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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2011 | Número 15
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I
Em vila de Frades, bem
no coração da planície alentejana, os sinos repicam em tom festivo,
enquanto uma chuva suave acaricia a terra fértil de esperanças
anunciadas pelo outono.
José Valentim Fialho
de Almeida casa hoje, dia 23 de Novembro de 1893. Sente-se nervoso e uma
estranha ansiedade percorre-lhe todo o corpo. Finalmente, o adeus à
miséria! Quando nasceu, a sete de Maio de 1857, em Vila de Frades, foi a
pobreza a sua companheira de infância e de juventude.
Mas será justo o que
vai acontecer? Aquela união matrimonial não é o fruto de uma paixão
urgente, nem de um amor amadurecido pelo tempo... é antes um projecto há
muito premeditado.
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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DORA GAGO
Fialho: poeta, dândi,
cronista e panfletário
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Dora Nunes Gago, in A Sul da
escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, ed. Campo
das Letras, 2007 |
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- Deixa-te de coisas,
filho, a Emília é boa rapariga... – repetia-lhe a mãe insistentemente -
vais acabar por gostar dela! E depois, com a tua idade, onde vais
arranjar uma mulher assim? Já viste que qualquer dia eu desapareço e
ficas sozinho no mundo? Já tens mais do que idade de casar! Todos os
rapazes da tua idade já têm filhos crescidos! Ainda gostava de conhecer
um netinho, seria uma grande felicidade.
- Pois mãezinha, mas
um casamento não é um negócio – respondia ele a medo – E se eu não a
fizer feliz? Já viu bem a quantidade de pretendentes que ela tem?
- Ora, pretendentes, -
respondia ela com um sorriso de escárnio - uma cambada de grifos que só
quer o dinheiro e as propriedades dela. Desde que ficou órfã de pai e
mãe, então, não a largam! Ninguém a merece mais do que tu. És doutor,
médico! Essa canalha não te chega aos calcanhares e ela sabe disso.
Enfim, depois de
muitas indecisões, Fialho lá se atreveu a pedir Emília Augusta Garcia
Rego em casamento. Mulher franzina, já com trinta e dois anos (quase a
perder as esperanças de casar), com ar frágil e adoentado, não hesitou e
disse logo o sim. Afinal já com aquela idade e sem ninguém, o que
deveria ela esperar? Além disso, em Cuba, onde vivia não conhecia melhor
partido. Sempre era uma honra ser a esposa do senhor doutor. Se os pais
fossem vivos deveriam aprovar. E depois talvez ainda conseguisse ter um
filho, antes que fosse tarde de mais e partisse sem deixar na terra um
fruto que a prolongasse, que cuidasse do património – gerado no seio de
tantas lutas empreendidas pela família.
O noivo espera ansioso
no altar. Receia que lhe possa ter acontecido algo. Cada segundo
parece-lhe uma eternidade. Embora por outro lado... e se não houvesse
casamento? E se pudesse calcorrear de novo todas as ruas da baixa de
Lisboa, em busca de conquistas? Encontraria de novo o Teixeira Gomes e
todos os amigos... Viveria novamente as noites intensas, divertidas,
verdadeiras, dramáticas ou fingidas... Sempre prenhes de luar e das
mais inesperadas aventuras. Isso sim, seria viver! Escrever poemas à
primavera, às flores e aos pássaros, dormir até tarde, deitar-se depois
do sol nascer... Mas e o dinheiro? E o pão para saciar o estômago?
Sempre o mesmo problema! Formara-se em medicina em 1885, já lá iam oito
anos. E com que sacrifícios! Foi-se sustentando com o pouco que a mãe
lhe podia enviar, colaborando em pequenas páginas literárias, dando
algumas lições... Sentia-se, nessa altura, marginalizado. O casaco velho
e esburacado, as botas roídas e gastas eram cicerones evidentes da
miséria.
Nunca conseguia ganhar
dinheiro com a medicina como faziam os seus colegas. Passar os dias
fechado num consultório à espera das dores alheias, ou calcorrear montes
em vales para afugentar a morte, não era o seu ideal de vida. O que
amava mesmo eram as Letras, esse mundo proibido e que tanto prazer lhe
dava.
Não tivera infância.
O pai, de origem muito humilde, homem de dureza extrema, que havia
conseguido ascender a mestre-escola não lhe admitia um minuto de lazer,
nem de brincadeira. Os dias e as noites eram passados a estudar, a
trabalhar, enquanto sonhava passeios pela planície com os rapazes da sua
idade, ou com as mil e uma brincadeiras que via de longe os outros
fazerem.
Aos catorze anos fora
para Lisboa, estudar num colégio onde imperava uma disciplina espartana
e sobretudo, desumana.
Por isso, só quando
se conseguiu libertar definitivamente do jugo do seu pai (falecido em
1876), dessa sombra opressiva que pensava amar e detestar
simultaneamente, abriu as asas e lançou-se num voo intenso e espontâneo,
para beber da vida todos os prazeres desconhecidos, reprimidos, adiados
sem fim.
E agora ali estava no
altar, de cravo na lapela e uma corda a apertar-lhe o coração.
Conseguiria ser um bom esposo? Teriam filhos? Seria um bom pai, ou uma
mera réplica do seu? Meu Deus! A Emília não viverá melhor ao lado de um
dos «mangas de alpaca» que a cortejam já há tanto tempo? Todos ficaram
furiosos quando foi divulgada a notícia do casamento. Fialho foi visto
como um usurpador que veio invadir um reino já tido como certo e seguro.
Eis que entra a
noiva, coroada de uma beleza convencional. Parece uma boneca de
porcelana revestida de véus, quase etérea e pouco carnal. Fialho
compara-a com as mulheres que povoaram as suas noites lisboetas e
coimbrãs. Falta-lhe magia, autenticidade e acima de tudo a pujança e o
vitalismo emergentes da chama da paixão. O contraste é tal que lhe abre
uma ferida na alma.
A cerimónia foi
rápida e quando caiu em si, era verdadeiramente m homem casado. E afinal
o que havia mudado nele? |
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II |
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Já passaram vários
meses desde que Fialho e Emília uniram os seus destinos. Ele sente a
falta da cidade, das deambulações nocturnas. No entanto, gosta de Cuba e
para compensar faz grandes passeios pedestres, acompanhado pela esposa.
A planície parece não ter fim. Há sempre algo de novo na natureza,
sempre renascida e única, em autênticas explosões de vida.
Os pretendentes
despeitados envolvem-no numa teia de intrigas, calúnias que aumentam
diariamente.
Efetivamente, é que o
estado de saúde de Emília vai-se agravando. Dizem que tal situação se
deve às grandes caminhadas a que o marido a obriga. Não lhe dá descanso
e a coitadinha, tão frágil, definha de dia para dia.
Na verdade, esforça-se
por ser um esposo dedicado, embora a sua preocupação primordial seja
sempre a escrita. Lá vai desenhando através das palavras tudo o que lhe
percorre a alma, combatendo a retórica vazia e as frases feitas. A
miséria, o sofrimento, são temas constantes que lhe afloram a pena,
sempre que se senta à secretária. Do mesmo modo, surgem-lhe espaços
quase obsessivos dos quais não se afasta: a taberna, o hospital, os
bairros infectos, as casas miseráveis...A linguagem que usa reflecte
todas essas realidades impregnadas de crueldade e injustiças. Termina
Os Gatos, vai gerando contos e crónicas – a compensar os filhos que
não tem - por vezes, mordazes, irónicas, cáusticas.
Assim, vão correndo os
meses, até que numa tarde de céu carrancudo e ameaçador, Emília não o
acompanha na caminhada habitual. Está doente, fragilizada, tem de
repousar. Porém, ele vai sozinho. Impele-o o desejo de andar para
organizar as ideias, para delinear as histórias. Além disso, precisa de
averiguar as sementeiras que ainda falta concluir nos campos. A terra
virgem e fecunda não pode esperar mais tempo. É necessário aproveitar as
chuvas que virão em Outubro e Novembro e que farão cada semente
rasgar-se e germinar.
De nada lhe servirá
ficar durante aquela hora à cabeceira da esposa. Não poderá fazer muito
como médico e ainda menos como marido.
Uma chuva fraca começa
a cair, envolvendo-lhe o corpo, apesar de protegido pelo capote. O
cheiro da terra molhada penetra-o até aos ossos, anunciando a sua
promessa de vida. Quase todos os terrenos já foram arados e os trabalhos
agrícolas estão mais adiantados do que esperava.
Regressa feliz. Apesar
de muitas vezes se sentir uma ave engaiolada, aquela vida não é má de
todo. Ao menos, ludibriou a miséria, essa aranha gigantesca que sempre o
aprisionou na sua teia implacável. Por outro lado, o livro de contos
O País das Uvas, publicado há pouco tempo, parece ter sido bem
acolhido...
Ao entrar em casa,
depara-se com as lágrimas da criada. Emília piorara, e parecia ter
exalado já o último suspiro. Revoltado, incrédulo, precipita-se para o
quarto. |
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III |
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Naquela manhã, Fialho
quis regressar a Vila de Frades. Quis reencontrar o passado e as raízes
na casa que lhe testemunhou o nascimento. Quis enfrentar frontalmente os
fantasmas e os medos que lhe arruinaram a infância e parte da juventude.
É um homem de
cinquenta e quatro anos, solitário, incompreendido, acossado por
calúnias e invejas. Que pode ainda esperar da vida? A felicidade
desejada que nunca o visitou? O reconhecimento e a admiração dos outros
que nunca sentiu?
Não, agora já é
demasiado tarde. Para que lhe serve a vida? Já gastou todas as palavras
e todas as emoções. Pesa-lhe ainda não ter ouvido a última palavra, nem
ter segurado pela última vez a mão da esposa. Mas isso já foi há muito
tempo, quase dezassete anos! Como correu veloz, o tempo, esse tirano que
ceifa vidas, corroendo a beleza e a saúde. Terá alguma vez amado aquela
mulher? Não, tem a certeza que não. No entanto, respeitava-a e sentia
afeto por essa fada que o libertara da pobreza. Nunca sentira por ela a
paixão flamejante que tivera por uma rapariga de reputação duvidosa nos
tempos de Lisboa. Essa sim, queimara-o com o olhar, enlouquecera-o com
um simples sorriso. Que seria feito dela? Provavelmente já estaria
também morta.
Emília, não. Passara
pela vida com a mesma serenidade e frieza com que repousara na urna
depois de morrer. Doente, pálida, frágil, talvez mesmo indiferente...
Percorrendo a casa,
parece-lhe ouvir a voz autoritária, dura, do pai. Seria ele um ser
humano como os outros? Ou uma mera amálgama de crueldade e frieza?
Pensa ainda na mãe e
no neto que sempre desejara. Mas como, se a mulher que desposara era tão
doente? E um novo matrimónio foi algo que nunca desejou.
Abre um velho armário
do quarto e retira um frasco pequeno. Para quê esperar que Deus o
presenteie com o absurdo da morte? O princípio de todas as incertezas
que lhe embalava a vida desvaneceu-se. Num gole rápido ingere todo o
conteúdo. Sai de casa e sobe para o carro da lavoura que se encontra
parado à porta. Toma o rumo de Cuba, apressando os cavalos.
Sente um fogo interior
que o consome e o corrói por dentro... se pudesse beber água... haverá
forma de mitigar aquela sede? De adormecer rapidamente aquela dor? Nunca
pensou que fosse assim...
Entra em casa quase a
desfalecer, gritando por água.
- Ó senhor, mas o que
é isso? – pergunta a velha governanta, aflita com o aspecto do patrão –
sente-se, sente-se aqui, que eu vou a correr buscar água.
No entanto, segundos
depois quando regressa, com o copo de água, Fialho já não necessita
dela. A sede, a dor e o desespero abandonaram-no para sempre, tal como a
vida. |
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Dora Nunes Gago (Portugal)
Nascida a
20/6/1972 em S. Brás de Alportel, é
Professora,
doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora
de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de
Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em
co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da
escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007);
Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de
doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008.
Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e
antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações sobre as
“imagens do estrangeiro na Literatura Portuguesa” em Congressos
Internacionais.
Contacto:
doragago@sapo.pt |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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