REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 15

 

 

 

Mentindo

 

Ele avança com o pincel para a tela,

com uma pincelada rápida

tira do céu uma ave.

Recua, reflecte.

Sente pena.

Tira outra.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Agulha Hispânica  
Filo-cafés  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Agulha Hispânica  
O Contrário do Tempo  
Domador de Sonhos  
   
 

JANE HIRSHFIELD

 

Tempo dos damascos

Trad. Francisco José Craveiro de Carvalho

                                                                  
 

Melões  às riscas verdes

 

Estendem-se

por um campo sob as estrelas.

Encontram-se num campo à chuva.

Ao sol. 

 

Algumas pessoas

são assim também -

como uma pintura

sob uma outra. 

 

Um peso inesperado

sinal da sua maturação.

   
 

A mulher do casaco vermelho 

 

Há perguntas a que se não pode responder.

Tornam-se um peso familiar na mão,

pedras lisas tiradas do bolso,

rígidas e frescas.

Os teus dedos percorrem a sua superfície,

acabando por perder-se

no braille do  mundo duradouro.

Olha por qualquer janela, é o mesmo -

as folhas amarelas, a luz a caminho do inverno.

Passa um camião, carregado de madeira cortada.

Uma mulher, de casaco vermelho,

vê-te a observar e desvia o olhar rapidamente.

   
 

Foi assim: estavas feliz 

 

Foi assim:

estavas feliz,   triste depois,

feliz de novo, a seguir não. 

 

Assim por diante.

Eras inocente ou eras culpado.

Tomavam-se medidas ou não. 

 

Às vezes falavas, outras estavas silencioso.

Na maior parte das vezes, parece que te calavas - que podias dizer? 

 

Agora está quase a acabar. 

 

Como um amante, a tua vida curva-se e beija a tua vida. 

 

Não o faz para perdoar -

entre vós, nada há para perdoar -

mas com o  simples aceno de cabeça de um padeiro no momento

em que vê que o pão está cozido. 

 

Comer, também, é uma coisa agora só para outros. 

 

Não importa o que pensarão de ti

ou dos teus dias: estarão errados,

não se aperceberão da mulher errada, do homem errado,

todas as histórias que contarem serão por eles  inventadas. 

 

A tua história foi esta: estavas feliz, triste depois,

dormias, acordavas.

Às vezes comias  castanhas assadas, às vezes dióspiros.

   
 

Nada perdura 

 

"Nada perdura" -

com que amargura o pensamento assiste a cada perda. 

 

"Nada perdura" -

ao mesmo tempo uma promessa de conforto. 

 

Sofrimento e esperança

as duas extremidades da  corda de saltar,

filhas gémeas da impaciência. 

 

Uma  vestida de lã, a outra de algodão.

   
 

Poeta 

 

Está a trabalhar agora, numa sala

que não é diferente desta,

onde escrevo, ou aquela em que lês.

A mesa está coberta com papéis.

A luz do candeeiro seria

suavizada por um abajur, onde

a  sua crueza única  se pudesse diluir,

mas não é; ela tirou-o.

Os seus  poemas? Nunca os perceberei bem,

embora sejam aqueles de que mais preciso.

Nem o  próprio alfabeto que ela usa

eu consigo decifrar. A sua cadeira -

imaginemos se é de pele

ou  lona, de vinil ou verga. Deixemos

que fique  com uma cadeira, o candeeiro sem abajur,

a mesa. Que um ou dois daqueles que  ama

estejam no quarto ao lado. Porta fechada

e de boa saúde os que dormem.

Dêmos-lhe tempo, e silêncio,

papel que chegue para cometer erros e continuar.

   
 

O mensageiro

 

Um dia naquela divisão, um pequeno rato.

Dois dias mais tarde, uma serpente. 

 

Que, ao ver-me entrar,

enfiou logo a longa faixa do seu

corpo sob a cama,

enroscando-se depois como um dócil  animal de estimação. 

 

Não imagino como vieram ou foram  embora.

Mais tarde, o flash não revelou nada.

 

Durante um ano  estive atenta

como se alguma coisa - terror? felicidade? dor? -

entrasse no meu corpo  e depois saísse. 

 

Sem saber como entrava,

sem saber como saía. 

 

Ficava dependurada onde as palavras não conseguiam chegar.

Dormia onde a luz não penetrava.

O seu  cheiro não era nem a serpente, nem a rato,

nem sensualista nem ascético.

Há entradas nas nossas vidas

sobre as quais nada sabemos. 

 

Por elas

os rebanhos a badalarem deslocam-se à vontade,

com  pernas longas e cheios de sede, cobertos de poeira estranha. 

   
 

Perecível, lia-se 

 

Perecível, lia-se na embalagem de plástico,

e por baixo, em tinta diferente,

a data de validade, a data  para tomar a última colher de chá.   

 

Dei por mim à procura:

nas costas das mãos primeiro,

por trás dos joelhos a seguir,

virando cada um dos pés para ver a sola. 

 

Depois nas folhas dos tomateiros novos,

nos gaios brigões. 

 

Sob a mesa de madeira e pedras levantadas, à procura.

Chávenas de café, azeitonas, queijos,

fome, dor, receios -

também estes desapareceriam, sem saber quando. 

 

Que repentinamente então

a estranha  felicidade se apoderou de mim,

como um homem de mãos e boca fortes,

naquela hora de  frágeis perfumes e discordâncias.

   
 

Auto-retrato tardio de Rembrandt 

 

Morto há anos, o cão continua a aparecer nos sonhos.

Olhamos um para o outro com a velha alegria.

Foi sempre um dom seu trazer-me à  realidade - 

 

Que dorme, muda, acorda, se veste, vai embora. 

 

Esta pintura propõe

que a felicidade e a infelicidade

diferem entre si como um balde feito de ouro difere de um de estanho. 

 

 Que cada um deles leva a mesma água.

   
 

Rapidez e perfeição 

 

Que depressa acaba o tempo dos damascos -

basta o vento de uma única noite.

Ajoelho-me no chão, apanhando um, depois outro.

Comendo quantos posso, antes de aparecerem as nódoas negras.

 

 

Jane Hirshfield

Jane Hirshfield é um nome maior na poesia Americana cujo trabalho poético tem sido objecto de reconhecimento variadíssimas vezes (The Poetry Center Book Award, The California Book Award, Finalista do T. S. Eliot Prize etc) e aparecido em, por exemplo, The New Yorker, The Washington Post, The Times Literary Supplement e The Guardian. Ms Hirshfield é muitas vezes convidada para universidades e encontros literários, quer nos E. U. A., quer noutros países.  O seu sétimo livro de poemas, “Come, Thief”, será publicado em Setembro de 2011 e, em 2012, em Inglaterra.

 

 

 

Francisco José Craveiro de Carvalho  (Portugal)
Licenciou-se em Matemática na Universidade de Coimbra. Doutorou-se, mais tarde,  com uma tese em Topologia e  Geometria, sob a supervisão de  Stewart Alexander Robertson, Southampton University, U. K.. Assume uma posição de alguma marginalidade em relação à divulgação daquilo que escreve. Traduziu poemas de Carl Sandburg, Jane Hirshfield, Jennifer Clement, Linda Pastan, Rita Dove..., publicados em opúsculos discretos, que circularam entre  os seus amigos.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL