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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 15
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Ao meu amigo José Augusto Mourão*
“Aceitar
que não se compreende, excepto pela companhia”.
Maria Gabriela Llansol, Ardente Texto Joshua, p. 74
Abertura
O que vou escrever
sobre Maria Gabriela Llansol não é inventado nem metafórico nem é um
ensaio. É a evocação de quem a conheceu, em silêncio, de passagem, em
Colares, Cascais e Lisboa, de quem a ouviu falar breve e espaçadamente,
sobre a sua vida e muito pouco sobre a obra que ia escrevendo - em
particular sobre Ardente Texto Joshua (1998), na sua passagem em
Sintra - de 1996-97 até à sua morte, em 3 de Março de 2008.
Terminarei fazendo
falar fragmentos de
Ardente Texto Joshua[i]. |
EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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HELENA
LANGROUVA
Evocando
Maria Gabriela Llansol
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Tenho olhado, lido, meditado sozinha, num ritmo lento, o possível da sua
obra, na qual encontro beleza, luminosidade, amplidão, sensualidade do
visível e do invisível, o texto como ardência, o diálogo entre o
filósofo Espinosa - que acaba por adoptar: “ o meu Spinoza”- :
Deus sive natura: Deus isto é a natureza e Gabriela / o
“legente” como Deus -Deus sive legens: Deus isto é o legente. A
fusão de quem escreve com quem lê: Gabriela-legente. Um
modo de interrogar, desconstruir o acto de contemplar de santa Teresa de
Lisieux cuja aparição imagina, numa varanda envidraçada, na encosta na
serra de Sintra (Ardente Texto Joshua, 1998). Encontro ausência
de fronteiras, imaginação infindável, cintilação, subtil arte/estratégia
de seduzir e transformar o leitor-legente, fulgor obsessivo, inesperadas
sombras, a procura visionária, constante mutação de ideias, palavras,
objectos, paisagens, figuras - em vez de personagens - de santos,
filósofos, músicos, poetas, assumidos como companhia, visão, não raro em
espaços inesperados, girando em torno de e tocando Gabriela. Encontro o
enigma, continuidade descontínua e eterno retorno, o cosmos
interpenetrante, interpenetrado e difuso, um misticismo difuso, o texto
como mística, um constante estar consigo própria, como filtro de uma
cultura vasta que assume e transforma, como evocação de espaços onde
viveu.
Leio
na carta de Maria Gabriela a Eduardo Lourenço, datada de Dezembro de
1988, após o encontro “Les Belles étrangères”,em Paris, a esperança de
que Eduardo Lourenço possa ajudar os portugueses a lerem a sua obra.
Considera que a sua obra tem de deixar de ser considerada como
hermética: “Muito desse suposto hermetismo deve provir, creio, eu, da
falta de coordenadas de leitura. A maior parte dos portugueses cultos
– ou assim ditos – não leram talvez o que eu li. O que não se viveu de
idêntico não se pode suprir. Mas as bibliotecas podem ser
progressivamente substituídas. Penso que o Eduardo poderá ajudar os
outros a ler-me.”[ii].
Encontro muito mais, que poderia desenvolver em escritos posteriores.
Os
anos em que mais ouvi breve e espaçadamente Maria Gabriela, em Sintra,
coincidiram com os anos dos meus estudos em Inglaterra – equiparada a
bolseira pelo Ministério da Educação. Foram anos de profunda meditação,
continuação e conclusão de quatro livros que vinham detrás, de quase uma
vida, e sua publicação. Tinha muita pena de não ter mais espaço e tempo
para ler em profundidade a sua vasta obra. Maria Gabriela compreendia.
A
obra de Maria Gabriela tem sido estudada já desde 1988, no ensaio de
Silvina Rodrigues Lopes[iii],
a que outros se têm seguido. Continua a ser redescoberta no seu espólio
- em milhares de páginas inéditas-, estudada pelos associados do Espaço
LLansol, por leitores/legentes, em Portugal, na Europa e no Brasil.
Eduardo Prado Coelho viu a sua obra como “escrita que salva, redime,
sustenta o bruxulear de uma luz, abre a vacilação de um caminho, e a
literatura, essa, já começou a ficar para trás”[iv]
. Obra lida como “des-possessão”, por Silvina Rodrigues Lopes[v]
; como “fulgor móvel”, na sua densidade, metamorfose e complexidade,
por José Augusto Mourão[vi];
como “improvável leitura” por Maria Etelvina dos Santos[vii];
como “chave de Ler”, “actualidade” e outros caminhos, por João
Barrento[viii]
; por Maria Etelvina dos Santos e vários outros ensaístas e escritores –
Hélia Correia, Maria de Lourdes Soares, Pedro Eiras, Cristiana V.
Rodrigues e outros -, nas publicações do Espaço Llansol[ix].
José
Augusto Mourão, fundador do grupo de legentes em torno de Maria Gabriela
Llansol, em Lisboa, afirma, na notável obra O Fulgor é móvel. Em
torno da obra de Maria Gabriela Llansol, publicada em 2004[x]
(a cujo lançamento assisti, em Lisboa):
Desta libido
scribendi , crescem livros como cresce a erva ou os falcões voam.
Porque a mesma mutabilidade, a mesma anarquia e a mesma matriz polimorfa
ligam o invisível nas dobras do visível, a carne mística e o corpo
glorioso (da escrita) ao desejo (muito nietzcheano) que todo o passado
se torne ligeiro, todo o corpo, bailarino, todo o espírito, pássaro (p.
13).
“Sou um legente que
escreve desde há anos já sobre Maria Gabriela Llansol com o sentimento
de ter sempre vagueado por uma inextrincável linha de costa, portanto
sem ter a presunção de alguma vez ter chegado a um terminal de mundos,
sabendo que das ruínas da biografia não se pode erguer uma estátua,
temendo ademais, e como Témia, a impostura da língua, fiado apenas na
“cordialidade” do sentido (Tauler), no puro amor do “há”, na
equivalência entre estética e ética, nada sabendo em definitivo, apenas
entrevendo. Sabe-se que se é legente quando o júbilo de existir e o ler
se tocam. Ou quando o “Luar libidinal” ou o “Sexo de ler” nos move a
querer, a ler, a reconhecer a linhagem do vivo que não se restringe ao
humano nem aos vivos. Por graça, não por artimanhas de denodados
esforços. “Magníficos os espíritos/Que se cruzam sem espada/E com
bondade””. Ser e ler é a toada dos legentes (p. 190). |
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Como conheci Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim
Maria Gabriela entre Cascais e Colares, Lisboa, com brevíssima passagem
em Sintra (1984-1997) |
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Vi pela primeira vez
Maria Gabriela Llansol, com alguma regularidade, quando ela ia de
passagem a Mucifal-Colares à mesma papelaria onde eu ia comprar jornais,
nos anos 1980. Gabriela tinha acabado de regressar da Bélgica e residia,
na mesma zona, diziam, a caminho da Praia das Maçãs. Os donos da
papelaria, sempre muito amáveis, diziam que a conheciam e falavam com
ela. Mas eu não ousava fazê-lo. Uns anos mais tarde disseram-me, quando
os encontrei de passagem em Sintra, que essa comunicação com Gabriela
deixara de existir.
Numa das minhas
experiências pedagógicas que atingiu durante dois anos lectivos a Escola
da Quinta da Sarrazola, entre Colares e Almoçageme, tive o maior prazer
em ter sido professora de uma adolescente muito sensível e inteligente
que enveredou pela profissão de venda de livros, de organização de
feiras de livro e de eventos culturais com escritores. Soube por acaso,
muito mais tarde, já não me lembro como, que a jovem era protegida por
Gabriela e Augusto. Numa feira de livro em Sintra, na Correnteza, já na
década de 2000, lembro-me de partilhar, com a Gabriela e a jovem
Sandra, a alegria discreta de ter sabido dessa bela história.
De permeio, encontrava
Gabriela em Sintra, nos anos 1990, a almoçar com amigas, num restaurante
que hoje já não existe, situado nas traseiras da estação de Sintra não
ousando aproximar-me dela nem cumprimentá-la. Nos meus passeios
solitários a Cascais, encontrava Gabriela à espera do mesmo autocarro
que eu apanhava para Sintra. Lembro-me de a ver várias vezes, de olhos
fechados, do lado de fora da última paragem dos autocarros de Cascais, à
espera do mesmo transporte que eu tomava, pela volta à Serra, para
regressar a Sintra. Via Gabriela descer na paragem que dá acesso ao
Penedo, perto do Pé da Serra. Pensava que ela teria uma casa perto da
Praia das Maçãs e outra no Penedo, mas não era relevante localizar o seu
habitat. Apenas sentir que passeava e meditava em silêncio, sozinha.
Lembro-me de estar em silêncio quase ao lado dela, nessa mesma última
paragem de Cascais e de sentir que algo se comunicava sem nunca
passarmos à expressão oral. Talvez ela desse por que eu a reconhecia.
Sempre respeitei esse seu silêncio, como respeito todos os seres
meditativos – ou não -, alguns com quem nunca cheguei a falar.
Vi Gabriela Llansol
duas vezes, a convite de José Augusto Mourão, que tinha tomado a
iniciativa de começar a reunir um grupo, em Lisboa, em torno de Maria
Gabriela e da sua obra - Maria Gabriela Llansol, Augusto Joaquim,
Silvina Rodrigues Lopes, Isabel Allegro de Magalhães. O grupo começou
por reunir-se, na primeira fase, em casa de Silvina Rodrigues Lopes, em
Lisboa. A este primeiro núcleo juntaram-se posteriormente, por convite
de José Augusto Mourão, João Barrento, Maria Etelvina Santos e outros. O
grupo passou a reunir-se no Convento dos Dominicanos no Alto dos
Moinhos. Cheguei a perguntar se poderia integrar-me no grupo, porque a
obra de Gabriela me fascinava pela sua beleza e ininteligibilidade, mas
foi-me dito que o grupo já não poderia acolher mais pessoas. Era meu
destino caminhar sozinha, no possível, com a obra de Llansol. Vi desde a
primeira hora que O livro das Comunidades era a charneira para o
que se lhe seguia.
A convite de José
Augusto Mourão, Gabriela esteve presente numa sessão no Mosteiro de
Santa Maria – Monjas Dominicanas - do Lumiar, nos anos 1990, apenas
sentada ao lado da pessoa a quem deu a ler um dos seus textos, tendo
dado previamente a certeza de que permaneceria no silêncio total,
apenas com o seu ardente texto lido por outrem. Assim permaneceu até
ao fim da sessão, da qual saiu discretamente, sem saudar nem se despedir
do público. Nessa mesma década, assisti a uma sessão congénere no
Convento Dominicano de Alto dos Moinhos, com a apresentação de José
Augusto Mourão, onde me lembro de falarmos, no fim da sessão, sobre o
nosso respeito pela global surpresa, enigma, ininteligibilidade e apelo
ao absoluto da obra de Llansol.
Quando, nos finais dos
anos 1990, Gabriela conseguiu alugar um andar na antiga Estalagem da
Raposa - na Rua Alfredo Costa, a caminho do centro de Sintra - que eu
frequentava desde a minha infância, por ter nascido no centro de Sintra
e sempre ter residido em Sintra – excepto seis anos, em França e
ausências temporárias em Inglaterra -, houve uma evolução neste meu
discreto olhar.
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Em Sintra
(1996-97-2008) |
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Em 1996-97, comecei a
encontrar Gabriela em passeios diários com Augusto Joaquim, seu marido,
em todos os fins de dia, na Volta do Duche, em Sintra, onde eu também
passeava e passeio quase diariamente. Sentia-os muito próximos, em
conversas vivas e intermináveis, onde se pressentia a importância dessas
conversas para a própria obra de Llansol. Lembrava-me um casal meu
amigo em que a esposa, Denyse Joubert, tinha um discurso povoado da
beleza do imaginário que seguramente inspirava o que esposo escrevia, na
sua obra consagrada de poeta e ficcionista – Jean Joubert (1929-). No
caso de Gabriela e Augusto , eu tinha a intuição de que Augusto era o
impulsionador livre e o primeiro apaixonado da obra de Gabriela. Esta
minha intuição confirmou-se mais tarde quando os conheci um pouco mais
de perto, embora sem ter frequentado a casa onde residiam.
Conhecemo-nos quando
Maria Gabriela terminava o seu almoço com Augusto Joaquim, num
restaurante chinês em frente da estação da CP de Sintra, em 1996-97.
Antes de ousar cumprimentá-los, para não se sentirem interpelados por
uma pessoa completamente estranha, pedi –lhes licença para referir que
tinha visto Gabriela nos encontros a convite de José Augusto Mourão, em
Lisboa, e que José Augusto Mourão me conhecia desde 1985. Começou um
contacto afável, tendo como ponto de partida a obra de Gabriela, embora
eu não conseguisse caminhar na sua inteligibilidade que a um tempo me
fascinava e me bloqueava. Gabriela deu-me o seu contacto telefónico em
Sintra, para combinarmos um encontro que poderia ser sobre um dos seus
livros. Lembro-me da alegria que ela exteriorizou de imediato, pela sua
escolha de encontros com pessoas sobre os seus livros, a sua alegria de
estar a conhecer pessoas por causa da obra que tinha vindo a publicar.
Esta mudança de registo para a comunicação com uma possível leitora,
possível candidata a “legente” da sua obra surpreendeu-me. Tive o maior
gosto em conhecê-la e em sentir a cumplicidade tão forte daquele casal.
Com o tempo apercebi-me de que, no meu entender, Augusto vivia quase
exclusivamente para a obra de Gabriela que para a sua escrita tinha
dedicação exclusiva e quase obsessiva.
Encontrávamo-nos breve
e espaçadamente, nas ruas de Sintra, nas compras, sempre a pé, em
passeios, desde que nos conhecemos até ter sido possível comunicar com
ela. Gabriela dizia-me, em 1998, que não queria referir nem cultivar
nada de negativo, na vida, na obra, apenas o luminoso, apenas o fulgor.
Compreendo o que Gabriela me dizia sobre a necessidade de se criar um
modo de viver, um estado para a escrita. Foi um prazer ouvi-la
contar-me, em 1998, como organizava cada dia, quando veio habitar o
andar da Rua Alfredo Costa. De manhã ia tomar o pequeno almoço à
Pastelaria Sapa, na Volta do Duche, a poucos metros de sua casa. Depois
do pequeno almoço regressava a casa e escrevia todo o dia, organizando
pausas para fazer compras e preparar refeições. Falava da importância do
seu estar com o quotidiano. No seu conjunto, organizava a vida de
silêncio, com a natureza e o quotidiano, que acabava por introduzir nos
vastos mundos que povoam a sua obra. Dizia-me que tinha de começar a
escrever de manhã, o mais cedo possível, porque, se começasse à tarde,
teria de escrever pela noite fora, não sabia a que horas terminaria,
pela sua tão forte paixão pela escrita. Escrevia todo o dia e ao fim da
tarde passeava com Augusto pela Volta do Duche.
Um dia, vinda das
compras, parou para nos cumprimentarmos, dar notícias de Onde vais
Drama-Poesia?, despedindo-se a sorrir: “ o texto é o Bem-Amado”.
Em vida de Augusto
Joaquim, cumprimentei-os e encontrei-os de passagem várias vezes, fui a
uma sessão à Culturgest em que ambos estiveram presentes,
exteriorizando ambos uma grande alegria, sintetizada numa frase
conclusiva de Augusto: “ a obra da Maria Gabriela é como um rio”. Deixei
livros de minha autoria, a pedido dela, na sua caixa de correio, na Rua
Alfredo Costa, dos quais nunca teceu qualquer comentário. Quando, nos
finais dos anos 1990, fiz propostas de cursos de literatura para uma
universidade privada onde não cheguei a dar aulas, vi com a Gabriela que
não era possível e ainda não era o momento de começar por propor o
ensino de uma das suas obras. Ela disse-me então que tinha a certeza de
que a sua literatura era a que interessaria para o futuro.
Vi Gabriela e Augusto
pela última vez numa viagem de autocarro em que viajámos, com Eduardo,
meu marido, de Sintra para o Estoril, num domingo de manhã. Nós não os
tínhamos visto. Na última paragem, no Estoril, Gabriela desceu do
autocarro, foi andando. Augusto, antes de sair cumprimentou-nos, com a
mesma alegria e discreta amizade. Não sabíamos que seria a despedida. A
imagem com que fiquei desta última passagem do casal foi a de Gabriela a
atravessar a rua na direcção do Jardim do Casino do Estoril, com a
postura e o gesto de uma deusa, aguardando, no seu passo, que Augusto se
aproximasse dela.
Depois deste encontro,
vi, mais tarde, pelo decorrer da metamorfose de Gabriela que algo de
trágico se passaria na sua vida: a certeza inesperada da morte de
Augusto que estaria para breve. Tudo foi muito discreto e entre pessoas
do grupo e outras que lhes eram mais próximas. Foi com a maior mágoa que
soube dessa triste notícia.
Esperei seis meses para
telefonar de novo a Gabriela e dar-lhe a certeza de que a acompanhava em
silêncio no que ela chamava “aprender a viver com a dor”. De que eu e o
Eduardo recordávamos a presença dela e de Augusto sempre que passeávamos
na Volta do Duche, onde ela nunca mais passeou sozinha. Ela agradeceu.
Eu admirava a força que a memória de Augusto ainda lhe dava para ela
sorrir, continuar a escrever e a viver. Dizia-me que tinha ficado em
Sintra após a morte de Augusto, porque Sintra a pacificava, mas deixara
de passear em Sintra. Passeava em Lisboa, no Campo de Ourique. Em dado
momento, deixou de cozinhar ou de almoçar fora, como dantes. Vi-a várias
vezes a ir buscar e trazer o almoço do restaurante mais próximo para
casa, para seguramente não interromper e continuar a sua escrita.
Sei que fiz o que me
era possível para a acompanhar discretamente na sua dor, em gestos e
encontros do dia a dia e sempre que ela se dispunha à comunicação. Eu já
conhecia, por transmissão oral, alguns passos dessa última obra de luto
por Augusto a que dera de início o título de Curso de silêncio 2004.
Disse-me que teve de o passar para sub-título para as pessoas
compreenderem melhor de que assunto se tratava. Em dado momento, após a
conclusão de Amigo e Amiga – Curso de silêncio de 2004 -, dizia
que começava a ter queixas de saúde mas que se ia aguentando.
Soube da
criação da Associação Espaço Llansol ainda em sua vida, na sequência do
trabalho realizado entre ela e o grupo de “legentes”. Eu sabia que João
Barrento a rodeava no fim da sua vida, com Maria Etelvina dos Santos,
que fez um doutoramento, com a orientação de José Augusto Mourão, em
2007, na Universidade Nova, com o título
Como uma pedra-pássaro que voa – Llansol e
a improvável Leitura[xi].
Maria Etelvina está a fazer um pós-doutoramento sobre o espólio de Maria
Gabriela Llansol.
Nessa fase final da
vida de Gabriela, perto, no mesmo edifício, vivia e vive ainda a sua
amiga de sempre, Maria Rolim. Era imprescindível saber que uma pessoa
solitária como Gabriela estava acompanhada, no fim da vida. Ainda lhe
telefonei no dia dos seus anos, em 24 de Novembro de 2007. Já não podia
responder-me mas recebeu a mensagem. Comuniquei com Gabriela pelo
telefone, pela última vez, por ocasião da entrega do prémio APE para
Amigo e Amiga – curso de silêncio 2004. Foi com muita mágoa
que soube da morte dela, como da morte de Augusto. A morte
surpreende-nos sempre. |
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De 2008 a 2011 |
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Acompanhei com João
Barrento, em contactos por telefone e por email, pelo blogue, a evolução
da Associação Espaço Llansol que tinha começado por ter a sua sede na
casa de Gabriela Llansol e Augusto Joaquim, na Rua da Alba Plena, nº 7,
na freguesia de Colares, tendo passado recentemente para a casa alugada
na Rua Alfredo Costa, nº 3, 1ºF, em Sintra. Na sessão que decorrerá
amanhã, 27 de Março de 2011, no CCB, é notória a admiração e interesse
de uma figura de destaque da política internacional – Durão Barroso -
pela obra de Maria Gabriela Llansol, o que certamente contribuirá para
apoios oficiais.
A nova sede do Espaço
Llansol foi recentemente criada, na Rua Alfredo Costa, nº 3, 1º F, com o
acordo da proprietária, em protocolo e com financiamento regular da
Câmara Municipal de Sintra, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian,
para o espólio. O trabalho imenso que nele se tem vindo a desenvolver é
a todos os títulos de grande mérito, valor e eficiência, pela adaptação
do espaço, pelo trabalho no espólio, pelas publicações, pelas inúmeras
iniciativas e colaborações, no plano nacional e internacional. O
respectivo blogue dá-nos as notícias todas. A obra de Llansol continua a
ser estudada, redescoberta e divulgada. Já várias vezes estive para
visitar o Espaço Llansol, a convite de João Barrento. Na data que
combinámos, em Maio de 2009, não me foi possível. Tenho muita
dificuldade em entrar na Rua Alfredo Costa, nº3, 1º F, após a morte de
Augusto Joaquim e de Maria Gabriela LLansol, sem nunca ter lá entrado.
Farei o possível por ultrapassar esta etapa.
Um convite a meditar
sobre o enigma e o mistério de uma pessoa e da sua relação com a sua
própria obra. O mistério do texto. Lembrava-me António Alçada Batista
quando ele me dizia que considerava a escrita literária como um
mistério, embora num registo muito diferente. Em Gabriela, um modo
singular de estar com a vida e o texto.
*
Sintra, 27 de Março de
2011, de manhã |
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Em torno de Ardente
Texto Joshua de Maria Gabriela Llansol
A memória de um encontro e algumas interrogações |
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Ardente Texto Joshua
foi o
primeiro livro que foi publicado depois de eu ter começado a falar com
Maria Gabriela Llansol, em Sintra. Numa tarde de Outono de 1998, logo a
seguir à publicação deste livro que eu li quase de um só fôlego,
combinámos um encontro no Café-Restaurante Apeadeiro, em Sintra. Tomámos
um chá de tília. Tenho pena de não ter gravado esse nosso encontro. Mas
não sabia se Gabriela gostaria da minha proposta e não costumo gravar
conversas. Escrevi umas notas e guardo-as na minha memória.
Gabriela falava-me
discretamente, nesse Outono de 1998, da sua vida na Bélgica, da escola
de liberdade que criara com Augusto. Pressenti que esses anos na Bélgica
lhe proporcionaram uma vida e um modo de estar com a liberdade e a
cultura que continuaria a espraiar-se na sua obra. Lembro-me de Gabriela
me falar da necessidade de se criar um estilo e um modo de estar na vida
que propicie a escrita.
Tive a possibilidade de
a ouvir falar, no essencial, em poucas palavras, de si própria, do seu
caminho com a sua obra, na última fase da sua vida. Não li a obra com o
grupo, não conheci o que José Augusto Mourão afirma - “ Tive a graça de
durante alguns anos acompanhar outros legentes tocados como eu pela
“estranha fé que nutrem” pelo texto llansoliano”
[xii].
Não quis incomodar Maria Gabriela com as minhas perguntas sobre a sua
obra. Na maior parte de todos esses anos, tive de me concentrar noutros
trabalhos. Apesar das nossas breves conversas e das minhas leituras,
tenho uma visão a um tempo de empatia e de distância da sua obra.
Quando lemos O Livro
das Comunidades, adivinhamos que a sua ficção se irá centrar sobre
figuras de uma Europa mística, artística e filosófica, tendo como
figuras – em vez de personagens- santos, artistas, filósofos, músicos,
poetas, vamos vendo ao longo da obra a quase obsessão por santas e
beguinas. Pressente-se que a sua obra nunca será centrada na story.
Um beijo dado mais tarde tem o essencial de uma história,
premiada (1990) - como Amigo e Amiga (2007)-, pela A.P.E. De
permeio, e até ao fim da vida, muitos livros impregnados de uma tal
intensidade que, da minha parte, só me é possível ler espaçadamente.
Tenho acompanhado à
distância, por terem coincidido com ausências minhas de Sintra ou do
país, os assuntos das Jornadas llansolianas anuais, em cujas últimas
surpreendi o título interrogativo de uma comunicação de Eduardo
Lourenço que constava do programa: “Gabriela Llansol: um misticismo
ateu?”[xiii]
Acrescentaria: como
encontrar fé em Deus no texto llansoliano? Fala de santas e beguinas.
Interrogo-me: Que santidade?
Leio e interrogo-me
sobre o passo seguinte de Ardente texto Joshua:
“Spinoza fala de Deus
quase fazendo com que a fala escrita Deus-fosse. Ele dissipou-se e volta
sendo – Deus dissipou-se. Assim,
Eu gosto que a escrita
se dissipe, e volte texto. Assim,
Eu gostaria, meu
pensamento, que a minha écharpe se dissipasse, e voltasse
ardendo” (p.66)
Interrogo-me também:
Porquê a referida “fé
no texto llansoliano” da parte dos “legentes” do grupo reunido durante
anos, na presença de Mraia Gabriela LLansol? Ter-se-á- desenvolvido um
caminho posterior em que Gabriela e sua obra acabam por ser um absoluto
– divino - pessoa – texto a venerar?
Há autores em que se
pode detectar a escuta, mas é difícil encontrar uma obra em que essa
escuta seja ou pretenda ser tão absoluta. No encontro de 1998, Gabriela
referia que escrevia o que escutava e tinha a convicção de comunicar a
força de transformar os legentes, num processo que eu chamaria talvez
adesão incondicional, na minha linguagem de leitora-legente(?)…
Tenho uma relação por
vezes empática com a obra de Llansol, aceito-a na sua
ininteligibilidade, aceito a sua opção de estética como uma forma de
procura de luz imaginada, reservando-me a liberdade de continuar a ler e
a distanciar-me. Como harmonizar empatia e o distanciamento, na leitura
da sua obra ?
Sintra, 28 de Março de
2011
Ontem fui ao Centro
Cultural de Belém, para o Dia Maria Gabriela Llansol. A exposição
“Sobreimpressões da Europa” tem uma boa selecção e apresentação de
materiais, acompanhada de um catálogo, no qual João Barrento sintetiza o
que são as “Sobreimpressões da Europa”, segundo Maria Gabriela Llansol.
João Barrento leu o texto que publicou no catálogo, após Maria Marques,
representante da Comissão Europeia em Portugal, ter lido um texto
enviado pelo Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso,
no qual manifesta a sua admiração pela obra de Maria Gabriela Llansol.
Seguiram-se leituras da obra de Llansol por escritores. António Mega
Ferreira, escritor e Presidente da Direcção do CCB leu três excertos de
Um Raio sobre Lápis, um deles referindo a Praia das Maçãs. Hélia
Correia, antes de ler um excerto de Um beijo dado mais tarde -
escolhido por Gonçalo M. Pereira que não podia estar presente - falou do
jardim de Herbais, na Bélgica - onde viveram Maria Gabriela e Augusto -
que visitara com Jaime Rocha; falou, na obra de Llansol, da Europa que o
pensamento permite, da profundidade do encontro com lugares, tempos e
figuras, da necessidade de nos deixarmos processar pela química da
revelação, da beleza para construir a liberdade, da paisagem que
constrói utopia. Jaime Rocha disse que pessoas hoje residentes em
Herbais ainda se lembram de Gabriela e Augusto e dos seus passeios a pé;
leu um passo de Amar um cão, escolhido por Hélia Correia. José
Tolentino Mendonça, antes de ler as duas páginas finais de Ardente
Texto Joshua, transcritas no final do presente texto, referiu que
Maria Gabriela Llansol convida a uma nova gramática, a um novo
entendimento sobre corpo/alma, sagrado/profano; Deus sive natura
(Espinosa) e Deus sive legens (Gabriela); de Gabriela como um
anjo mensageiro; que, no futuro rezar-se-á o texto de Llansol. Manuel
Gusmão, com a certeza de que a beleza do texto o ajudaria na sua
leitura, leu o fragmento 40 do cap. III de Onde vais Drama Poesia?
Eduardo Lourenço, antes de ler excertos de Causa Amante,
falou do fervor particular que sempre encontra entre os associados do
Espaço Llansol, do fervor que a obra de Gabriela Llansol lhes suscita.
Porquê tanto fervor?
Eduardo Lourenço disse
ainda que quando lê a obra de Llansol sente-se como se estivesse a
frequentar um espaço que não é deste mundo, penetrado pelos sabores do
mundo, as figuras de texto, o texto como matéria, lógos de luz e de
noite, descrição do mundo visceral, virtual e imaginário, como da
Sebe ao Ser- título de um dos livros[xiv].
O concerto final, no
CCB, “Ervilhas e Bach” foi também de qualidade e bastante aplaudido.
Diogo Dória leu passos da obra de Llansol e Ana Telles tocou peças de
Bach, Giorgy Kurtag e João Madureira. |
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Ardente Texto
Joshua,
Santa Teresa de Lisieux e Sintra. |
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Deixarei falar com
brevidade Ardente Texto Joshua, um livro que condensa bem a
procura de Llansol que se repete ao longo da sua obra.
Em Ardente Texto
Joshua, cada capítulo – alguns capítulos têm sub-capítulos, embora
com a mesma data- é datado, de 5 de Março de 1997, com a localização em
Sintra, até à conclusão, em 6 de Março de 1998, na Serra de Sintra,
inserindo o texto na realidade quotidiana que começa por uma ida ao
centro da vila de Sintra para pôr uma carta no correio, ficar no adro da
Igreja de São Martinho. Depois de um diálogo, no adro da igreja de São
Martinho, entre Gabriela (assim nomeada) – e um “ser-instinto” que lhe
aparece, Gabriela imagina ver Santa Teresa de Lisieux a aparecer numa
varanda, na encosta da serra de Sintra:
“É neste diálogo
incómodo em que digo e um ser-instinto
Me
corrige, que uma motivação,
Uma
janela aberta,
Uma
varanda surge no alto da encosta, no seu horizonte
Quadrilhado de vidros.
Teresa
está ali sentada, regressou de Lisieux através do
Douro,
E lê a
entrada na nossa vida,
Voltada para o longe tinto do rio_____________________
para
nós.
Continua o diálogo com
o “ser-instinto” e Teresa continua a ler. A procura de encontrar o “texto
Joshua” que é a paixão de Teresa. Todo o livro é a procura do “ardente
texto Joshua” que viverá, como o corpo, da ressurreição. Teresa vai
morrer. Teresa morreu.
“Consinto na vontade de subir ao sítio onde adormece o texto Joshua
, tua paixão, que é uma designação que cobre o inomável e onde ele,
no lugar em que sonha este rio, intercede. Ainda intercede.” (P. 13)
De permeio, o corpo, a
destruição do corpo de Teresa - “por que nos comove tanto a destruição
do corpo de Teresa?”-, a esperança da ressurreição do corpo e do texto.
Um mar de palavras, objectos, e de personagens – turistas em Sintra,
crianças, um criado, gatos, a gata Melissa, religiosas, encontro,
desencontro, interrogação e caminho de Teresa com o seu amigo, cadernos
a soletrar, textos a cair, o desenho do lápis, o desenho que se apaga, o
lápis a soletrar, imagens que entram e saem de um armário. Imagens de
fluir constante:
“Teresa pegou no
lápis e na figura do Joshua, apagou todos os traços do apoio”
Gabriela Llansol
escreve na contracapa uma “explicitação possível” deste livro:
Depois de sintetizar
três histórias sobre a mesma pessoa - a de Teresa Martin, carmelita em
Lisieux, dos 15 aos 24 anos - data em que morreu de tuberculose;
Teresinha do Menino Jesus, canonizada e doutora da Igreja; a autora de
poemas e escritos autobiográficos – em particular o manuscrito C,
Gabriela llansol escreve o que é Este livro:
“é a quarta história. Conhece a
biografia, e passa adiante. Sabe da heroína e não lhe interessa. Admira
a crente sem desposar o seu movimento. Confronta a arte de viver da
amorosa com a exigência da ressurreição dos corpos, última e definitiva
aspiração do texto ardente. Subjacente ao Deus sive natura que o
move, o texto afirma que há um Amor sive legens para o entender.
O percurso de um corpo como súmula da sua potência de agir.”
O amor que move o “legente”,
o amor que subjaz à natureza ou Deus, amor que leva ao entendimento do
texto. Em síntese, este é um livro sobre o amor que leva ao entendimento
do ardente texto. Amor sive legens – o amor isto é o legente -
como Deus sive legens – Deus isto é o legente.
Joshua é um nome
hebraico, correspondente a Josué, dos livros do Antigo Testamento, sendo
Josué um dos companheiros de Moisés; Joshua é correspondente ao grego
Jesus. Nos cânticos ancestrais dos evangelhos, em aramaico, cantava-se
o nome de Jesus como Joshua ou Jeshua. O ardente texto é Joshua. Este é
um livro de uma esperada ardência do texto, e de outras ardências
difíceis de discernir, que nos fazem desistir de qualquer forma de
discernimento e caminhar apenas no
fluir:
“É mais fácil compreender quando se
olha o texto com a língua dos pássaros, sons, ritmos, morfemas,
que ora são a língua, ora são
imagem, ora são este corpo que
escreve, ora são nada
Diz-se, por vezes, palimpsesto,
Mas não
Compreender um texto é como
compreender um cão, uma
Previsão do tempo,
Ou seja,
É aceitar que não se fala,
Que não se compreende, excepto pela
companhia” (p.74)
“Não, não penses que te quero
inquietar,
Mas como amar se não interrogas a
figura do teu amado? (p.75)
“Domingo de Páscoa (30 de Março de
1997) é o da ardente prece de Joshua, Ou como Teresa adere à
conspiração do amor”:
Um capítulo com várias
etapas que culminam na “sensualidade do invisível” (p. 103), que é um
dos muitos pilares ou travessias da sua obra.
“Em Sintra, 8 de Maio de 1997.
Quinta Feira da Ascensão. O que mais soube amar. Ou como Teresa
deixou o seu caderno aberto”:
“Não
ter medo das vozes
Ouvi-las e aprender a distingui-las
E
querer
O
corpo quer
Quer
ler a voz do amado a aceitar o seu corpo que, neste momento,
É só
caderno por escrever
Que
ele não a engane, nem ela o destrua
Deve
haver um lado, diz ela, um modo, em que a língua é pujança
A que
o meu corpo se possa unir;
A esse
pacto
A esse alvo
Àquele
modo,
Ela
chama Texto, porque não se encontra na literatura” (p. 116)
Em “Sintra, 18 de Maio de 1997.
Domingo de Pentecostes. O espírito sopra onde o corpo sofre, ou de
como a nostalgia é motivo de ascensão”,
escolhemos este
fragmento que nos interroga sobre o humano, o corpo, a prece, o enigma,
sobre o texto a pedir a Teresa que fale com o seu amado:
“o que é uma pessoa que escolheu o belo
quando é o texto ardente, senão o orante desse enigma? As coisas ignoram
se ainda é ser humano_____humano é decisivo. Terreno é um limite.
Humano como as ervas deste e do novo mundo. Consciente de que a
semente de umas e de outras é, provavelmente, a mesma. Prece é pedir
É também, pensa o corpo
-Pegar nas mais ínfimas das minhas
linhas
Insiste o caderno
O lápis expectante, não toca nas
mãos do corpo
- de que vive o seu sangue? –
pergunta o texto, pensando no orante
-
Talvez da nostalgia do rio onde se banha – Ninguém sabe quem o diz.
Talvez o enigma
É então que este pede a Teresa que seja esse coração decidido
Que fale com o seu amado” (p.137) |
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A ardência do texto |
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Num passo quase do fim
do livro, é de novo clara a cumplicidade de Gabriela com Spinoza.
Como é que, sendo
Spinoza o filósofo por excelência nomeado no contexto de uma mística do
texto, ao lado da ardência do texto escrito por Teresa - o manuscrito C
– como é possível imaginar a fé de Gabriela em Deus?
“… mas o que é Deus
ninguém o entende”(Os Lusíadas X, 80,7 ). Neste passo de LLansol
é clara a distinção entre o manuscrito C de Teresa e o “meu
Spinoza” ( o de Gabriela), Deus sive natura – Deus ou a
natureza - e Deus sive legens – Deus ou que lê, o “legente” :
“Teresa, balouçando, flui para o movimento de qualquer
Texto
já escrito
Ignoro
se a carta
Ignoro
se alguma vez a leu. Mas dorme ___os seus manuscritos,
sobretudo o seu C,
Misturados com o meu Spinoza. Sonha que ele a procura +para lhe
dizer, finalmente:
-
Deus sive legens” (142)
Porquê Deus sive
legens? Esta será uma das possíveis chaves do texto como mística ou
da mística como modalização do texto em que Deus é o que lê , o legente?
Gabriela também é
legens. Deixa de haver legente que escreve e legente que lê,
ou antes ambos se fundem e ambos Deus sive legens ?
É muito difícil situar
o misticismo de Gabriela Llansol. Espero que, no futuro, se aprofunde a
mística do texto ou o texto como mística, na obra de Maria Gabriela
Llansol, na sequência do trabalho já publicado por Silvina Rodrigues
Lopes[xv],
por José Augusto Mourão[xvi].
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José Augusto Mourão
O Fulgor é
Móvel |
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Coda |
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Tudo flui, o texto é
móvel, o fulgor é móvel.
Até onde nos leva
Gabriela?
Transcrevemos as
últimas palavras de Ardente texto Joshua que vamos continuar a
deixar fluir para o leitor, o legente, no “ ar” que pede a Gabriela,
sentada do adro da Igreja de São Martinho, em Sintra, que escreva
“rápido” o texto metamorfoseado das bem-aventuranças evangélicas, na
presença da “figura intermédia, pelo ler apaixonada” – intermédio,
deduz-se, entre o leitor e o legente- que é Joshua.´, o ardente texto
identificado com Joshua.
Joshua – Jesus – está
entre o leitor e o legente e é em simultâneo o ardente texto .
Joshua-Jesus, texto e
figura, -“figura pelo ler apaixonada”-, a passar por Gabriela que
escreve, a pedido do ar, um novo sermão da montanha. Joshua texto e
leitor apaixonado, o texto como realidade divina? humana?
Até onde procura
levar-nos Gabriela, com o ardente texto em que Joshua é o ardente texto,
ao longo de várias metamorfoses, neste livro como noutros livros? Até
onde, confrontando-se com a morte, o corpo a morrer de Teresa, o ardente
texto de Teresa, o texto como corpo e ressurreição?
até Joshua-Jesus acabar
por ser espectador das novas bem-aventuranças, escritas “rápido”, a
pedido do “ar”, por Gabriela, sentada, como no iníco deste livro, no
adro da igreja de São Martinho de Sintra.
“Sentada
No
adro de São Martinho
Mantenho o seu lápis sobre o meu caderno.
Escrevo “pode acontecer” e páro
Vê
bem, escrevente, enquanto corres
Qualquer coisa de singular pode acontecer que te sensibilize
Particularmente, leitor e legente estão um para o outro como
o
espesso para o que esvaece. Alguém que lê
passou por mim, quando vinha a caminho, e disse-me, muito
alegre, em voz alta:
- Já
estive consigo esta manhã
“É o
leitor?
É o
legente?
É
decerto a figura intermédia, pelo ler apaixonada.
Sentada
No
adro da igreja de São Martinho aberta,
Mas
tão aberta
Que
a Física explode. O ar é puro. O ar é raro. De uma
Grande raridade humana por entre as árvores de que preciso saber os
nomes. O lápis corre rápido com o que tem a dizer ao espaço vazio que lá
dentro guarda o segredo do humano
Escreve rápido, pede-lhe o ar
Bem-aventurados os alucinados, porque deles será o real
Bem-aventuardos os desiludidos, porque neles o pensamento se fará humano
Bem-aventurados os corpos que morrem, porque deles será a
Sensualidade do invisível
Bem-aventurados os desesperados, porque deles será a restante esperança
Bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abres a geografia dos
mundos
Bem-aventurada sejas tu, ó Terra, porque tua será a explosão que levará
o vivo a todo o Universo.
Imóvel, fico-vos a olhar, Teresa, ou Hadewijch,
Mas
vós não vos inquietais,
Correis sobre o vivo – e arrastando o vivo que vos investe.
Peixes, no rio do tempo.
A
figura intermédia, pelo ler saudada,
É o vosso Joshua. “ (p. 146-147)
Assim evoco Maria
Gabriela Llansol e faço falar fragmentos de
Ardente Texto Joshua[xvii].
Toda a sua
obra é fragmentada. É uma obra diferente, singular, passível de ser
entendida na língua dos pássaros, na língua da procura de
expressão de um paraíso. Que não se esqueça o trabalho pioneiro de José
Augusto Mourão ao ter convidado, nos anos 1990, em Lisboa, Maria
Gabriela Llansol e Augusto Joaquim para se reunirem regularmente com ele
e os seus convidados, em torno da obra de Llansol.
Foi breve a passagem de
Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim no centro da vila de Sintra,
apenas na fase final das suas vidas. Quem agradece o paraíso que Sintra
nos dá de único na vida, não tem palavras para exprimir a beleza de ter
nascido no centro de Sintra, de viver , de meditar na vila de Sintra,
de toda a vida passear, sentar-se no adro da igreja de São Martinho,
olhar a beleza da serra, da encosta, da planície, do mar, do quintal e
das macieiras, adro e quintal povoados de memórias de alegria. Memória e
alegria de viver, de ser, de contemplar Sintra, de se deixar transformar
por Sintra.
Helena Conceição Langrouva
Sintra, 2 de Abril de
2011 |
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Notas |
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* José Augusto Mourão leu este texto em 28 de março
de 2011 a meu pedido, tendo tido a gentileza de me esclarecer sobre
como começou a reunir os seus convidados legentes com Maria Gabriela
Llansol e Augusto Joaquim, em torno da obra de Llansol, em Lisboa,
nos anos 1990.
[i]
Maria Gabriela Llansol, Ardente texto Joshua, Relógio de Água,
Lisboa, 1998.
[ii]
Espaço Llansol blogspot, 28.02.2011.
[iii]
Silvina RODRIGUES LOPES, Teoria da des-possessão, Black Sun
Editores, Lisboa, 1988: “ A des-possessão dá-se no trânsito entre
ler e escrever. Não se trata de se deixar absorver pela leitura, de
incorporar o outro ou de se lhe identificar. O que se passa é uma
deslocação para um ponto onde aquele que lê passa a escrever (mesmo
mentalmente). É uma perda de autoridade reversível entre autor e
leitor remetidos para uma estranheza mútua, um anonimato comum”. “As
palavras vivem de ser vivas, da decisão de quem as possui, do
arrebatamento interior, de não serem bens, propriedades, objectos,
que se usam e nos desgastam, mas intensidades, sopros, onde corpos
se deslocam e se encontram”.
[iv]
Eduardo Prado Coelho citado no verbete sobre Maria Gabriela Llansol
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. VI,
organização IPLB, Publicações Europa-América, Lisboa, 1999. Não nos
foi possível localizar o artigo de Eduardo Prado Coelho que lemos
há muito, muito tempo, e que chamou a atenção para a obra de Maria
Gabriela Llansol para o universo da crítica, em Portugal. O
escritor Vergílio Ferreira também admirava Maria Gabriela e a sua
obra.
[v]
Silvina RODRIGUES LOPES, Teoria da des-possessão, Black Sun
Editores, Lisboa, 1988.
[vi]
José Augusto MOURÃO, O Fulgor é móvel. Em torno da obra de
Maria Gabriela Llansol, Roma Editora, Lisboa, 2004.
Jesus Augusto Mourão afirmação quase
no final deste livro:
[vii]
Maria Etelvina dos SANTOS, Como uma pedra-pássaro que voa-
Llansol e a improvável leitura, Mariposa Azual, Lisboa, 2008.
[viii]
João BARRENTO, Chave de Ler- Caminhos do texto de Maria Gabriela
Llansol, Jade- Cadernos Llansolianos, nº 4 (esgotado); Na
Dobra do Mundo – escritos Llansolianos, Mariposa Azual, Lisboa,
2008. Nada ainda modificou o mundo – Actualidade de Llansol –
organização de João Barrento, Mariposa Azual, Lisboa.
[ix]
Colecções Jade – Cadernos LLansolianos e Rio de escrita,
Associação Espaço Llansol, Sintra.
[x]
Ver o ensaio de Annabela Rita sobre a obra O Fulgor é Móvel
de José Augusto Mourão –
www.triplov.com,
publicada na colecção Faces de Penélope, Roma Editora, dirigida por
Annabela Rita.
[xi]
Maria Etelvina dos SANTOS, Como uma pedra-pássaro que voa –
Llansol e a improvável leitura, Mariposa Azual, Lisboa2008.
[xii]
José Augusto MOURÃO, O Fulgor é móvel. Em torno da obra de Maria
Gabriela Llansol, Roma Editora, 2004, p. 191.
[xiii]
Entretanto João Barrento informou-me que a comunicação apresentada
passou a ter o título: “ A realidade como texto e o texto da
realidade”, gravado em vídeo, ainda não publicado.
[xiv]
Ver Espaço Llansol blogspot de 30.03.2011.
[xv]
Silvina RODRIGUES LOPES,
Teoria da
Des-possessão, Black Sun Editores, Lisboa, 1988. Ver também
Maria João CANTINHO, Imagem e tempo na obra de Maia Gabriela
Llansol,
www.triplov.com,
publicado em Especulo. Revista de Estudios
Literarios, Universidade Complutense de Madrid, 2004.
[xvi]
José Augusto MOURÃO, O Fulgor é Móvel. Em torno da obra de Maria
Gabriela Llansol, Roma Editora, Lisboa, 2004.
[xvii] É o máximo
que posso fazer nesta etapa, em tão poucos dias de trabalho, por ter
outros trabalhos à espera. E este não estava previsto.
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HELENA LANGROUVA
(PORTUGAL)
Helena Maria dos Santos Conceição Langrouva nasceu e reside em Sintra.
Licenciada em Filologia Clássica (Lisboa), Letras Modernas-Cinema (Montpellier),
Pós–graduada (Paris III ; King’s College - Londres) e Doutorada
(Universidade Nova, Lisboa) em Estudos Portugueses-Literatura, foi
leitora em universidades francesas, assistente do ensino superior, com
passagem pelo ensino secundário, em Portugal, equiparada a bolseira pelo
Ministério da Educação. Publicou em livro: A Viagem na Poesia de
Camões, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, Lisboa, 2006 (esgotado),
Actualidade d’Os Lusíadas, Roma Editora, Lisboa, 2006, De
Homero a Sophia. Viagens e Poéticas, Angelus Novus, 2004 e
Arpejos de uma Viandante /Arpèges, 2003 (esgotado). Em tradução:
Lanza del Vasto, Peregrinação às Fontes, Ed. Sempre-em-Pé, Porto,
2010, Não-Violência e Civilização-Antologia (introdução, selecção
e tradução), Ed. Brotéria, Lisboa, 1978; Jean Joubert, O Homem de
Areia, Difel, Lisboa, 1991. Colaboração nas revistas Brotéria,
O Tempo e o Modo e em obras colectivas, das quais Dicionário
de Camões, Editorial Caminho (no prelo). Formada em Artes Musicais
(Canto), Iconografia ocidental e Iconografia bizantino-eslava (teoria e
prática). Investigadora interdisciplinar - Literatura, Filosofia, Arte e
Cultura - Clássica, Renascentista e do século XX. Membro de várias
associações literárias, culturais e de solidariedade nacionais e
internacionais. Tem livros a aguardarem publicação e em curso e
Iconografia criativa de tradição bizantino-eslava em curso.
Páginas Web:
www.triplov.com/helena/index.html;
www.triplov.org/cyber_atelier_saint_raphael/index.htm;
www.atelier-st-raphael.pt.vu;
Blogues:
www.creativeicon.wordpress.com;
www.helenalangrouva.wordpress.com
Email:
atelier.raphael@netcabo.pt |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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