propiciar-lhe o significado de existência enlevada, mais que
de pessoa sujeita às leis da gravidade. A seu lado, para onde se
dirigirá o açoite, a turba agitada e convulsa dos comerciantes forma um
grupo caracterizado pela parcial nudez. Ao lado esquerdo de Jesus, os
apóstolos vestem panos em tons acinzentados, amarelos, verdes e azuis,
no mesmo diapasão de temperatura cromática que remexe em vários
quadrantes do espaço pictórico e salta aos nossos olhos.
A divisão verificada na composição
desta repintura de Expulsão dos Mercadores do Templo, basicamente em uma
figura central e dois grupos laterais, ademais, parece estar sendo
encaminhada por uma espécie de cavalete ou banca de mercador, caída na
parte central inferior da cena. Trata-se de um detalhe periférico e
inanimado a revelar o tumulto. Aberto em ângulo, esse objeto cênico
orienta nosso olhar, simultaneamente, para os lados esquerdo e direito,
onde se situam as duas massas de personagens que se distribuem em torno
de Cristo. Resultado de um problema ocular, o astigmatismo, ou antevisão
do efeito da “visão em grande angular”, a angulação das imagens imprime
maior dimensão à criatura dominante na cena, e que se agiganta como que
a magnificar sua hierarquia divinizada em relação aos seres mundanos.
Essa obra, expressão do que seria
um radical estilo barroco, caracteriza-se, repito, por abruptos e
incisivos contrastes formais e cromáticos. Além dos mencionados, dois
outros são fundamentais. O primeiro se verifica ao compararmos a
convulsão do espaço interior do templo em relação ao espaço exterior,
visto através dos portais em arco e caracterizados como cenários
estáticos (movimentação versus estaticismo). O segundo se verifica ao
compararmos a tribulação dos personagens no espaço interior do templo
com as expressões de alheamento da jovem que assoma à direita da cena,
por um corredor em arcos. Trata-se duma criatura caracterizada pela
ambiguidade tão estimada pelo barroco. Se, de um lado, suas vestes e
gestos lânguidos a revelam como pertencente à orbe dos apóstolos, de
outro, o cesto que traz à cabeça a denuncia como pertencente ao grupo
dos hereges e profanadores da igreja.
Muitos outros procedimentos
ilustram o refinamento de El Greco nessa versão da Galeria Nacional, de
Londres. Os desenhos lineares e contornos típicos da arte renascentista
são substituídos pela construção de figuras com base predominante das
cores com suas manchas e rastros de pincel. Por outro lado, o artista
aplica os tons cromáticos que se submetem mais ao princípio da
significância do imaterial que ao princípio da representação naturalista
e imitativa. As linhas são diluídas pela atmosfera luminosa das cores.
Essa tendência, mais sugestiva que figurativa, repito, participa da
construção do dinamismo visual da obra, intermitente na representação da
vida em ação, teatral em simbologias e insinuações sensório-emocionais.
Com refinamento e exasperação que
prenuncia e ao mesmo tempo sedimenta o ideário barroco, essa Expulsão
dos Mercadores do Templo encerra a identidade espanhola dos finais do
século 16 e limiares do 17, parece que encalacrada na atmosfera mística
da velha Toledo. |
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Devido à atitude inovadora
de nosso pintor, por muito tempo não foi compreendida, pois seu
temperamento não cedeu um til de seu ideal de liberdade e
fantasia para render-se aos preceitos convencionais. René Huygue,
filósofo francês, escreve que “com ele [El Greco] exprime-se a
necessidade que agora o homem sente de escapar à sua condição
carnal, de estirar a forma até ao seu limite, de consumir os
esplendores da matéria para dela se evadir, de acentuar a cor e
a sua estridência até ao clarão da luz, para novamente se unir a
Deus transcendendo-se”. |
(Detalhe) |
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A audaciosa obra do artista,
concebida em estado de êxtase e, algumas vezes, batendo a porta dos
delírios, alheia-se do mundo dos objetos definidos; seus estímulos
ópticos se sobrepõem aos elementos cognitivos de tal modo que, numa
dimensão pré-lógica, é mais sinestésica que intelectual. Põe-nos a
meditar sobre o vão livre que separa a matéria do espírito, o mundo
tangível do prodigioso. Em atos de superação das coisas visíveis, seus
exuberantes quadros solidificam a representação plástica das sensações
metafísicas, dos céus e infernos acesos em nossos instintos e suscitam
os medos. Com a atemporalidade das realizações magistrais, colocam-nos
na corda bamba das visualizações pressentidas. Afirma o pesquisador
Antonio Úbeda: “El Greco está hoje ‘na moda’ porque só nosso tempo
compreende o que há de firme e substancioso naquelas arrogâncias”. Dando
formas aos estados devaneantes, sempre afoito e descontínuo em relação
às estéticas em voga, El Greco insere-se entre os criadores mais
originais e inventivos da arte sacra, nos sonhos de todos os tempos. |
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Referências bibliográficas: |
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Romanes au Greco. Genève: Skira, 1952.
CÁMARA, Alicia, El Greco [Col. El Arte y sus
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DUCHEL-SUCHAUX, G. Guía iconográfica: La Biblia y los
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FRATI, T. La obra pictórica completa de El Greco.
Barcelona: Noguer Rizoli, 1977.
GUINARD, P. Greco. [Col. Le Gout de Notre Temps]
Paris: Albert Skira, 1956. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
HUYGUE, R. Sentido e Destino da Arte [2 Tomos].
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MACHADO. A. “Eisenstein: Um Dialogismo Radical”.
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Madrid: Cátedra, 1981.
RÉAU, Louis. Iconografía del Arte Cristiano [6 Tomos].
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VENTURI, L. Les Grands Siècles de la Peiture – XVI
Siècle. Paris: Skira, 1955, p. 256. |
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Romildo Sant'Anna (Brasil).
Escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
http://www.temmais.com.br/blog/romildo/
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© Maria Estela Guedes
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