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Para além dos romances regionalistas – e aqui podemos
acrescentar “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos –, percebemos o impacto
causado pela poesia de Manuel Bandeira na geração claridosa e “as
reverberações do tema de Pasárgada, colhido da poesia de Manuel
Bandeira, alçaram-no a matriz poética do arquipélago, tendo como seu
principal cultor o poeta Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes) que o legou
entusiasticamente a outros escritores” (GOMES, 2008, p. 115). Dessa
maneira, Osvaldo Alcântara, com maior ênfase, e outros escritores
cabo-verdianos seguem o verso de Bandeira, “Não quero mais saber do
lirismo que não é libertador”, e incorporam o pasargadismo que
inspirou o desejo de evasão para outro espaço conotado a justiça social
e no poder libertador da palavra poética.
Entretanto, o evasionismo proposto pelo pasargadismo e
o desejo de emigrar sofreram severas críticas com o passar dos anos em
razão da insustentável submissão colonial, já com a revista Certeza
(1944), de cariz marxista, e a geração da Nova Largada contrária ao
pasargadismo, ao evasionismo e ao terra-longismo, porém a favor de um
olhar que recuperava as raízes crioulas e de veementes críticas ao
colonialismo, para dissabor da metrópole, mas ainda assim “conservando a
lição do quotidiano e o substracto telúrico veiculados pelos claridosos”
(ALMADA, 2010, p. 3). Vários são os poetas da Nova Largada, dentre
tantos, Aguinaldo Fonseca, António Nunes, Yolanda Morazzo, Ovídio
Martins, chegando a atingir nomes revelados ao final dos anos 1950, tais
como Onésimo Silveira, Mário Fonseca, Oswaldo Osório, Arménio Vieira e
Kaoberdiano Dambará. Essa postura radicalizada dos novalargadistas
é muito bem exposta no poema Anti-evasão de Ovídio Martins, que é
enfático no seu antipasargadismo: Pedirei/ Suplicarei/
Chorarei// Não vou para Pasárgada// Atirar-me-ei ao chão/ e prenderei
nas mãos convulsas/ ervas e pedras de sangue// Não vou para Pasárgada/
Gritarei/ Berrarei/ Matarei// Não vou para Pasárgada (ANDRADE, 1977,
p. 48.)
Na década de 1950, as guerras de libertação das
colônias africanas tornaram-se uma realidade e revelavam ao mundo o
absurdo do colonialismo, os ideais pan-africanistas espalhavam-se pelos
continentes, fundava-se o PAIGC (Partido Africano pela Independência de
Guiné e Cabo Verde) sob a liderança de Amílcar Cabral, mas antes este
jovem lançava um importante texto “Apontamentos sobre a poesia
cabo-verdiana”[i]
(1952), premonitório no dizer de Manuel Ferreira (FERREIRA, 1985, p.
304), acerca dos novos rumos que caberiam aos futuros atores da
literatura cabo-verdiana assumirem após o chão fecundado por
Claridade e Certeza:
Os seus poetas – o contato
com o mundo é cada vez maior – sentem e sabem que, para além da
realidade caboverdiana, existe uma outra realidade humana de que não
podem alhear-se. Sentem e sabem que não é apenas em Cabo Verde que há
“gritos lancinantes pela noite silenciosa” e “homens vagabundos” que
“fitam estrelas que a madrugada esculpiu”. (...)
Mas a evolução da poesia
cabo-verdiana não pode parar. Ela tem de transcender a “resignação” e a
“esperança. A “insularidade total” e as secas não bastam para justificar
uma estagnação perene. As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser
transcendidas. O sonho da evasão, o desejo de “querer partir” não pode
eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos poetas – os que continuam
de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no
drama comum – compete cantá-lo. O caboverdiano, de olhos bem abertos,
compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na
mensagem dos poetas. (CABRAL, 1976, p. 21).
Na virada dos anos 1950 para 1960 a intransigência da
ditadura salazarista também seria sentida, a repressão aumentaria sua
escala desencadeando as guerras coloniais. Por outro lado, poetas como
Mário Fonseca, que parafrasearia a “postulação irritada da fraternidade”
(FONSECA, 1998, p. 166) de Aimé Cesaire, marcam a mudança de postura de
sua geração e o antipasagardismo seria radicalizado em
suplementos literários como Suplemento Cultural (1958),
Boletim Gil Eanes (1959) e Seló (1962). Ruptura que seria
escancarada por Onésimo da Silveira, representante da “geração que não
vai para Pasárgada”, no seu “Consciencialização da literatura
caboverdiana”, livro com severas críticas – e injustas, frisamos – aos
claridosos, motivando o poeta e ensaísta a afirmar que:
a literatura caboverdiana,
estando profundamente ferida de inautenticidade, não traduz nem produziu
uma mentalidade consciencializada e daí se ter tornado, como não é
difícil verificar, em título de prestígio da elite que a vem encabeçando
e não em força ao serviço de Cabo Verde e suas gentes.
(SILVEIRA, 1963, p. 8)
O cantalutismo passaria a prevalecer na poesia,
a independência das duas pátrias-irmãs assim sonhada por Amílcar Cabral
se concretizaria.
Entretanto, com as décadas de 1980/1990, as
transformações político-sociais não se realizam e os escritores começam
a sentir a necessidade de discutir os rumos que a nação seguiu, assim
como os caminhos da poesia, estagnados desde então. Segundo Carmen Lucia
Tindó Secco:
Após a euforia da
independência, no final dos anos 80 e início de 90, a novíssima
“geração” de escritores começou a denunciar o vazio cultural no
Arquipélago, além de constatar que a fome e a miséria não foram
extintas. Houve uma desilusão em relação aos valores cantalutistas que
animaram a poética da independência. A poesia então, deixou de cantar
apenas o social e passou a operar também com os sentimentos individuais,
com o existencial e o universal. Esse novo lirismo se caracterizou por
construções metapoéticas e passou a repensar tanto os caminhos sociais,
como os da própria poesia. (SECCO, 1999. p. 20)
Salutar recordarmos as pertinentes observações contidas
nas epístolas de Timóteo Tio Tiofe (heterônimo de João Manuel Varela) e
merecedoras de nosso logro acerca das responsabilidades das gerações
posteriores à Claridade – nesse momento por um prisma diferente
do mencionado por Cabral –, como muito bem apontou o poeta em sua
“Primeira Epístola ao irmão António”, datada do ano de 1974. As críticas
são incisivas diante do panorama literário do país, pois Tiofe aspira
que
(...) os nossos poetas
sejam mais exigentes na sua preparação cultural e na factura da sua
poesia que os seus predecessores. A poesia cabo-verdiana está numa
encruzilhada. Possuímos um antepassado de valor Jorge Barbosa.
Precisamos ultrapassá-lo para fazer progredir a poesia do nosso país. (TIOFE,
2001, p. 136)
e assim encerra:
Nunca me cansarei de
proclamar: para nós, escritores de hoje, tal é a maior herança que nos
deixaram os homens da Claridade. Ela não é pequena, mas, justamente
porque reconhecemos a nossa dívida, é importante saber onde pararam, até
onde chegaram, para podermos ir mais longe. E aqui recordo: eles
lançaram as bases duma “escrita cabo-verdiana” e cabe agora aos que
seguem dar uma certa envergadura a essa escrita específica e
estruturá-la, torná-la, numa palavra, digna do nome de literatura.
(idem, 2001, p. 144)
Posteriormente, Tiofe, na “Oitava Epístola ao irmão
António”, atestaria a transformação da poesia cabo-verdiana e a
compreensão da poesia de cariz metafísico de seu outro heterônimo, João
Vário. “Há já alguns anos que muitos patrícios começaram a aceitar esse
tipo de poesia, como a praticá-la. Em suma, mudou-se o paradigma” (TIOFE,
p. 303). A poesia de Vário sofreu pesadas críticas e foi legada ao
ostracismo como bem apontou o poeta e ensaísta José Luis Hopffer Almada
no artigo “Que caminhos para a poesia cabo-verdiana? Parte II – O
Exemplo já antigo de João Vário” (ALMADA, 2010), desde que sua escrita
veio à luz em pleno período cantalutista. Tal discriminação já
havia sido relatada por Manuel Ferreira e que reclamava a reintegração
de João Vário às letras do arquipélago:
Trata-se de um corpus a ser
reintegrado, como se disse, na literatura cabo-verdiana, ainda que os
temas, as mensagens, a linguagem, independentemente da sua importância e
qualidade, não se ajustem àquilo que se vem convencionando chamar-se a
cabo-verdianidade. Mas (...) não há mais fundamento para uma
discriminação deste teor, exclusivamente de caráter estético-ideológico.
(FERREIRA, 1986, p. 63-64)
Como veio a emergir nas décadas de 1980/1990, o
panorama mudou com a empolgação de uma nova geração de poetas que
começava a se revelar em publicações diversas como Sopinha de
Alfabeto, Voz di Letra, Ponto e Vírgula, Aríope, Raízes, Fragmentos
etc. até serem reunidos na Mirabilis – de veias ao sol – antologia
dos novíssimos poetas caboverdianos, organizada por José Luis
Hopffer C. Almada. No prefácio da obra, Almada faz analogia à flor do
deserto, a mirabilis, e procura mostrar a força de uma geração
amargurada com os descumprimentos das promessas feitas pela revolução, e
assim exprimir a força do verbo poético como local de reflexão do tempo
em que vive:
Fustigada pelos ventos (da
incompreensão!), pelo sol (da hipocrisia!), pelos tempos vários do mau
tempo literário, desse tempo querendo-se vegetação literária. No
deserto, cresce a geração mirabílica, feita signo na margem desértica do
mar. De veias ao sol. As veias da indagação. As veias alagadas da terra
das estradas, da poeira do dia-a-dia, do massapé dos campos, do lixo dos
caminhos suburbanos, do desespero recoberto de moscas, baratas e outros
vermes. As veias loucas do mar, do marítimo lirismo dos dias afogados
nos ciúmes dos montes. As veias, veias de vida, de morte, de desespero,
das quatro estações místicas do que se medita no refúgio do silêncio.
Veias do camponês e da enxada neste coito de séculos com a terra. Ao
sol, hipócrita por entre a bruma e os cerros. Sol, signo de luz. Sol que
ilumina. Sol que queima e ofusca o caminhar. Sol dependurado da
perseverança secular.
Mirabilis – de veias ao
sol. Geração mirabílica indagando o sol.
“No Deserto cresce a
Mirabilis”. Diz o poeta Orlando Rodrigues. “Embora de veias ao sol”.
Adita Rodrigo de Sousa, para que das imagens do deserto cresçam as
palavras da nossa geração e delas reste, ao menos, o cadáver da poesia.
Sugere Mito, o poeta plástico, ou que o cadáver se metamorfoseie em flor
e espinho, num panorama azul, de onírico, sugere Mito, o plástico poeta.
Uma única rosa é a Mirabilis, e dela queda um sol de sangue. O sol da
poesia mirabílica. (ALMADA, 1991. pp. 26-27)
Hoje é com bom grado que “a existência de um sistema
literário cabo-verdiano consolidado tem servido de esteio aos novos
poetas e ficcionistas para trilharem caminhos diferenciados”, como
afirma Hopffer Almada (ALMADA, 2010, p. 3). Sendo assim, ter a liberdade
para revisitar a obra de Manuel Bandeira sem as referências à “estrela
da manhã” ou ao pasargadismo, ou ao antipasargadismo,
podemos dizer que é uma conquista consolidada pela chamada geração
mirabílica, frisando sempre a heterogeneidade dessa geração que
jamais se configurou um grupo unificado. Fato este que não impede de
receber críticas daqueles que acusam esses poetas de “inautenticidade e
apatridia literárias”, pois se deveria respeitar
uma imaginada ou real
autenticidade literária caboverdiana, devendo ser, por isso, tratada
como património e causa intocáveis e devidamente preservada de
malfazejos desvios, contaminações e outras conspurcações estéticas,
estético-ideológicas e temáticas
(ALMADA, 2010, p. 1).
No entendimento dessa crítica, isso seria assaz grave,
pois esse “novo evasionismo teria como característica diferenciadora e
distintiva a fuga pura e simples ao tratamento de temáticas tipicamente
caboverdianas” (ALMADA, 2010, p. 1).
Todavia, a arte é feita de transgressão, de desafios ao
cânone estabelecido e ninguém melhor que o cabo-verdiano da ilha de
Santiago, Filinto Elísio Correia e Silva, para representar essa
postura em seu já longo percurso literário, que passa pela poesia,
crônica e romance com enorme desenvoltura e excelência. Dentre tantos
títulos, destacamos Li Cores & Ad Vinhos (poesia, 2009) e
Outros sais na beira mar (romance, 2010).
O sempre ousado Filinto Elísio recupera uma
característica de Manuel Bandeira que foi pouco explorada na literatura
cabo-verdiana, trata-se da verve irônica que tanto marcou a versátil
obra poética do modernista brasileiro. A ironia e o seu poder de
desestabilizar, ampliando e ressignificando os sentidos anestesiados
pelo cotidiano encaixa-se perfeitamente na subversão da linguagem,
naquilo que Roland Barthes assim enuncia como “trapacear a língua. Essa
trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da
linguagem” (BARTHES, 1977, p. 16). Trapaça praticada por Elísio desde a
saudosa e provocadora revista Sopinha do Alfabeto (1986),
idealizada pelo artista plástico e poeta Mito Elias, que foi lançada
durante o cinquentenário da revista Claridade e “contribuindo
assim para o combate à quase letargia cultural em que nos mergulhamos.”
Nos poemas de Bandeira a ironia aparece de diversas
formas. Portanto, é importante recordarmos a sua presença na poesia como
ao final de “Pneumotórax”: “ – O senhor tem uma escavação no pulmão
esquerdo e o pulmão direito infiltrado./ – Então, doutor, não é possível
tentar o pneumotórax?/ – Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
argentino” (BANDEIRA, 1976, p. 63).
Ou seja, diante do inevitável mal, a ironia faz-se
presente e eleva a pertinência da arte na vida. De outra maneira, o
sujeito lírico recorre à banalidade do cotidiano para expor a
tragicidade do homem no “Poema tirado de uma notícia de jornal” e com o
seu final inesperado que, de tão estúpido, chega a ser irônico: “João
Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
barracão sem número / Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/
Bebeu/ Cantou/ Dançou/ Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e
morreu afogado.” (idem, p. 73).
Célebres são os poemas onomásticos reunidos no livro
Mafuá do Malungo, como se o poeta quisesse decifrar signos ocultos
nos nomes, sente-se estimulado a criar poemas inteiros a partir de
antropônimos, desvelando a ludicidade com que trata a poesia, como no
singelo Eunice: “Eunice meiga,/ Eunice linda.../ Que mais ainda?/
– Eunice Veiga!” (idem, p. 197). Decifração que o faz apelar para o
neologismo, diante daquilo que a vivência diária está impossibilitada de
oferecer e das regras normativas e restritivas da língua determinam, que
somente a palavra poética, libertária por si, pode manifestar: “Beijo
pouco, falo menos ainda./ Mas invento palavras/ Que traduzem a ternura
mais funda/ E mais cotidiana./ Inventei, por exemplo, o verbo teadorar./
Intransitivo:/ Teadoro, Teodora. (idem, p. 136).
As figuras de som como a onomatopeia e as propostas
modernistas de transgressão irônica apropriam-se de temas populares e do
folclore, alimentando o fazer poético e tornando-se marcantes no poema
“Berimbau”: “Os aguapés dos aguaçais/ Nos igapós dos Japurás/ Bolem,
bolem, bolem./ Chama o saci: - Si si si si!/ - Ui ui ui ui ui! uiva a
iara/ Nos aguaçais dos igapós/ Dos Japurás e dos Purus.” (idem, p. 56).
O jogo lúdico com as palavras possui uma associação
fundamental na poesia de Bandeira, a musicalidade. Esta originada da
própria essência da poesia, ainda assim recriada pelo poeta que se
apropria de canções populares para transformá-las em poemas, tais como
“Na rua do sabão” com os seus versos iniciais “Cai cai balão” e em
“Rondó do Capitão” e o seu “Bão balalão”. Nos dois poemas a ironia se
apresenta de forma melancólica. No primeiro, um menino pobre monta o seu
balão e o solta, só que as outras crianças da sua rua tentam derrubar o
seu balão, mas “como se o enchesse o soprinho tísico do José”,
alcançando o céu e caindo longe dali, “caiu no mar – nas águas puras do
mar alto” (idem, p. 55). Enquanto no segundo, versa-se a partir do
suplicante pedido para que o senhor capitão retire o peso do coração do
sujeito lírico, a amargurada esperança.
Após essa breve apresentação das manifestações
transgressoras da ironia e da ludicidade com as palavras na poesia de
Manuel Bandeira dentro do panorama literário brasileiro de sua época,
podemos passar para o poema “arre_pendência” do seu novo livro,
Me_xendo no Baú, de Filinto Elísio, e tentarmos demonstrar como a
vertente irônica está presente na obra deste praiense, quais os recursos
utilizados e quais as associações com Bandeira.
Filinto Elísio tem pleno domínio do ritmo, da métrica,
da musicalidade da palavra poética, assim como Manuel Bandeira. No poema
“arre_pendência”, a transgressão da linguagem proposta por Elísio
remete-nos à ironia e à musicalidade do brasileiro, mas a transgressão
da linguagem se anuncia na contaminação de termos e sinais gráficos da
internet na poesia. Elísio criativamente faz farto uso das consoantes, o
que nos faz recordar Bandeira no celebradíssimo poema “Os Sapos”: “O meu
verso é bom/ Frumeto sem joio./ Faço rimas com/ Consoantes de apoio”
(idem, p. 25). Esse predomínio das consoantes é uma característica da
linguagem usada pelos jovens que suprimem as vogais em seus textos na
internet. Enquanto isso, o sujeito lírico elisiano associa o som dos
fonemas ao sentido das palavras: “S exílio/ S lírio/ C de cílio/ e de
você/ esse delírio” (ELÍSIO, 2011, p. 49). Valendo-se da ironia e da
ludicidade com as palavras, Elísio nos apresenta esse delírio
surrealista de fortes conotações concretistas e assim incorporando a
importância do aspecto visual ao poema. Para além do exposto,
contemporâneo que é e procurando expandir os limites do fazer poético,
apropria-se da maneira como as consoantes são empregadas na web: “acha o
povo/ seu/ k/ minho” (idem, p. 49).
O seu propósito de “desoficinar a poesia” neste
Me_xendo no Baú chama atenção pelo farto uso da tecla “underscore”
- “_” - (ou underline), deslocando nossos sentidos como no
título do poema, um neologismo que já nos impressiona por si, mas também
pela carga de ironia que contém, “arre_pendência”. E não há
arrependimentos nos riscos aos quais o poeta se submete.
Depreendemos que a poesia elisiana se propõe inovadora,
por isso o sujeito lírico afirma aos leitores: “existencializa-te/
cristaliza-te/ upgrada-te” (idem, p. 49); ou seja, há uma necessidade de
renovar os olhares perante as novas tecnologias que pertencem ao nosso
cotidiano, procurar absolver a revitalização da linguagem poética e
assim encarar as experiências que o sujeito lírico anuncia. Entretanto,
parecendo prever o apedrejamento que será exposto com suas
transgressões, o sujeito lírico protege-se inserido no caminho
vanguardista escolhido, provoca com as novas manifestações da arte – o
grafitti e a webart – e solicita: “mas/ não me piches/ no graffiti/ nem
me_gapixels/ em photoshop” (idem, p. 49).
Além do diálogo com a ironia e a ludicidade de
Bandeira, este “arre_pendência” de Filinto Elísio apropria-se dos versos
iniciais do poema “Rondó do Capitão” do poeta brasileiro. Este poema foi
mais um dentre vários inspirados nas cantigas infantis e temas
folclóricos. Elísio, que brinca com as palavras como Bandeira, recria os
versos da cantiga, “bão balalão/ senhor capitão”, fazendo deste uma
anáfora e renovando o segundo verso: “bão balalão/ cabeça de cão” e “bão
balalão/ não tem coração” (idem, p. 49) para em seguida expor livres
associações de ideias, típicas do automatismo surrealista.
Consciente de que “broxa rima” (idem, p. 49), o sujeito
lírico experimenta a onomatopeia em “ta te ti to tu/ ou/ tu to ti te ta”
(idem, p. 49) para logo após incorporar o olhar crítico e castrador dos
que rejeitam as inovações, “(andas maluco tu)” (idem, p. 49). O sujeito
lírico segue fazendo arte com as palavras, explorando a polissemia,
homenageando pensadores, degustando o sabor da palavra, “viva sartre/
arte/ tarte de limão” (idem, p. 49), para encerrar de forma inusitada e
irônica essa grata transgressão poética: “consorte// queres beijo/ ou/
pão de queijo?” (idem, p. 49).
Assumir a transgressão da linguagem poética requer uma
dose excessiva de coragem, algo que a obra literária de Filinto Elísio
vem demonstrando com enorme escala ao longo dos anos. Neste
arre_pendência, e podemos estender para todo o conteúdo de
Me_xendo no Baú, Elísio parece estimulado pelos versos do
poema-manifesto “Poética”, de Manuel Bandeira, no qual o vate brasileiro
afirma estar “farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado”,
portanto vaticina: “Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos
bêbedos/ O lirismo difícil e pungente dos bêbedos/ O lirismo dos clowns
de Shakespeare// - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”
(BANDEIRA, 1976, p. 63-64).
Sendo assim, explorando novas possibilidades semânticas
que os recentes meios de comunicação podem oferecer, mantendo a
preocupação e a busca incessante por uma palavra cada vez mais depurada,
Filinto Elísio navega com desenvoltura entre a tradição e a modernidade
do sistema literário cabo-verdiano com uma escrita que recupera de
Manuel Bandeira a sua ironia e a sua ludicidade, de maneira
desassombrada das reivindicações sociais da “estrela da manhã” ou de
quaisquer referências pasargadista ou antipasargadista
comuns às letras do arquipélago, porém de extrema necessidade em suas
épocas.
Com seu “hino de liberdade”, o poeta apresenta-nos uma
original proposta poética que provavelmente incitará e incidirá aos mais
jovens a busca por novos caminhos, mostrando-os a vitalidade da poesia
produzida em Cabo Verde, da possibilidade de se percorrer uma trajetória
que pode se afastar do telurismo evasionista identitário ou de
reivindicações sociais novalargadistas e dialogar com propostas
vanguardistas distantes daquelas que determinada crítica de alguns em
algures, de natureza tradicionalista, pretende manter engessadas. O
poeta praiense demonstra que ainda há um vasto mar a ser navegado,
transgredindo e ressemantizando palavras, deslocando imagens e sons,
desestabilizando os sentidos inertes e esmorecendo aqueles que querem
uma poesia sem riscos. Filinto Elísio, este vate, faz da sua
insularidade na literatura de Cabo Verde um vasto mar a ser navegado.
Sem medo. |