REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 15

 

 

 

1.   As ordens religiosas perderam as suas características militares após a conquista do Algarve, em 1249. A de Cristo foi a que melhor manteve ainda este cariz, pois esteve sob a administração do Infante D. Henrique, de seu sobrinho e afilhado, D. Fernando, um dos filhos mais novos do rei D. Duarte e depois, sobretudo, com D. Manuel I, o filho mais novo deste D. Fernando e neto de D. Duarte.

Por volta de 1440, estavam os seus freires autorizados a casar e, em 1505, encontravam-se dispensados do voto de pobreza que já se não detecta, nem com esforço, nas reformas do clausulado dos seus Estatutos no Séc. XIV (1321 e 1326) e muito menos, com o Infante, um século mais tarde, desde 19 de Maio de 1426.

Na base deste espírito, residia fortemente a ideia de manter um acesso muito reservado e um carácter francamente elitista.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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JOÃO SILVA DE SOUSA

A Covilhã e a Ordem de Cristo

 

                                                   

 

Nova regulamentação, ou aditamento à anterior, data de 2 de Outubro de 1449, poucos meses depois do desfecho de Alfarrobeira que tomou lugar em Maio desde ano.

Estes citados Estatutos de 1449 ratificam a localização da sede da Ordem em Tomar, depois de ter transitado de Castro Marim para Castelo Branco. Dispõem sobre a obrigatoriedade de os seus feires, comendadores e sergentos terem o dever de se deslocarem sempre a cavalo e de envergarem, em sessões solenes, roupagens especiais de escarlata, seda e ouro, e tecidos bordados, primando-se por materiais importados, ricamente confeccionados e tingidos. Contudo, o seu trato devia ser amável embora reservado, o que deixa antever que o seu regedor, o Infante D. Henrique, era um homem que apreciava o luxo e a distinção e não tão-somente, a figura sinistra e apegada à religiosidade extrema com que o desenharam e retractaram nos anos Sessenta e anteriormente: um homem de preto e de chapelão, sentado, pensativo, num rochedo, a olhar o Oceano. O Poeta, colocou-o em seu trono, com o seu manto, com o mar aos pés, como o único imperador que tem o mundo em suas mãos.

De facto, também não fora comedido, quando organizou umas festas em Viseu para receber seu irmão D. Pedro, a fim de comemorarem, em conjunto, na companhia dos seus criados, a decisão da tomada de Ceuta, em que tanto folgou e dançou, animadamente, à luz de altas tochas, e, porventura, melhor terá bebido, pois encomendara dos melhores vinhos da região e do Estrangeiro. O mesmo sucedeu, quando D. Pedro, nas suas terras no vale do rio Mondego, lhe retribuiu o convite. Não perdia também nenhum Natal na Corte, na companhia da Família Real.

Os rendimentos financeiros da Ordem atingiam montantes inesperados, superando o assentamento da maior parte dos mais destacados  senhores feudais do Reino.

Gravitando à sua volta, existiam confrarias, de acesso, em princípio, também muito restrito, embora de carácter popular. Começam com os homens reunindo-se na paróquia da aldeia, no adro de uma igreja da cidade, nas encruzilhadas ou nas esquinas das ruas, junto aos oratórios, como, por exemplo, em Almendra, onde Santa Maria deva mil e tantos dias de perdão a quantos aí iam rezar.          

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

      

Aqueles oratórios pertenciam a um dado culto religioso, forne-cendo-se-lhe grandes círios para iluminar os altares, além de algumas moedas para esmolas. Com efeito, estava no espírito dos confrades praticarem actos de solidariedade, favorecendo os associados caídos em desgraça: órfãos e viúvas, lavradores e artífices arruinados ou doentes...

(Capela românica de S. Martinho, na Covilhã)
 

A Confraria do Espírito Santo, muito ligada, no reinado de D. Dinis à Ordem do Templo, com a extinção desta, vêmo-la unida à Ordem de Cristo, com larga representação de Tomar aos termos da Covilhã.

Para além das obras de caridade, funcionavam como cooperativa de pastores e agricultores, cardadores da lã e do linho, operários tintureiros a estas ligadas e criadores de gado, sobretudo lanígero, uma das principais actividades da vila da Covilhã e em todo o Almoxarifado da Guarda, correndo na direcção do rio Tejo, separando-o, desta feita, da Comarca de Entre Tejo e Guadiana ou do Alentejo, como mais tarde passou a ser designada. Ao Infante atribui-se ter ordenado a construção da Capela de Santa Cruz, anos depois de ter sido mandada restaurar por D. Luís, filho de D. Manuel I.

 

Tal como a Ordem de Cristo, as suas confrarias (e referimo-nos a elas usando o termo “as suas”, dado haver uma dependência tão directa), detêm os seus ritos de iniciação, missas, predicações, divisas, insígnias e trajes próprios, cujo significado está reservado aos seus membros. Nos banquetes e nas festas, as comendas da Ordem com os seus templos podiam abrir-se ao público, a fim de celebrar mistérios e milagres.

(Capela de Santa Cruz do Calvário, na Covilhã)
 

Nas ruas, associados ou não aos mesteirais, organizam procissões, montando estrados para cenas teatrais.

Com o decorrer dos tempos, haverá comendas que se especializam, com as suas confrarias, na música religiosa, em cânticos e na elaboração minuciosa de livros de Horas... conforme registou Damião de Gois na Descrição da Cidade de Lisboa, a pp. 59-60.

Outras dedicam-se ao profano: ao teatro e a jogos florais que reúnem poetas e menestréis, actuando para audiências conjuntas: populares e aristocratas, identificando-se, entusiasticamente, como no-lo informa Garcia de Resende, quando este afirma, em dedicatória ao rei, que, para além dos grandes feitos, também são dignas de memória muitas “cousas de folgar & gentilezas amores justas & momos”: cfr. Cancioneiro Geral.

   
 

2.    O julgado da Guarda tinha obrigatoriamente 50 besteiros do conto que se encarregavam, em turnos anuais, da defesa do centro urbano. A Guarda era uma cidade, tinha o seu bispo e dela, ou melhor, do seu Almoxarifado fazia parte a Covilhã, sem bispo, consequentemente uma vila, mas com 30 besteiros, no mesmo tipo de rotatividade anual, ou seja com cerca, sempre para mais e nunca para menos, de 6 390 almas (Rebelo da Silva multiplica o número de besteiros do conto por 213), o que correspondia sensivelmente ao indicado no censo de 1527 – 1532, do tempo de D. João III. Bem à vontade entre 3000 e 3500 eram homens em idade militar.

Gravitavam, à sua volta, no século XV, as aldeias e vilas de Catrão, Belmonte, Benviver, Valezim, S. Romão, Folhadosa e Seia, terras do Infante do Henrique; e as comendas de Cristo: Castelo Novo, Proença, Bemposta, Castelejo, Torre do Arrizado, Valezim, e as Idanhas (a Nova e a Velha). Umas vinham já das reformas levadas a efeito pelas Ordenações de 1321 e de 1326. Em torno destas comendas, como à volta das terras do Infante já citadas, gravitavam outras peças com nomes bem explanativos da sua utilidade: Moinho, Linhares, Vinha do Carriço, Horta de José Mendo e tantas outras, num total, bem próximo das 174 leiras de vinho, frutos, leguminosas, pão e linho, sobretudo, terras de lagareiros e moedores, por onde transitavam almocreves, recoveiros e marceiros. Eram terras que andariam entre os cinco e os 25 besteiros do conto. As áreas à volta destas, eram sobretudo casais ou agrupamento de casais com um mínimo de 5 almas e um máximo de 60, quando se agrupavam em doze, tomando a designação de bacalar. Os que detinham o seu domínio útil eram os bacalários. Havia sempre, em cada casal, um cairel ou caseiro, isto é o cabeça possoeiro ou cabecel do casal que respondia pela sua casa e pela  terra em torno desta. Aí produzia-se de tudo um pouco à volta da Covilhã, numa área de termo de 5 léguas, ou 25 km, ao redor. E os forais (de D. Sancho I, de 1186 e de D. Manuel I, de 1510), além das Inquirições de D. Duarte de 1433-34, só avançam com a figura do casal que tivesse a função de servir a terra com carradas de mato, lenhas e madeiras, além do transporte de frutos e pedras de linho alvo, e o pagamento de uns galináceos, ovos, alhos e cebolas. São raras, mas tomam a designação de carpentárias, ou seja de casais com determinadas obrigações, e as obrigações em si mesmo consideradas.

Por perto, juntamente com os casais, vêem-se quintas ou quintanas e quintãs, granjas e celeiros, entre outras peças, como as jeiras, ou seja um determinado perímetro de terra que corresponda a um dia de trabalho por um homem de cavão.

Havia ainda as fogueiras, casais que, anualmente, pagavam à Coroa, certos foros – em pão alvo, por exemplo -, que por aqui se designavam de fogos ou fumádegos, donde fogaça e fogaceiro, tão ligados às festas do Espírito Santo nos Açores, em Tomar e não sei se aqui ainda há algo que se lhes assemelhe ou delas derive. 

Assim, podemos contabilizar, embora com larga margem de erro mas por defeito: 42 000 habitantes, donde 35 000, seguramente, encontrar-se-iam em idade militar.

Deste modo, podemos inferir, com toda a certeza, que a Covilhã não se afastaria muito de Lamego, Viseu e da Guarda, sedes de almoxarifado. E, a propósito, considerando a Covilhã, com Castelo Branco, dependentes da jurisdição da Guarda, a Covilhã estaria incluída numa área jurisdicional com o dobro da de Viseu e da de Lamego e com um número de habitantes que superavam estas duas também. Lamego, Guarda, Viseu e Castelo Branco pertenciam à extensa Comarca da Beira, sensivelmente a Beira Interior dos nossos tempos.

Tudo isto para dizer o quê? Que a Covilhã tinha, nos séculos XIV e XV, uma importância económica considerável, com a sua feira anual, desde 1260, estabelecida por D. Afonso III, adentro do seu pano de muralhas, de que hoje existem apenas alguns trechos, com a duração de oito dias, no mês de Agosto, e com a obrigação de solvência ao rei de portagens e demais direitos não mencionados mas que cremos se refiram às sisas, pagas pelos vendedores e pelos que da terra, do seu termo e pelos que de fora vierem a ela (imposições, decerto, aliviadas, por ser terra do Infante, tornando-a, pois, numa feira semi-franquada). E conta também com uma defesa que, pela sua proximidade com a linha de fronteira com Castela, lhe proporcionava uma certa autonomia própria e, inclusivamente, uma fonte de recrutamento de soldados, cavaleiros e escudeiros, além de pés terra, para as hostes régias, ao tempo de Ceuta (1415), dos reforços militares desta (1419, 1424 e em outras alturas), Tânger de triste desfecho (1437), Alcácer Ceguer  (1458), Casa Blanca ou Anafé (1468), Arzila e Tânger (1471), um pouco mais tarde, Safim e quantas mais... Também aquando das reivindicações dos direitos de Joana e Afonso V ao trono de Castela, enfrentando Fernando e Isabel, em 1475-1476, com a batalha de Toro, neste ano. As fronteiras tinham de estar bem defendidas.

   
 

3.   A nossa vila havia de dar à Casa do Infante D. Henrique homens de bom nome, por acções que os notabilizaram. Homens que no “aparelho administrativo” (passo expressão) desempenharam funções de vulto. Referimo-nos a Afonso André, escudeiro, nomeado para altos cargos militares e da justiça; Álvaro Martins, escudeiro, criado na Casa henriquina, que chegou a almoxarife da Guarda; Aníbal Pereira, também cavaleiro; um Covilhã que foi arauto; Fernão da Covilhã, escudeiro; Gil Vicente, criado do Navegador e muito ligado à Ordem; o tão falado Mestre Guedelha, cirurgião; João Farinha, besteiro do monte; o ouvidor do rei, Lopo de Parada, da Casa do Infante e outro, Lourenço Eanes; dois homónimos e ambos escudeiros-criados, Luís Fernandes: um deles fora meirinho; Pedro Machado e Rodrigo Tavares, escudeiros e criados. Entre muitos mais que a nomear, seria enfadonho para quem nos está a ouvir, neste momento.

Mas, vejamos os  números, apenas relativos à Covilhã e a homens da Casa do Infante, o que é sempre mais expressivo e claro: 

-         nos diferentes grupos considerados: 14;

-         privilegiados: a grande maioria, naturalmente;

-         nomeados para serviços do rei: 9

-         total na Beira: 125

-         total na Covilhã, sem contar com os seus termos: 37, ou seja: 29.6% , além dos ligados à guerra e às navegações em que foram encontrados 69, entre 1415 e 1458.       

Que conclusões podemos tirar daqui?  

          1.ª   Os que citámos foram apenas um reduzido número de profissionais, nascidos ou moradores no concelho da Covilhã, entre os 886 homens e mulheres da Casa do Infante que pudemos apurar, porquanto, como é fácil entender, só por acaso, a documentação da época refere gente anónima, do povo, ou de feitos comuns para a época, gente sem rosto e sem nome.

          2.ª     As Chancelarias régias não se referem a intervenções directas de cada qual nas campanhas de África nem nas navegações. Se analisarmos, mesmo à lupa, a profissão de cada qual, nada sabemos. Se nos detivermos sobre a nomeação ou as nomeações que couberam a cada qual, elas estão maioritariamente ligadas ao serviço militar, de defesa, e da justica, como vimos: coudéis, besteiros, ouvidores, meirinhos locais, que eram todos da Casa do Infante e que actuavam em funções para a Coroa, beneficiando, deste modo, como facilmente se compreende, o próprio Navegador que os orientaria em proveito próprio nos resultados a apresentar ao erário régio.

          3.ª Todos eram privilegiados, de ordinário, com a isenção do pagamento de impostos ao rei e ao concelho, com a dispensa do serviço militar, excepto se fosse para servir o rei, engrossando a sua hoste ou a do Infante D. Henrique; podendo deslocar-se armados e em besta muar e isentos ainda de serviços concelhios e do pesado e complexo encargo da aposentadoria.

   
 

4.  Desde quando o Infante D. Henrique se tornou Senhor da Covilhã e ainda Administrador Geral da Ordem de Milícia de Nosso Senhor Jesus Cristo? Como foi possível a D. Henrique assegurar cerca de cem viagens marítimas até atingir a Libéria, a, sensivelmente, 6.º latitude Norte, bem perto da linha equatorial e quatro ou cinco deslocações ao Norte de África, em socorro de Ceuta e como participante em novas conquistas: Tânger e Alcácer Ceguer? Que papel teve a Ordem de Cristo em tudo isto?

São questões a que tentaremos responder, brevemente, acerca de importantíssimos acontecimentos que tomaram lugar com a acção pronta dos homens das suas terras, entre elas a Covilhã e áreas ao redor. 

1.ª  Em 1402, D. João I e D. Filipa de Lencastre apressam-se a reduzir o pessoal de suas Casas e das dos Infantes já nascidos, a fim de diminuir despesas. São despedidos, conselheiros, escudeiros e cavaleiros, criados ou não, capelães e cantores, moços de capelas, outros oficiais de suas Casas, jograis e monteiros, entre muitos outros. A 7 de Abril, seis anos mais tarde, em 1408, os monarcas constituem as casas dos Infantes, agora já mais aliviados de tantas despesas, fixadas nas Cortes de Évora, tomando o rei para o efeito, desde 1 de Maio daquele ano, o terço das sisas de que havia antes prescindido.

A seguir ou mesmo já antes, o monarca troca terras com a nobreza para formar as Casas de D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique. Esta situação opera-se até 1411, ano em que, a 17 de Abril, institui carta de património ao Infante D. Henrique. Ainda aqui, neste diploma, não se fazem quaisquer referências à Covilhã. Mas as terras surgem muito juntinhas na Comarca da Beira e D. João I fica-se por aqui, naquele equilíbrio sadio que tanto o caracterizaria nos anos que correspondiam aos começos do século XV.

A 20 de Agosto chegaram a Ceuta e cinco dias depois, os Altos Infantes são armados cavaleiros na mesquita maior da cidade, então já transformada em Igreja cristã, a qual só viria a receber bispo a 5 de Março de 1421, com a indigitação de D. Frei Aimaro de Aurillac, inglês que fora confessor da rainha D. Filipa. Regressados a Tavira, a 2 de Setembro de 1415, D. João I, nomeia D. Pedro como Duque de Coimbra e o Infante D. Henrique, Duque de Viseu, tratando-o, na ocasião, por Senhor de Covilhã. Este importante senhorio, a alcaidaria-mor do castelo da vila, a frontaria-mor da Beira foram tudo cargos por ele assumidos, com o poder de nomear alcaides, coudéis, anadéis, monteiros e outros que tinham principalmente a ver com a defesa da zona e de toda a área em questão: a Comarca da Beira.

A juntar a este processo ininterrupto de nomeações, D. João I dá um novo passo: suplica ao papa Martinho V que conceda o Mestrado da Ordem de Santiago da Espada a seu filho D. João, em 1418. Ora esse seria o primeiro passo para que o rei de Portugal pudesse tentar vir a ter uma palavra importante, e primeira !, na designação dos arcebispos, bispos e regedores das Ordens, sendo, só posteriormente, confirmados pela Santa Sé. Com a Ordem de Cristo passou-se o mesmo.

Estamos, aliás em crer que, quando em 1411, o rei D. João I fez a importante doação da carta de património a D. Henrique com terras localizadas na Beira e, em 1415, o fez Duque de Viseu e senhor da Covilhã, traria em mente, dado o estado de doença já adiantado de D. Lopo Dias de Sousa, então, administrador-mor da Ordem de Cristo, fazer seu filho D. Henrique suceder naquela importante instituição. Na Comarca da Beira, grande viria a tornar-se o seu imperium com terras suas associadas às da Ordem de Cristo e às suas Comendas. E assim foi a 24 de Novembro de 1420, ao ser nomeado, a título perpétuo, administrador da dita Ordem. Os freires desta são de imediato informados da nova situação, dada a morte de D. Lopo e o Infante passa a ter confessor próprio, altar portátil e na sua Casa, além de inúmeros capelães, moços de capela e cantores, surgem duas figuras que só, na Casa de Bragança, muito mais tarde, nos foi dado encontrar: o pajem do livro, encarregado da guarda e transporte da Bíblia e o homem da pena que registaria, acima de tudo, anotações nos missais e nos Livros de Horas, glosando e comentando-os.

Mas esta curiosa situação não se verificaria só na Beira. Também no Algarve aconteceu o mesmo. No Sotavento, a Ordem tinha as suas Comendas, à volta de Castro Marim, ex-sede, como Monte Gordo e Junqueira. D. Henrique contava com terras outorgadas pelo rei no Barlavento, de S. Vicente a Lagos, passado por Sagres e pela Vila do Infante. A unir esta vasta extensão de areal, bastidores das nossas intervenções na Expansão, viria a receber o título e cargo de Governador perpétuo do Algarve. 

2.º   A fim de por si só subir em perfeito equilíbrio tão altos degraus, numa escadaria sem fim, D. Henrique, administrador de suas terras (embora património da Coroa), das comendas e terras várias da Ordem de Cristo, com o governo perpétuo da Ordem, do Algarve e do Estudo Geral de Lisboa, as conquistas do Norte de África e ainda as viagens múltiplas ao longo da Costa Africana, teria, por certo, de deter rendimentos inúmeros, até porque a sua Casa, especializando-se cada vez mais, teria de contar com grande número de homens e mulheres, barqueiros, besteiros, um exército pessoal e caravelas bastantes para as variadas missões de aventura, reconhecimento, corso, trato e de guerra também.

Teria de deter um grande e sólido assentamento. E quem quer que fosse o rei de Portugal, nunca nenhum deixou de compreender a questão que aliviava a Coroa mas era suportada pelo Infante, agraciando-o com terras, feiras, privilégios e monopólios. 

A.  Comecemos por um dos mais importantes e mais directamente ligados à Covilhã: a indústria da lã. Em Portugal cedo fez sentir-se uma certa preocupação na tomada de medidas que protegessem os ovelheiros e o certo é que, se acaso, para os guardas dos rebanhos mais não era que um simples modo de vida, para a Coroa, autoridades municipais e religiosas e para os grandes senhores, funcionava como uma outra qualquer fonte de receitas, através dos tributos que se solviam. Para o proprietário do gado era uma autêntica renda.

O Infante detinha a exploração da lã e do seu fabrico. Introduzida em Portugal, desde meados do século XIV, a ovelha merino que pastava, no Verão, no alto das serranias e, no Inverno, descia às planícies, estava protegida, na sua transumância, tal como os seus ovelheiros ou pastores viriam a deter privilégios que lhes permitissem passar a fronteira e apascentar o gado em Castela, regressando depois ao nosso País, sem que pagassem as costumagens que então correspondiam às entradas e saídas, ou, melhor, às pesadas portagens. Tinham-se feito acordos com os responsáveis pelas mestas de Castela e outras autoridades singulares e civis, e o nosso como o gado deles e respectivos pastores gozavam de livre circulação  para correr a raia e cruzá-la. As nossas organizações ad hoc não estariam tão perfeitas como as do Reino vizinho, mas o que havia achava-se devidamente pactuado, autorizado e legislado. E o Infante recebeu importantes rendimentos com esta indústria como, aliás, já detinha com as do linho e do bragal, explorados em torno da Guarda, Covilhã e Castelo Branco.

Fora mesmo um escudeiro, criado do Navegador, de nome Gil Álvares, que D. Afonso V nomeou, a 6 de Agosto de 1456, para escrivão, na Comarca da Beira, dos gados que iam pastar a Castela. Ora sabemos que, nos séculos XV e XVI, havia aí entradas e saídas de gado para e daquele reino. Por  Castelo Mendo que os conduzia a Fuentes del Oñoro; Sabugal e Lageosa a Vilas Rubias e El Payo; Penamacor, a Valverde del Fresno, Hoyos e Cilleros.

Embora não detendo, seguramente, o monopólio dos panos da lã, como o havia nos Açores, o Infante podia dispor da indústria como senhor de suas terras beirãs, em cujas montanhas, pelo menos, predominariam rebanhos de ovelhas que se espraiavam de Lalim e Valdigem, nos arredores de Tarouca à Serra da Estrela. O gado atravessava os lugares serranos da Guarda, Manteigas, Folgosinho, Mós, Gouveia e Covilhã, descortinando-se uma transumância organizada, dispensando-se privilégios aos ovelheiros, nomeando-se um escrivão ad hoc para a Beira e tudo isto regulamentado e protegido por legislação régia que, após 1448, foi incluída nas chamadas Ordenações Afonsinas. No século seguinte, as Ordenações de D. Manuel I, no capítulo das Sesmarias, volta a retroagir para determinações legislativas acerca do gado em geral, da autoria de D. João I e de D. Duarte. A escrivaninha de D. Afonso V também não se esqueceu da confirmação das leis anteriores naquele sentido.

Falámos tão-só da lã e do gado nas terras do Infante. Mas não podemos deixar de fazer referências às terras da Ordem de Cristo, a qual actuou, em benefício delas, e acerca desta actividade deixou na área topónimos a antropónimos explicativos da importância da exploração da indústria. 

3.º   Passemos às feiras. É do conhecimento geral que, além do aluguer das tendas que tinham passado das mãos do rei para a propriedade do Infante, havia que contar com os rendimentos que, mesmo as semi-franqueadas, destinavam ao fisco henriquino: as sisas, a décima, e outras percentagens, além das entradas e saídas, naturalmente. A feira representava, logo à partida, um comércio que tinha sido restabelecido e, se assim o foi, ficou a dever-se aos excedentes que a intervenção da Ordem e da Casa do Infante passou a proporcionar, dado um franco avanço nos instrumentos aratórios e nas demais técnicas, como a adubagem, a introdução do uso prioritário da charrua e a escolha das sementes, por exemplo. Tudo isto já seria suficiente para que se pudessem dispensar braços que transitaram da exclusividade da agricultura para o artesanato, indústrias e a venda dos produtos.    Naturalmente que ambas as instituições só poderiam ter as suas feiras em terras de sua jurisdição. Assim falamos da de Tomar e Pombal, da Ordem; e da de Viseu, Covilhã e Tarouca da Casa henriquina, além de uma outra que recentemente apurámos no Algarve. 

4.º  Um outro importante rendimento para a Ordem e para o Infante D. Henrique eram os impostos que o rei distraiu de si para ambos, além dos réditos do corso. Claro que poderemos, eventualmente, ficar um pouco pensativos, senão mesmo perplexos, pelo facto de dizer-se aqui que a Ordem tirava lucros da pirataria marítima e terrestre. Mas teremos de entender que vivemos tempos em que os interesses do rei, da nobreza, da clerezia, dos mercadores, dos aventureiros nacionais e estrangeiros eram os mesmos e residiam no comércio e em áreas do Atlântico, onde detivessem autorização ou mesmo os monopólios da pesca e do comércio marítimo. A institucionalização do corso é antiga. Mas nunca terá sido tão activa se não quando começámos as conquistas norte africanas e a nossa Expansão na Costa de África. Tudo era desconhecido de todos. E quaisquer milhas que se avançassem davam-nos conhecimentos novos de produtos que íamos encontrando e que, numa primeira fase, antes dos tratos legais, teriam de ser explorados à força e/ou à revelia dos indígenas que nos causavam por vezes grandes problemas. Basta lermos Zurara, para verificarmos que não foram tão poucos aqueles que não regressaram ao reino, por terem metido pés em terras alheias. No que se refere a matérias primas e valiosas, falamos do ouro e da malagueta, entre outros em que também a Ordem estaria interessada. E quando Calisto III, através da bula Inter coetera, em 1456, se dirige à Ordem de Cristo, atribuindo-lhe a espiritualidade das terras africanas, sublinha a edificação de templos e os impostos que a instituição podia lançar, num nível de continuidade que o seu antecessor, um ano antes, enviara outra ao rei de Portugal e a D. Henrique, dando-lhes o monopólio de tudo, até mesmo do inimaginável desde o Cabo Não à Guiné e, desconhecendo até onde poderíamos ir, Nicolau V mandara escrever da Guiné ad ultram. Ora com variados monopólios no Continente, com a administração das ilhas da Madeira e dos Açores e agora, desde 1455, com o exclusivo das navegações atlânticas, a Casa do Infante passaria a contar com investimentos que lhe proporcionariam dividendos de toda a sorte para a manutenção das instituições (a Casa, a Ordem e o Estudo Geral) e o prosseguimento das já tão habituais investidas no Norte de África e na sua Costa Ocidental.

Além dos múltiplos recursos económicos e financeiros que poderiam retirar-se desta nova área, o rei de Portugal isentou o Infante do pagamento de direitos reais e do rei, do relego dos vinhos de Viseu e dos termos de suas terras, incluindo as escarpas e quebradas em torno da Covilhã; além do óleo e peles dos lobos marinhos, do pescado por todo o lado (a dízima nova da pesca no mar de Monte Gordo, o exclusivo da pesca do atum no Algarve, donde se retiravam as corvinas, as sardinhas e as peixotas; a pesca na zona de Peniche, contando com as Berlengas, os Farelhões e o Baleal; as pescas nas Ilhas atlânticas e na Costa de África; o Cabo Trasfalmenar e a pesca), a do coral também; a extracção das madeiras dos pinhais do Ribatejo; o fabrico e venda do sabão branco e preto; o exclusivo da tinturaria do pastel e de tudo quanto mais houvesse para outorgar, em regime de monopólio, em benefício de quem tinha em mãos políticas tão variadas e dispendiosas a desenvolver. Tratava-se de subsídios ou financiamentos, a que a Coroa nunca quis alhear-se, doando algumas (ainda que poucas) contrapartidas, pois o Infante tinha de pagar moradias à sua gente, alimentá-la e vesti-la, fornecer-lhes armas e cavalos, construir casas, infra-estruturas  e embarcações... e, claro está, mesmo com tudo quanto os monarcas seu pai (D. João I), o irmão (D. Duarte), o sobrinho (D. Afonso V) e o Regente (seu irmão, o Infante D. Pedro) lhe outorgaram e confirmaram para todo o sempre, o facto é que os herdeiros do Infante, quando este faleceu em Novembro de 1460, só então se deram conta das pesadas dívidas que ele deixara por saldar.

   
 

5.   Para concluirmos, tentámos sublinhar os seguintes items

A.           D. Henrique foi um verdadeiro homem do seu tempo, perfeitamente enquadrado na sociedade em que viveu, itinerante no espaço continental, com vista à concretização de objectivos múltiplos, pois muito variadas eram também as suas linhas de acção, os campos em que actuava  e aqueles em fora convocado para operar e propor soluções. Há que deixar de pensar, em termos absolutos, que o Algarve fora a sua morada permanente.

B.           A Casa do Infante teve a sua origem, tal como outras coevas, numa tentativa de centralização levada a cabo por seu pai, ao ver-se desapossado de muitos dos bens imóveis, originariamente da Coroa e bem localizados no País. Pretendeu o rei da Boa Memória colocar nas mãos dos filhos parte do que se achava disperso, distribuído por grandes terratenentes que, outrora, tivera de recompensar pelos bons serviços que lhe prestaram, antes e após 1385, nas guerras com Castela e na consolidação da independência nacional. Não fora assim, não se entendia como, em anos de extremo empobrecimento do nosso Tesouro, insistia o monarca em montar casas a seus filhos, mesmo, para tanto, ter de reduzir as suas despesas e de sua mulher.

C.           Os interesses do Duque de Viseu e senhor da Covilhã incidiram em sectores diversos da nossa economia, não descurando valores a bem da do seu País e do seu rei. A Ordem foi administrada em perfeita sintonia com a sua Casa, com idênticos objectivos.

D.           O Navegador interessou-se pelo crescimento e o progresso das gentes das suas terras, pelas comunidades a ele afectas e não menos se empenhou, individualmente, pela situação dos seus criados, apaniguados, familiares e servidores em geral. É de realçar o apego deste senhor feudal ao seu corpo de colaboradores que o acompanharam nos momentos mais importantes da sua vida. Relembrem-se África, Alfarrobeira, a morte de seus irmãos D. Fernando em Fez e D. Pedro nos campos de Alfarrobeira.

E.            Legou um extenso património quase intocável, à Ordem de Cristo e aos seus herdeiros, seu sobrinho e afilhado D. Fernando, Duque de Beja e Mestre da Ordem de Santiago, senhor de Serpa e Moura e ao rei de Portugal, D. Afonso V, irmão deste.

F.            A Casa henriquina, como qualquer outra à época, suscitou problemas perfeitamente enquadrados no plano político de Quatrocentos. Foram por nós vistos alguns dos que se levantaram para lhe darem origem e vitalidade, outros no decurso da vida do seu titular e, por fim, à sua morte, porquanto a atitude do rei não foi de excepção: quis fazer voltar à Coroa muitos dos bens imobiliários, originariamente seus e bem localizados.

Resta-nos ler um poema de Pessoa, que fala do Infante, da sua importância no desenrolar da nossa História. E, se ele era futurologista, há que pensar no que o Poeta nos quis dizer: como hoje, precisamente nos dias de hoje, Portugal tem de reflectir na sua presença na União nova, um entre mais 24 países que dela fazem parte. 

          Qual o nosso papel?

          O que nos falta cumprir? 

                                     “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

                                     Deus quis que a terra fosse toda uma,

                                     Que o mar unisse, já não separasse.

                                     Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

 

                                     E a orla branca foi de ilha em continente,

                                     Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

                                     E viu-se a terra inteira, de repente,

                                     Surgir, redonda, do azul profundo.

 

                                    Quem te sagrou criou-te português.

                                    Do mar e nós em ti nos deu sinal.

                                    Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

                                    Senhor, falta cumprir-se Portugal!”.

 

                                    (Fernando Pessoa, “O Infante”, in Mensagem).

 

 

João Silva de Sousa (Portugal)
Professor do Departamento de História, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico correspondente da Academia Portuguesa da História

 

 

 

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