REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

   

 

 

Tomarei como ponto de partida para a minha reflexão um livro recentemente publicado, da autoria da bióloga portuguesa Teresa Avelar, cujo sugestivo título nos coloca no cerne da problemática evolutiva: A evolução culminou no homem?[1]. A obra constitui essencialmente uma crítica à noção de progresso - enquanto marcha linear e inexorável em direcção a um estado de maior perfeição - o qual, aplicado aos processos biológicos, teria conduzido inevitavelmente ao aparecimento do ser humano. A crença mais comum é a de que a evolução culminou efectivamente no homem e este é um ser superior aos demais, quiçá à parte das criaturas e o fim último da própria história. Ora, conforme se discute na obra, estamos perante uma mera crença, subjectiva e antropocêntrica, contrária às lições de Darwin e à teoria da evolução.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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MARINA SANTOS

 

Considerações

acerca do progresso humano

                                                                  
 

    Também John Gray, na obra Sobre Humanos e Outros Animais[2] critica o humanismo liberal como um substituto (ou sucedâneo) da religião e denuncia o papel central conferido ao progresso como uma perigosa e persistente «superstição». Afirma que o projecto de emancipação humana universal através da razão, da autonomia e do livre-arbítrio não é senão uma versão secularizada da perfectibilidade humana e da crença do seu lugar privilegiado no mundo. A noção de progresso funda-se ainda na esperança de que o conhecimento traga consigo uma significativa melhoria da condição humana, uma libertação das contingências e das catástrofes a que estão sujeitos os seres da natureza.

    Defendo que a ideia de progresso e, concomitantemente, a de superioridade de uma espécie ou indivíduo sobre outros deve ser esclarecida à luz do paradigma que Darwin iniciou e que a síntese evolutiva moderna reforçou. Entenda-se como um paradigma, no domínio científico, um modelo explicativo do mundo, uma perspectiva devidamente fundamentada, testável, replicável e falsificável, aberta à crítica e à revisão pelos pares. Sobretudo, uma boa teoria científica deve ser capaz de fazer previsões. Ora, a teoria da evolução tem sido criticada precisamente por não permitir previsões nem postular leis naturais que se pretendem universais e abstractas. A previsão é uma consequência do método hipotético-dedutivo, mas o objecto de estudo (os organismos) é demasiado sensível às condições iniciais e às contingências do meio ambiente no decurso do processo evolutivo. Não é possível prever dentro de limites razoáveis que mutações irão ocorrer, que genótipos irão recombinar-se, que alterações ocorrerão num ecossistema, ou que outros eventos irão afectar o modo como as espécies se desenvolverão ao longo do tempo. E tal é tanto mais difícil quanto maior a escala temporal. E contudo, em contexto laboratorial, provou-se que, na ausência de outras influências, é possível determinar as propriedades dos processos e sistemas biológicos, de modo a prever a sua evolução. Portanto, sob condições controladas, os organismos podem revelar as suas características e podem ser estabelecidas leis. Mas não sendo possível calcular e controlar, em contexto natural, o tipo de alterações a que as espécies estão sujeitas (sobretudo a médio e longo prazo), restam propensões e a busca retrospectiva das variáveis envolvidas nessa mudança. Assim, à luz do conhecimento científico actual, a perspectiva dominante é a de que a diversidade de formas de vida na Terra (existentes ou extintas) mostra a existência de alterações, mas nada permite afirmar a existência de um sentido único e linear ou de um plano intencional para que estas ocorram.

    Contudo, apesar de não se vislumbrar progresso, não é certo que algumas espécies ou indivíduos são superiores a outros? O macho alfa de uma matilha não é superior aos outros indivíduos da sua espécie? Na “corrida ao armamento” não existe uma superioridade competitiva de um pavão com uma bela plumagem sobre outros menos vistosos? A problemática da superioridade de algumas formas de vida sobre outras poderá ser igualmente perspectivada sob o ângulo da complexidade: não é óbvio que o homem é mais complexo do que uma bactéria? Mas, segundo Darwin, «quem decidirá se um choco é superior a uma abelha?». Os critérios poderão passar pela complexidade estrutural ou, em alternativa, pela versatilidade bioquímica ou genética. Contudo, tal como afirmou Teresa Avelar (2010, p. 66): «Não há dúvida que o valor máximo de complexidade aumentou durante a longa história da vida, mas o valor médio não aumentou significativamente, visto que a grande maioria dos seres vivos continua simples (…)» e conclui, secundando Darwin, que «a selecção natural permite mas não garante inevitavelmente o aumento da complexidade».

      Voltando à questão do progresso, o conceito implica: mudanças ao longo dos tempos; uma direcção ou sentido pré-determinado para o qual essas alterações contribuem; e uma inequívoca melhoria dos estados mais recentes em relação aos anteriores. A mudança é suportada por inúmeras evidências empíricas, desde fósseis ao ADN, mas quanto aos outros dois aspectos, a controvérsia mantém-se. Tenha-se em atenção que para os evolucionistas, os processos evolutivos, naturais e cegos, são suficientes para explicar as características dos organismos vivos, a sua diversidade e adaptabilidade. A diversidade dos organismos é fruto da mera combinação de factores como a variação, hereditariedade, selecção e tempo. O mundo é feito de mudança - e da sorte de possuir as condições certas no momento certo para vencer na terrível luta pela sobrevivência. O mais “apto” não é o “melhor”: nenhuma ilação moral ou tendência permanente decorre da constatação do facto de que aqueles indivíduos que, num dado momento, estão em posição mais vantajosa sobre os outros (da sua espécie ou de outra) têm maiores possibilidades de sobreviverem, de se reproduzirem e de se tornarem mais numerosos. A vantagem competitiva do belo pavão que agora se exibe e é preferido pelas fêmeas para a reprodução pode vir a desaparecer se surgirem novos predadores em que a velocidade de fuga seja mais importante do que a plumagem. Assim, a vida é melhor entendida como «oportunista» e o resultado de «engenhocas»: uma espécie bem adaptada num determinado momento pode deixar de o estar, o que pode levar à sua extinção se as novas condições se mantiverem; assiste-se a alterações de determinados órgãos preexistentes para outras funções distintas daquelas que realizavam primordialmente (a função das penas está ligada ao voo). Assim sendo, não se vislumbra um plano predeterminado e unívoco: só variações aleatórias (lotaria genética), combinadas com a actuação da “peneira” da selecção natural (não aleatória, mas genericamente indeterminada, uma vez que a adaptação resulta de uma multiplicidade de variáveis ajustadas a cada caso concreto), multiplicadas ao longo de vastos períodos temporais. O resultado deste longo processo é, portanto, indeterminado à partida. O homem actual é um ser “improvável” que poderia nunca ter existido.

     Do anteriormente exposto, infere-se que as bases do antropocentrismo foram abaladas com a perspectiva darwinista sobre o mundo e a vida. Não é de estranhar que os ataques dos criacionistas mais fundamentalistas sejam dirigidos sobretudo a este aspecto em particular: a retirada da centralidade e do estatuto especial ao ser humano. Mas existe uma versão secularizada do dogma da superioridade do humano: não seremos nós os únicos que, aqui e agora, somos capazes de reflectir sobre nós mesmos e o mundo? A ciência, criada por nós, não nos trouxe a capacidade de sabermos mais, manipularmos (ainda que apenas em parte) a vida e transformarmos o mundo? O mundo teria sentido se não estivéssemos cá para o pensar? Esta última versão da centralidade do fenómeno humano é a mais difícil de erradicar, dado apontar para a complexidade do organismo humano e para as suas realizações culturais – especialmente os avanços nos domínios tecnológico e científico. Mas existe realmente progresso? Em certo sentido, temos algo que não existia antes, um cérebro/mente que confere inteligibilidade e permite o domínio de certos fenómenos. Temos a linguagem, os artefactos e a arte… e inventámos a moral, a filosofia e a tecnologia. Contudo, julgo que se a ciência aumenta o poder humano, concomitantemente exibe e amplifica as suas falhas. Não me parece haver progresso na natureza humana, sobretudo nos domínios ético e político e, se olharmos em volta, o “verniz civilizacional” estala com demasiada frequência em conflitos, atrocidades, subjugações. Sob certas condições, o homem comporta-se como um organismo patogénico, cujo poder destruidor põe em causa a sua própria sobrevivência e a do planeta que habita. Por que não encarar estes aspectos como reveladores da condição humana, resquícios do seu passado?

     Afinal o Homo Sapiens é um ser especial e o auge do processo evolutivo? Pelo facto de, aqui e agora, nos podermos deleitar com o nosso lugar no mundo e na vida, julgamo-nos narcisistamente o propósito e o fim do processo evolutivo. Contudo, tal pode resultar apenas das limitações do entendimento humano e duma perspectiva egocêntrica radicada em crenças não fundamentadas. Se o processo evolutivo culminou no ser humano, então deixou o trabalho inacabado, pois este não é “perfeito”: defeca, tem varizes, vê pior do que um polvo… Também o saber humano, como um todo, não é cumulativo nem caminha inexoravelmente em direcção ao progresso. Assim, o que uma civilização conquistou pode rapidamente desaparecer (veja-se a destruição da Biblioteca de Alexandria). Algumas civilizações nascem, desenvolvem-se e entram em decadência. Outras, talvez melhores e menos beligerantes, não chegam a impor-se. O azar, a contingência e a extinção fazem parte da história dos hominídeos e da vida na Terra.

     Desçamos do pedestal em que nós mesmos nos colocámos e, humildemente, compreendamo-nos como parte de um processo em que os “animais como nós” estão envolvidos. A questão O que é o homem?, reequacionada à luz da teoria da evolução, mostra-nos como peões no jogo da vida,  elementos efémeros num mundo que continuará sem nós - mesmo que o encaremos como um absurdo e uma afronta! A luz trazida pela teoria da evolução para a compreensão do nosso lugar no mundo e na vida não lhe retira o mistério, a beleza ou o sentido. Julgo que, bem pelo contrário, nos permite experienciar um sentimento de “re-ligação” ao universo dos seres vivos e abre novas e profícuas respostas à questão Por que estamos aqui?[3]

   
 

[1] Avelar, Teresa. A evolução culminou no homem? Lisboa: Bertrand Editora, 2010. 

[2] Gray, John. Sobre Humanos e Outros Animais. Lisboa: Lua de Papel, 2007

[3]   Como complemento ao presente artigo, consulte o Museu Virtual da Evolução disponível no endereço http://sites.google.com/site/pensaraevolucao/, criado no âmbito da disciplina “Museus, Colecções e História das Ciências” ministrada pela Professora Ana Luísa Janeira no segundo semestre do ano lectivo transacto.

 

 
Marina Isabel Ramos dos Santos (Lisboa, 23/08/1966, Portugal)
Licenciada em Filosofia na Universidade Católica Portuguesa (secção de
Lisboa); Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais no
Instituto de Estudos Políticos da U.C.P.; Professora do ensino secundário
desde 1994 nas áreas de Filosofia e Psicologia, actualmente exerce funções
de formadora nos cursos de Educação e Formação de Adultos na Escola
Secundária Leal da Câmara (Rio de Mouro).
Criadora de sites dedicados às suas áreas de ensino e do blogue
http://amorsaber.blogspot.com/
 

 

© Maria Estela Guedes
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