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Há que se começar este texto com
um protesto. Desta feita, não se trata de um texto sobre um “defunto-autor”,
tampouco um “autor-defunto” (sem delongas ontológicas). Aos gênios, a
morte não é desígnio inexorável, portanto talvez não faça sentido o
título que se propôs para este evento literário. Vide a discussão sobre
a fidelidade de Capitu, a mais fértil e longeva polêmica da história de
nossa literatura, vencendo de braçada as rocambolescas tramas
teledramatúrgicas tão caras ao “taylorismo-entretenitivo-televisivo”
marcadamente hegemônico em nossa tradição cultural recente. Somente
mesmo um bruxo (epíteto que lhe é indiscutivelmente justo) para operar
tal sortilégio póstumo e perdurar quixotescamente diante de forças tão
onipotentes, tal qual infinito espólio “tubercúlico” (em forma de
batatas) em um tempo de magos e bruxinhos de popularidade e prestígio
inimagináveis para os parâmetros do seu tempo.
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O feito merece uma visada mais
atenta. A partir desta simples constatação sobre a controvérsia em torno
da suposta violação de Capitu de seus votos matrimoniais e tendo sido
mencionada a similitude do modo peculiar de combate do “Cavaleiro de
triste figura”, Don Quijote de La Mancha, com a perenidade da herança
Machadiana, proponho que façamos um “exercício conjecturante” sobre os
resultados de uma utópica “correção de rota”, onde os “moinhos de vento”
a se desafiar seriam a iniqüidade e a estultice que há razoável tempo
vêm campeando nesta terra ensolarada. Em lugar do modelo Romanesco
clássico consagrado pela mídia hegemônica (indisfarçavelmente
sustentáculo de um complexo estado de coisas cuja discussão aqui
redundaria estéril), adicionaríamos boas doses de Machado de Assis ao
conteúdo veiculado diariamente pelos canais de TV, como se faz com a
adição de flúor à água corrente para a prevenção das cáries ou do iodo
ao sal de cozinha para as moléstias da tireóide. Discorrerei adiante
sobre as conseqüências que se me afiguram inelutáveis dentro desta nova
configuração hipotética (por mais arbitrário que possa parecer, seria
novamente ocioso listar e justificar todas as premissas das inferências
a seguir, mas como trata-se de um “livre exercício conjecturante”, me
permito a liberdade de não entrar em minúcias argumentativas dada a
exigüidade de tempo e espaço).
Talvez
experimentássemos uma redução drástica das demandas irracionais de
consumo e das inúteis e onerosas idas e vindas aos consultórios
psicanalíticos e prateleiras restritas das farmácias (algo muito a
calhar em tempos de “felicidade química”, a evocar o ideal antecipado
pelo "emplasto sublime" de Brás Cubas). A ironia marcante de sua obra é
como um elixir expurgatório. Machado é um “colocador de pulgas” atrás de
orelhas, exatamente como aquela que foi companheira de Bentinho durante
toda sua jornada. Além do mais, é suposto que as bases tradicionais das
uniões conjugais estáveis viessem a passar por profundas revisões,
devido à prática desta verdadeira modalidade de “prevenção em saúde
psico-social” avant la lettre – sem citarmos os prováveis ganhos em
poder crítico-reflexivo das camadas médias da população. Ao lidar com a
esmerada construção subjetivista e com o jogo meta-discursivo de
Machado, somos convidados a “espiar” a fragilidade e os inconvenientes
da condição social do existir, penetrando suavemente nas sendas brumosas
das pulsões transgressoras mal sublimadas da psique humana (com a
licença da apropriação do jargão eivado de ecos teóricos do Sr. Freud).
Portanto, não parece uma conclusão demasiado forçada guardar tais
expectativas, ainda que estes padrões, por não serem aferíveis, estejam
amaldiçoados pela incomensurabilidade - a lepra da pós-modernidade,
miséria desse tempo de Deuses em forma de tabelas e gráficos.
Mas
abandonando estes devaneios futurológicos e reposicionando os vagões nos
trilhos, cabe agora dissertar efetivamente a propósito da importância de
sua obra um século após seu “encantamento” – eufemismo cunhado
posteriormente por Guimarães Rosa para minimizar o estigma do ato final,
o aniquilamento definitivo do ser. A obra de Machado de Assis é
reatualizada a cada vez que o homem moderno (ou pós-moderno, como
preferirão alguns) se ressente de sua fragilidade ao lidar com a
liberdade e suas encruzilhadas, anunciada pela falência prematura das
utopias, instituições e grandes verdades pretensiosas, herdeiras das
tradições iluminista e positivista – devidamente diagnosticadas e
satirizadas pela cáustica verve niilista de Machado. Machado de Assis
renasce “Rodrigueanamente”, condenado a ser póstumo, vítima da própria
genialidade. Habilíssimo enxadrista, se vale com maestria do recurso
aporético, além de conduzir os dramas psicológicos de suas personagens
mantendo um esquema narrativo minucioso, conferindo aos seus escritos um
verniz de universalidade e atemporalidade. Deste modo, enquanto o homem
for este ser cindido pela contradição e pelo devir – o que lhe é
inescapável, dada a sua própria compleição - sua presença será
fundamental. Logo ele, que tanto destacou o herói do enfado, da
casmurrice, da margem, do quase-ser; o silêncio, a solidão, o rir-se de
si mesmo, a mesquinhez da vida acossada pela primazia dos valores da
aparência sobre os da existência e a sombra implacável da finitude. A
glória dos heróis épicos que jazem sob a terra tal qual as batatas, o
petróleo e os defuntos, dando seqüência ao eterno ciclo de morte e
renascimento é irmã da glória conquistada por Machado de Assis – a
imortalidade através de sua obra e de seus feitos. Não há nada de
metafísico nisso. A busca inconsciente da imortalidade é própria do
fazer humano, seja no intercurso sexual, no plantio de sementes
arbóreas, nas manifestações artísticas ou até mesmo na simplicidade de
nossa rotina – caso renunciemos ao direito de legar nossa miséria às
próximas gerações - amarrando cadarços, regando plantas ou coando café:
Casmurramente, Machadianamente, dissimuladamente. |