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Tzevetan Todorov, num livro escrito com o proverbial hábil articulado
dos intelectuais franceses de qualidade e, mais que isso, parisienses a
despeito da sua origem transnacional, concluiu – foi o que o tempo do
século lhe permitiu – que o fantástico residia acima de tudo nessa
hesitação sentida pelo leitor. Mas isso era e tinha de ser
decorrente da escrita do autor, fundamentalmente o fantástico
reside nessa escrita e nos meios existentes para que ela excursione por
esse plano. Daí que hoje, a não ser por equívoco, por falta de motivo
ou, mesmo, por falta de capacidade inventiva, os escritores já não
cultivem o género fantástico, a não ser que lhe acrescentem, de forma
bastante natural mas perturbante, um fortíssimo elemento de terror.
O que, claro, é um sinal dos tempos, dos nossos tempos devastados,
uma vez que o fantástico tem a ver com o medo e seus volteios e
não com o terror e suas circunstancias. Os contos e as novelas
fantásticas – e o mesmo se verifica no cinema e na pintura – foram
contaminadas e mesmo substituídas pelos relatos sobre serial-killers
e mass-murders psicopatas ou no pleno uso da sua crueldade.
Deu-se pois uma inversão na realidade societária, que é o reservatório
no qual se baseia o campo de manejo dos autores antes de, após a
difusão da escrita, estas ficarem mescladas, interligadas,
interpenetradas. Como referiu apropriadamente Louix Vax, “A arte
fantástica deve introduzir terrores imaginários no seio do mundo real”.
(Eu colocaria aqui um pormenor: introduz sempre e é devido a
esse facto, pois o fantástico é sempre proveniente do território
da escrita, da arte em geral e é só aí que se exerce pese à
simulação/convenção da existência do fantasma). Ora, pelo
contrário, hoje por hoje é o real que introduz terrores bem reais no
mundo do imaginário. Dado que nos faculta perceber, ao constatar
esta evidencia, que é bem certa a frase que nos diz que a verdade, ou se
quiserem a realidade, tal como a luz do dia é fatal aos monstros
imaginados, sendo ad contrari o ventre do qual brotam os monstros
reais da nossa existência perversamente socializada.
No fundo, por mor da agudização dos conflitos internos-externos, o
fantástico aparece-nos agora como um país recordado onde a imaginação se
refugiou, ela que é caçada pelas esquinas p’la protérvia dos donos da
Terra que, curiosamente, já nem dissimulam os caninos mas antes os
justificam com, até, certa galhardia…
Sendo encarnações simbólicas do Mal, os monstros fantásticos são hoje
brincadeiras algo evasivas em comparação com os monstros sociais que
determinados poderes forjam e erguem para que a sua estratégia resulte e
acrescente o seu estatuto de gente sentada numa cadeira curul.
Drácula ou Frankenstein – a não ser que os vejamos como representação
dos que ocupam a realidade circundante de topo – fazem bem triste
figura, pobres diabos em que os tornaram, ao pé de gente bem real como
um Ceausescu, um Kim il Jong, um Stalin, a corte nazi ou um ditador
sul-americano ou, nos últimos tempos, um qualquer chefe fundamentalista
das diversas gamas em equação. Ou um desses protagonistas
centro-europeus ou médio-africanos que liminarmente despacham milhares a
sangue-frio sem grande esforço de consciência.
O
jogo, o jogo de imaginar personagens de pesadelo, tornou-se um jogo
mortal. Mais grave – deixou de ser jogo e é agora uma espécie de
lembrança nos mecanismos do quotidiano. A questão fulcral não está na
leitura, como Todorov postulou, mas na escrita. O dono do
fantástico é o narrador, tal como na vida social o são os que governam a
massa de quem fingem depender pela representatividade democrática. Tal
como num filme, encenado com aprumo, tudo é em última análise o corpo
sensível do realizador, desde as personagens às peripécias, desde o
décor ao elenco.
Os monstros do fantástico que se transmutou enquanto os anos passavam –
e constatá-lo é quase um lugar-comum que o cinema por exemplo capturou
com oportunidade e argúcia - andam agora pelas ruas sob a fatiota de
comerciantes, de professores ou de modelos fotográficos, de
farmacêuticos ou de cabeleireiros, de simples agentes da autoridade,
médicos e bancários. (Todas estas profissões, aqui fica o detalhe, têm a
ver com fitas ou livros conhecidos, como o leitor proverbialmente atento
recordará).
E
é assim que de forma um pouco requentada ou arteira, num mundo feito
palco inquietante para personagens carnais assustadoras, um ersatz
do fantástico é, imagine-se, utilizado para distrair da realidade
hostil: ultimamente, a moda (que não é moda, mas golpe
financeiro-societário bem artilhado e consciente) dos filmes de vampiros
para adolescentes, transfigurando os monstros em pequenas vedetas que,
pois é esse o seu enfoque, encantam os pobres ingénuos de maneira
singular.
Assim, por um lado, se exorcizam fantasmas perigosos do quotidiano e se
amenizam os focos traumáticos e, mesmo, as neuroses que inçam o dia a
dia e que aqui e ali ameaçam explodir.
O
fantástico na Arte é como que um sinal que assegura que a imaginação
livre ainda não se esclerosou. Criando lugares negros e assombrados como
em o “Manuscrito encontrado em Saragoça”, os contos “científicos
modernos” de Pere Calders, as equações de Jorge Luís Borges ou as
metáforas de Juan Rulfo ou Cortazar – isto no universo ficcional
hispânico – as incursões poético-trágicas, permeadas de uma profunda
nostalgia, de Bruno Schulz e Claude Seignolle ou, num outro plano de
inquietação e rigor, de Maurice Sandoz, Jean Lorrain ou Jean Ray, o
fantástico lança um repto à perversidade e ao cinismo do mundo da
necessidade e faz-nos saber sem lugar para dúvidas que o único sítio
onde devia ser lícito existir medo e monstros – o imaginário artístico –
está sendo submergido pelo sangue bem real e triste dos desvigamentos
sociais provocados pela inépcia dum mundo que vive entre os destroços do
direito romano aprés la lettre, as seduções ora
apaziguadoras ora perturbadoras da interactividade e as
simulações dos fideísmos ocidentais com, bem dentro do horizonte, os
fanatismos de tipo oriental de boa cepa medievalista.
Assim, o mundo do fantástico apela para a nossa compreensão, tanto dos
fenómenos interiores como exteriores, para a nossa capacidade de
insurreição ante as injustiças, as caquexias e as corrupções éticas
oficiais ou privadas, para o humor negro ou colorido e para a liberdade
de optar, que não é negociável. Não esqueçamos, antes o lembremos sem
ceder a chantagens: as tentativas contemporâneas, levadas a efeito por
associações profissionais de orientação geralmente “fideísta” ou de
obediencia, que capciosamente tentam eximir criminosos e assassinos à
punição com o pretexto de que a culpa é da sociedade, devem encontrar
pela frente a nossa determinação de mostrarmos que a culpa é,
sim, dos seus constituintes mais da sociedade que
os forjou e que aqueles geralmente controlam para efeitos do seu
interesse ilegítimo e opressor.
E
saibamos seguir esse apelo do fantástico, saibamos excursionar
imaginativamente por essas noites negras onde as feras compósitas, sendo
um dado essencial, desaparecem no entanto varridas pelo cantar do galo e
pelo ar purificado das manhãs incorruptas.
2. Do
Fantástico na Literatura – viagem concisa
Um universo que aceite firmemente o sobrenatural encontra-se perto do
maravilhoso mas longe do fantástico. Pelo contrário, um universo
profundamente realista é aquele onde a ambiguidade fantástica se pode
manifestar. Um vulgar cidadão supersticioso, ante uma “aparição”
diabólica, sente-se aterrorizado mas não surpreso. A surpresa pode
senti-la um honesto cavalheiro racionalista armado de tremendas
certezas, frente a um acontecimento insólito.
O
fantástico, mais que a derrota do cartesianismo é a volatilização
daquilo que o sustenta: uma sociedade que perdeu o senso – e mais que o
senso o gosto ou o apego – das realidades (veja-se o mundo dos
talk-shows, onde a realidade apresentada visa criar um tipo de
realidade cobrindo/substituindo todo o real social exterior, complexo e
contraditório).
O
fantástico alerta-nos para o facto de que a qualquer momento podemos
desaparecer da face da terra. Com efeito, quem conhece o momento da sua
morte? Quais, adicionalmente, os mecanismos do Tempo? O tempo é nosso
aliado pois vivemos dentro dele ou, pelo contrário, é uma espada sempre
suspensa sobre o nosso pescoço? Passado, presente e futuro entrelaçam-se
no relato fantástico e, pois, no fantástico que se convencionou existir
na realidade. Mas o fantástico fundamentalmente tem a ver com o
presente, esse instante infinito e evanescente que tão depressa surge
logo se vai e nós com ele. O fantástico tal como o presente – que reside
perpetuamente entre o passado e o futuro – equilibra-se entre o mundo
real e o sobrenatural hesitando sempre. Pode dizer-se, com
inteira adequação, que no sótão da Casa cresce uma excrescência carnosa
que assim que tenta tocar-se imediatamente se desfaz, para voltar a
reaparecer assim que nos afastamos. O fantástico contemporâneo é de
ordem conceptual, como nos contos de Pere Calders “A estrela e o
desejo”, “Coisas da providência”, ou no de Borges “Tlon,
Uqbar, Orbis Tertius”, onde para citarmos Vax os manejos do
estranho se entrelaçam com os da inteligência.
O
herói-vítima moderno verificou com inquietação que o seu saber, o seu
conhecimento e a sua cultura já não lhe fornecem as necessárias armas
miraculosas para enfrentar a maldição mas que são, pelo contrário,
um motivo mais para tremer, um território mais de pavor e desesperança.
(Assim como os estabelecimentos de ensino de alto coturno, na prática
desta contemporaneidade, já não garantem um acréscimo de saber e de
meios de vida, antes são lugares onde os utentes com terrível frequência
são votados ao deus-dará uma vez que nas suas expectativas campeiam a
desigualdade, a visão do desemprego e, até, o cínico apadrinhamento
partidário).
Em suma, o fantástico corrente contemporâneo é filho do desespero,
ao passo que o fantástico tradicional provinha do desconhecimento, da
fissura entre o que é real e o que pode não o ser. Perpassa na
sociedade a ideia difusa, muitas vezes inquieta e confusa, de que a
dúvida entre real e inusitado possível (selo canónico do fantástico)
só existe no plano em que os próceres do mando nos mentem, não
nos fornecendo as verdadeiras razões que guiam o mundo e
permitem, no plano da escrita, ver claro e fazer claro.
É
isto que explica que nos últimos anos se tenham multiplicado como
cogumelos as novelas, romances e até ensaios propiciando relatos que de
forma impetuosa abordam as congeminações fraudulentas a que se teriam
entregue agremiações como o Vaticano e grupos iniciáticos, autores
célebres, estados e associações, antigos monarcas e argentários, etc.
Há pois um fantástico em acção, o relacionamento societário está
coberto por uma pátina que provoca no vulgar cidadão a sensação de
não saber às quantas anda como sói dizer-se.
Atentemos em que, como mais uma vez Vax assinalou, o fantástico é também
a presença do homem na fera ou da fera no homem. A ferocidade do
tigre é natural e não nos apavora. Mas pense-se num tigre com cabeça de
homem ou num homem com cabeça de tigre. Como é que pode haver coisas
assim? É dessa dúvida horrorizada que o fantástico brota. Mas neste
momento, devido aos avanços da tecnologia e da ciência de ponta,
antolha-se a possibilidade de isso poder de facto existir. Mais: há a
possibilidade de pessoas com a nossa aparência serem nasciturnos
modificados tendo dentro deles, monstruosamente desenvolvidos, todos os
instintos de depravação e de perversidade que os seus presuntivos
utilizadores programaram. (Não falando na utilização manipulatória e
cínica dos mídias). E é desta ultrapassagem do cidadão pelo Estado
suposto que nasce a angústia e o desespero que o fantástico moderno
aponta mediante a escrita em que a dúvida passou para o campo que se
interroga sobre a legalidade e o abuso em que parece terem-nos
mergulhado.
E
não se resolve este impasse metafísico metendo a cabeça ou a caneta – ou
o aparelho interactivo – na areia…
A
poesia é a transfiguração da realidade. O fantástico é o transtorno da
realidade. E dessa catarse possibilitada pela escrita nasce uma poesia
específica, diria antes: um halo de poesia que roça os campos da
nostalgia e da tragédia e que, dess’arte, permite que se ultrapasse a
amargura que emerge da fugacidade inerente à vida, ao tempus fugit
fundacional.
A
poesia, bem vistas as coisas, violenta as leis da escrita para nos levar
mediante a desconstrução a que procede à beleza e ao saber. No
fantástico é a violação das leis da lógica comummente aceites que nos
transporta titubeando, repletos de confusão, pelos recantos dessa terra
inquieta. A poesia projecta-nos num universo encantado, o fantástico
mergulha-nos num mundo onde todas as nossas certezas se estilhaçaram. Do
fantástico solta-se um hálito poético de feição assustadora e lúgubre,
fascinante e entontecedora – e só consegue isso se os textos que o
perseguem não procurarem dar à vida a poesia e sim o
conflito entre o real normal e o sobrenatural mefítico que jaz dentro da
mais estarrecedora realidade, subitamente posta em causa e aparentemente
transformada em algo que não se sabe bem o que seja mas que não nos
gratifica.
Deixemos durante alguns segundos o nosso olhar vaguear por pequenos
exemplos, para iluminarmos em tom de recreio uma certa função de
leitores encartados: pense-se, como na novela de Prosper Merimée “A
Vénus de Ile”, numa estátua plasmada num parque ajardinado. As
estátuas, tal como os manequins e os bonecos, são sempre vagamente
assustadoras pois parecem-se em demasia com as figuras de carne e osso.
Na figura petrificada da estátua há sempre uma sugestão de vida
possível, de animação, ainda que a nossa razão e a nossa experiencia nos
garantam que tal não pode verificar-se.
Na novela referida há a suspeita de que uma estátua saiu do seu estado
petrífero para estrangular um noivo demasiado atrevido que com ela, para
fazer espírito, contraíra um matrimónio burlesco. Há indícios que podem
tomar-se por positivos, mas o caso pode ser o resultado da superstição
ambiente ou levado à conta de imaginação excessiva, bem aproveitada por
um assassino hábil e empreendedor.
O
que não há dúvida é que Alphonse de Peirehorade morreu mesmo com o peito
marcado por vergões arroxeados e o pescoço torcido. Obra da estátua
escarnecida ou artimanha vivaz do rival espanhol a quem ele humilhara no
decurso dum jogo da pela?
Num relato policial este plot seria apenas um motivo parcial de
encenação e estaria ali apenas para carregar o enredo de um perfume de
mistério, pois a breve trecho se inflectiria noutra direcção fazendo
desabar as premissas de cunho metafísico, dado que naquele género tudo
se desenrola verdadeiramente no chão sólido do quotidiano real. Na
novela fantástica, pelo contrário, a sequência de acontecimentos
horríficos ou angustiantes não terminam num apaziguamento da descoberta
nem sequer a têm como alvo. Em geral, o final de um relato fantástico ou
faz permanecer os motivos de angústia, num articulado engenhoso ou abre
novas interrogações tenebrosas. A explicação, se assim se lhe pode
chamar, levanta novas perplexidades de mau cariz.
Digamos que esta característica, esta feição de inacabamento, esgar de
humor negro amoravelmente acintoso, tipifica o fantástico como um
género aberto e, por isso mesmo, maior e laborado por autores de
qualidade superior.
Daí que o relato fantástico recue ou desapareça nos períodos de
conturbação ou exista debilmente nos países onde, por mor ou da miséria
social ou do fanatismo fideísta, laico ou não-laico, a existência civil
esteja sujeita às penas da desqualificação ética, moral ou de timbre
baixamente social, como sucede entre nós, que nunca et pour cause
tivemos literatura e arte fantástica – com ligeiras excepções de
desenquadrados eventuais - que não fosse vestibularmente débil ou
epigonal e imitativa.
Casa
do Atalaião, Janeiro de 2011
ns
Bibliografia
Louis Vax,
“A arte e a literatura fantásticas”
Pere Calders,
“Cròniques de la veritat oculta”
Jorge Luis Borges,
“Ficciones”
Claude Seignolle,
“As maldições”
Tzevetan Todorov,
“Introdução ao fantástico”
Maurice Sandoz,
“O labirinto e outros contos”
Marcel Brion,
“L’art fantastique”
Bruno Schulz,
“As lojas de canela”
Eric de Monferrand,
“Sur le fantastique”
Roger
Caillois, “60 relatos de terror – selecção e
introdução”
Claude Roy,
“Arts fantastiques” |