REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 14

 

 

I. O Imaginário Medieval

 

“Cumpre-nos, neste momento, lembrar que aquele mundo
material pode ser transfigurado pela hipérbole e este mundo
moral valorizado pela comparação. Em caso nenhum porém
saem esses mundos, por estes motivos,
alterados substancialmente, quando em confronto
com a verdade histórica que lhes corresponde”.
(António José Saraiva)

É do conhecimento geral que em tudo o que possa corresponder ao actual conceito de ”Maravilhoso”, e onde vemos nós uma categoria do espírito ou da Literatura, viam os Clérigos da alta e baixa Idade Média um universo sem dúvidas, moralizante ou ideal, todo um imaginário que recorria a uma série de imagens e metáforas, alegorias e personificações, entendíveis e quase palpáveis ou reais.

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Dir. Maria Estela Guedes  
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JOÃO SILVA DE SOUSA

 

O Maravilhoso na Idade Média
Uma Literatura Profana

                                                                  
 

Há, pelo menos três grandes questões fundamentais do maravilhoso no Ocidente medieval.

A primeira é respeitante à atitude dos homens desses séculos (V a XV) em relação às heranças das alegorias que receberam. A sociedade cristã estendeu-se a mundos que lhe legaram culturas diversas, antigas e modernas de transição, ricas e variadas, de um colorido humano e de denso arbóreo, ora pálido e cinzento e visualmente nebuloso… Mais do que outros elementos da cultura e da mentalidade, pertence, precisamente, às camadas antigas.

Qualquer sociedade segrega maravilhoso e sonhos de espantar. Mas, principalmente, vai alimentar-se de um maravilhoso antigo, atendo-se a velhas maravilhas. É assim nas sociedades cristãs e assim é nas muçulmanas: o Alcorão e a Sunna são riquíssimos em metáforas - que, fundem, em um único, dois termos de comparação -, e hendíadis – pela qual se divide uma ideia em duas - dão origem a variadas interpretações, crenças, aceitações e, claro, por consequência a Escolas e seitas.

Os autores seguintes… até mesmo os de hoje, nas comparações que fazem e nas irrealidades que transmitem, adoptam, aqui e ali, resquícios dessas artimanhas poéticas nas suas prosas incontidas.

O Cristianismo criou pouco neste domínio. Tudo já vinha de trás, e, pretendendo-se segurar as crenças, pela ética e pela moral, mantém-se inalterável, tal qual nos seus outros domínios de que se assenhoreou. Há um maravilhoso cristão, mas este surge como uma adaptação de um anterior, cuja pressão, perante a religião, o forçou a pronunciar-se e a afirmar-se.

Na Literatura, o fantástico é quase sempre de raízes pré-cristãs e, nos séculos XII e XIII, verificou-se uma inesperada irrupção do maravilhoso na cultura erudita, como acontecerá entre os pré-românticos e durante o romantismo. O maravilhoso dos romances corteses encontrava-se profundamente integrado na busca de uma identidade, individual e colectiva, do cavaleiro idealizado.

A segunda questão é a do papel do maravilhoso no interior de uma religião monoteísta. O mundo do sobrenatural dividia-se, então, em três domínios:

o mirabilis (de origens pré-celtas);

o magicus (de um lado, uma magia negra – do diabo e, do outro, uma magia branca, lícita);

o miraculus (o milagroso, cristão e advindo de Deus).

A última questão é a função do maravilhoso na Idade Média, isto é, o modo como ele funcionou como escape ao quotidiano e como uma forma de resistência à ideologia oficial do Cristianismo. O maravilhoso serviu ainda, por último, para fins políticos, tendo sido utilizado pelos dirigentes em todos os tempos e hoje pela Igreja.

Nos momentos posteriores, mas mais próximos da Idade média, no preciso minuto da derrocada do regime feudal, prosadores e poetas recorreram a estilos e ao uso de matérias que retrocederam às centúrias passadas, como uma espécie de saudosismo: Na Hispânia, pelas lutas constantes das guerras da Reconquista.

É um estilo novo? Claro que nada é igual. Mas a transparência do épico e do heróico em Os Lusíadas, por exemplo, nas obras de Shakespeare, na áurea mediocritas vicentina e das éclogas… apresentam-se aos leitores como algo inabsolutamente espartilhado pelas ideias religiosas anteriores de tão forte influência.

Este estilo que é possível considerar de diversos ângulos de visão, encerra processos diferenciados, tais como:

Sons (fechados ou abertos, graves ou agudos, mas nunca desajustados a um ritmo pomposo e solene, alegre ou triste, consoante as circunstâncias;

Adjectivos seleccionados em função do objectivo a enaltecer (não raramente superlativados);

Perífrases empolgadas: o emprego, de novo, da comparação, da hipérbole, da alegoria, da imagem, da personificação e de latinismos; a expressão por múltiplas palavras do que poderia escrever-se, usando uma única

Vejamos, para tentar clarificar:

1. O real da grandiosidade, tomado em sentido rigorosamente etimológico, temo-lo presente como um nome adjectivado. O real grandioso, da matéria épica, assim usado, não é mais do que um adjectivo que qualifica o real; o real grandioso em Camões ou em Shakespeare, traduz, precisamente, um facto, a realidade no seu todo, alto, elevado, sublime e pomposo.

2. Quer num caso quer no outro (entre os exemplos apontados), temos em presença feitos extraordinários, pelas vitórias, aventuras ou desgraças bem marcantes, excessos que não podem deixar de ser relatados (embora num real fantasioso, cronístico e épico ou trágico) .

Desta feita, não são mais do que factos acontecidos, em torno de momentos dos mais altos da História… como foram os compostos por Verdi ou Bellini. Quem se não lembra de Calos I degolado, de um Otelo que se sente traído, do melodrama I Purinati de Vicenzo Bellini, dos padecimentos dos Servos Hebreus... e, na maior parte dos casos, do contacto entre o Ocidente e o Oriente, ou, num lado ou noutro, do choque das civilizações e das peripécias internas em Reinos desgovernados.

Assim, é de parecer que, seja em que altura for no rodar dos séculos, não é difícil prever, antes até de uma leitura mais atenta, logo nas primeiras cenas, que, à introdução deste real grandioso, deve toda a sua atmosfera épica a mais considerável e melhor parte: é, pois, em si, espectacular, perturbante, ainda hoje, para qualquer leitor suficientemente integrado na época em que a acção decorre.
Em duas palavras, vejamos mais de perto:

- o mundo material a abranger os grandes fenómenos observáveis pelos sentidos e pelo raciocínio: mudanças de política urgentes, amores traídos de grandes personalidades políticas, batalhas, cercos, embaixadas e convénios…

- o mundo moral a reunir os estados psicológicos de quantos tomaram parte na acção ou que, durante esta, são recortadas ou pressentidas em profecia. Tenhamos em conta um grande mestre como Giacomo Puccini, que vai ao Japão buscar a sua personagem mais sofrida pela maldição que recai sobre uma mulher por cumprir a sua missão de gueixa.

3. O irreal mítico, para a maioria dos autores invocados e para tantos outros não poderia ser, nas suas epopeias ou narrações épico-românticas de uma importância secundária: essas personagens que surgem na épica melodramática foram, outrora, uma explicação racional, bela e susceptível tornando-se imprescindíveis para o desenrolar dos factos, e sublimes da Natureza silenciosa.

No espírito do homem medieval tal como sucede nos melhores e mais significativos autores da corrente da história literária cabem, a par, a crença cristã e o entendimento do sentido profundo das velhas crenças extintas. Não eram nem são símbolos mortos: Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, Jorge Amado, Paulo Coelho, C. S. Lewis… Existiam, antes, enquanto espíritos que sinceramente neles criam… e os leitores acreditariam. A Divina Comédia antecipou e ultrapassou Dante Alighieri. Deste autor, é um poema viés, épico e teológico da literatura italiana e mundial.

 













Mostrado em um exemplar da Divina Comédia: ao lado da entrada para o inferno, os sete terraços do Monte Purgatório e a cidade de Florença, com as esferas do Céu acima. Afresco de Michelino

 

A Comédia divina foi criada por poetas com o objectivo único e simples de promover o engrandecimento dos homens, coadjuvados por divindades, a fim de, longe das nossa compreensão imediata, as obrigar a declarar a autofalsidade, ultrapassado que era o momento culminante do encontro dos heróis com os homens comuns.

4. O milagre ou a ruptura de um véu nebuloso que nos parece querer separar o chamado mundo contingente do Além. É, todavia, um constante motivo de admiração para quem dela tem consciência, mesmo através dos olhos a que as deusas e outros seres mitológicos emprestam algo de seu para a concretização dos objectivos, dos primários aos mais difíceis.

Pelo menos, por esse motivo, o milagre é um factor de atmosfera épica, e nenhum autor da Idade Média ao século XVI o desprezou. Camões, como se sabe, é, entre eles, disso o melhor exemplo. Por outro lado, fora larga a importância concedida à mitologia e à interferência de Deus, Pai e Filho, da Virgem e de todos os Santos e era, pois, prudente incluir milagres cristãos, numa obra que teria de sair com a chancela do Santo Ofício - de Itália, desde o século XII, à Península Hispânica, dos finais do século XVI ao XIX. À censura Franquista e Salazarista. 

  II. Uma Literatura Profana
 

“A literatura laica neste período não foi tão produtiva
como a literatura religiosa, mas grande parte
do material tem sobrevivido, e possuímos hoje uma grande
quantidade de obras da época, crítica com a corrupção do clero”.
(Roger Sherman)

 

Com efeito, o Cristianismo deformou e mudou a função das lendas que advinham de um sistema pré-cristão (Graal – como fixaremos adiante – da taça mágica ao cálice, existindo no mundo, pelo menos, meio milhar delas, cada uma com a sua verdade…) tolerando, desta feita, a sua componente de maravilhoso.

Uma história foi escrita há mais de 800 anos, a qual faz parte do livro Le Conte du Graal, de Chétien de Troyes (1135-1183), um dos maiores escritores franceses da Idade Média, o mesmo, deixando de lado a antiguidade clássica e aproveitando-se das lendas celtas e das ricas fontes folclóricas europeias, passando a dedicar-se ao ciclo arturiano e ao tema do amor cortês, duas fontes inesgotáveis da literatura ocidental.

No seu livro, acha-se escrito:

“O jovem Sir Percival estava exausto depois de cavalgar o dia inteiro. Tinha partido, meses antes, da corte do rei Arthur em busca de fama e aventuras, mas, naquela noite, tudo que ele queria era dormir. Foi, então, que avistou um castelo. Os portões estavam abertos e Percival entrou. Lá, no seu interior, foi recebido por um certo “Rei-pescador”, um velho nobre que o convidou para cear. Antes de o banquete começar, duas crianças atravessaram a sala. Primeiro, um menino passou, trazendo nas mãos uma longa lança de uma brancura deslumbrante, cuja ponta sangrava como se estivesse viva. Em seguida, apareceram dois homens muito belos, carregando cada um em sua mão um lustro de ouro niquelado, e em cada um brilhavam pelo menos dez círios.

 

Logo depois, surgiu uma menina em roupas majestosas, carregando um recipiente de ouro puro, incrustado pelas jóias mais preciosas da Terra ou do Mar, embora nenhuma gema pudesse comparar-se com o Graal.

Quando a mesma entrou com o Graal, um clarão atravessou a sala, tão grande e intenso, que os círios do castelo perderam o brilho como as estrelas ou a lua quando desapareceu o Sol. Atrás dessa donzela, vinham outras, levando um ábaco de prata”.

 

Conta-se, nas lendas arturianas, que todo aquele que saía à procura do Santo Graal, após ter encontrado o castelo do Graal, tinha de passar por uma certa prova, e se conseguisse realizar a mesma com êxito, o Rei-pescador seria curado e as terras desoladas tornar-se-iam férteis. A referida prova nada mais era do que perguntar o significado do que via, quando os objectos sagrados eram expostos, e a quem o cálice do Graal servia?! No caso de não efectuar o seu questionamento, o castelo, o rei, o Graal, tudo mais se dissolveria como num sonho, e as terras permaneceriam estéreis, até que ele ou uma outra pessoa pudessem alcançar o castelo novamente, quando teria, então, uma segunda oportunidade de fazer as perguntas. Sir Percival ficou deslumbrado e dominado de admiração causada pela misteriosa procissão do Graal, mas, por timidez, não perguntou o significado do que via.

No dia seguinte, o cavaleiro seguiu viagem. Aquela cena nunca mais saíra de sua cabeça. Um dia, decidiu reencontrar os tesouros e desvendar seus segredos, mesmo que a aventura lhe custasse a vida. Naquela oportunidade, a busca pelo Graal acabava de começar. Sir Gawain, da mesma forma, foi dominado pelo sono no momento crítico, de maneira que também nada perguntou acerca de qual o seu significado.

Chrétien de Troyes faleceu antes de concluir o seu livro, e, neste, nenhuma explicação deixou: o que seria aquele recipiente portador daquele brilho, e o que ele continha?! Quem era o rei-pescador?! Qual o significado daquela lança que sangrava?! Essa série de perguntas fora, pois, respondida pelo escritor.

O cálice, segundo as lendas, tem certos poderes associados, tais como:

- Capacidades para curar e restaurar fisicamente o corpo humano;

- Comunicação com Deus ou o conhecimento do próprio Deus;

- Invisibilidade para o mal ou para olhos que sejam desmerecedores;

- Capacidade para “alimentar” e proteger, fosse de que forma fosse, os presentes;

- Imortalidade: “Capacidade para chamar para junto de Si todos aqueles que forem merecedores”.

O simbolismo sexual do Graal é indiscutível: é uma taça. E, como tal, é a imagem do seio da mulher que dispensa alimento. Por analogia, é um continente, e seu conteúdo, na versão cristianizada, poderíamos dizer, é o sangue de Jesus. Por isso, é fácil deduzirmos que o Graal, mais do que a imagem do seio, representa o útero da Deusa Mãe, que dá vida a todas as criaturas do mundo, na condição de ser fecundada: “Rainha Hécuba”, como lhe chamou Carl Off, na Carmina Burana:

 
“Gira roda da fortuna
eu desço e pereço
outro é levado para cima;
no cimo de tudo
senta-se o rei, no vértice:
ele que se guarde de cair!
E sob o eixo da roda lê-se:
Rainha Hécuba”.
 

Sabemos que o País do Graal é estéril, está devastado e que espera o cavaleiro eleito que deve devolver a fertilidade perdida. Como o Rei-pescador tem um ferimento que afectou suas partes viris, portanto, a taça – que também teria uma boca circular perfeita, como a Távola Redonda e a Roda da Fortuna ou do Destino -, do Graal, como útero materno, só poderá ser fecundado por um homem eleito (futuramente iremos abordar a figura do Graal como sendo – o sangue). Por analogia, Jesus seria esse eleito, mas qual foi o útero que Ele fecundou. A procura do Grall em forma de um cálice despertou inclusive a curiosidade dos Nazis. Segundo Stephen O´Shea e M. Sabbehedin, o Terceiro Reich teria, efectivamente, patrocinado uma busca ao Cálice, antes da Segunda Guerra Mundial. Tudo teria começado com as pesquisas do místico nazi Otto Rahn. Para ele, o Graal era uma relíquia do paganismo, símbolo da resistência germânica contra o Cristianismo. Para Rahn, os guardiões do Graal teriam sido os Cátaros hereges, perseguidos e exterminados pela Igreja, nos séculos XI e XII, e o Cálice estaria escondido nas ruínas de Montségur, antiga fortaleza dos Cártaros, no sul da França.

As teorias de Rahn chegaram aos ouvidos de Heinrich Himmler, comandante das SS e entusiasta das ciências ocultas. Himmler convidou Rahn a unir-se à divisão de pesquisas arqueológicas das SS e ordenou que fossem efectuadas escavações em Montségur. Alguns afirmam que, posteriormente, Rahn enviou a Himmler um grande cristal de quartzo, que se assemelhava à descrição do Graal, efectuada por Wolfram Von Eschenbach. O mais provável, no entanto, é que isso também não passasse de uma lenda, o que não faz História.

 






Representações da Taça do Graal. Há para cima de 500 taças distintas espalhadas por todo o mundo.
  Quem se não recorda da Lenda de Cárquere e da de Ourique, ocorridas durante a vida de D. Afonso Henriques e maquinadas no século XVII? E da lápide que conta 400 anos e se encontra na Capelinha em Guimarães, afirmando que, em 1106, se baptizou D. Afonso Henriques, na respectiva Pia Baptismal, quando este nasceu por Julho/Agosto de 1109? E o tão propalado Milagre das Rosas da Santa Rainha Isabel que calou a curiosidade ao marido, D. Dinis? Se há lendas medievais, a grande maioria foram só construídas, muitos séculos mais tarde, com propósitos muito políticos muito concretos.

Entre as origens do Maravilhoso medieval (nomeadamente da lenda arturiana), encontram-se:

- As maravilhas bárbaras;

- A mitologia germânica;

- E o imenso reservatório céltico – como a matéria da Bretanha, a cortesia ou a aventura como maravilha.

Como resultado, há elementos pagãos presentes na Literatura da Idade Média, tais como sonhos, aparições e visões – o maravilhoso mágico e a feitiçaria, que existe para lá do maravilhoso simbólico e moralizante e, também, o maravilhoso literário. Leiam-se as historietas dos Livros de Linhagens, coligidas por Herculano nas suas Lendas e Narrativas. Historietas que envolvem Famílias dos primeiros séculos da História Portuguesa.

Na verdade, os romances mais belos e delicados, animados de ideias são os do ciclo bretão, que se socorrem de mitos maravilhosos e fantásticos e em que o ideal da cavalaria é nobilitado pelo ideal religioso, através dos quais os heróis procuram orientar a sua acção, mas acabam por sucumbir, na sua maior parte, por fraqueza humana, a tentações que os desviam do seu propósito.

  III.  O Tema da Floresta na Literatura Medieval
 

“Pinhais desciam as encostas, ao compasso desmedido
das suas pernas altas, dando a impressão de que, à marcha
que levavam, breve se não veriam mais. Bosquedos
de giesta e urze, moitas e brejos mal marchetavam com
seu verde difuso a vaga soalheira que enrubescia a terra
os picotos, recortados na brancura espacial, tinham o ar
expectante de ser alguma vez Sinai, enquanto os penedos dormiam
os sonos brutescos, letárgicos, dos primeiros monstros da criação”.
(Aquilino Ribeiro)

 

No Ocidente medieval, a floresta foi para o Homem o lugar dos seus lendários mistérios, aventuras e terrores. Serviu de refúgio para cultos pagãos, para os eremitas, para os vencidos e para os marginais. Os sentidos simbólico e enigmático exprimiram-se, pois, na produção do imaginário e da fantasia, conforme testemunham dois dos maiores criadores da Literatura em Francês arcaico: Béroul, com a sua lenda manuscrita Tristão e Isolda e Chrétien de Troyes, com os seus romances.

É principalmente na Literatura cortês que a floresta desempenha um papel primordial e simbólico de capital importância. A floresta está no coração da aventura cavaleiresca, ou melhor, esta encontra na floresta o seu lugar de eleição e o tema preponderante é o da floresta-provação. Está também ligada à ideia de solidão.

De 500 a 1200, conheceu-se a existência de uma fase climática quente e, consequentemente, um retorno ininterrupto da floresta que, rapidamente, a par do deserto, é associada à ideia de solidão, ou as vastae solitudines, lugares incultos, charnecas arborizadas: forez i a granz e gastines, escreve, no século XII, o trovador anglo-normando Benoît de Saint-Maure. Mas o sentido simbólico profundo da floresta manifestou-se na produção do imaginário e, não raras vezes, do medonho.

Os mortais comuns têm, pois, medo da floresta, pelo emaranhado dos caminhos quase impossíveis de trilhar, as escuras grutas que de dentro, de dia, brilham com os reflexos do Sol, o seu silêncio enigmático quebrado pelo piar da coruja e pelo elevar das asas de um pássaro que surge repentinamente… pelos seus silêncios e, quantas vezes, também pelas suas vozes que atordoam os homens mais aventureiros. É lugar de bruxas,•magos, faunos, de animais nunca vistos, uns alados outros não, em lugares normais, onde só aventureiros e corajosos ousam internar-se. Em Chrétien de Troyes, a floresta é lugar de provações e de aventuras, tendo um papel importante no seu último romance: Perceval ou le Conte du Graal: “qui est si effrayante que nul nose y entrer”. É um episódio complexo, no qual se misturam o medo, a valorização da vida selvagem do deserto, o significado de floresta-deserto como penitência e asilo, no dizer de Le Goff.

O presente poema é iniciado com o jovem Perceval, encontrando cavaleiros, e percebendo que também gostaria de ser um. Sua mãe criara-o fora dos domínios da civilização, nas florestas do País de Gales, desde a morte do pai. A contragosto da progenitora, o garoto parte para a corte do rei Artur, onde uma rapariga prevê grandes conquistas na sua vida. Ele é caçoado por Kay, mas torna-se cavaleiro e segue caminho à aventura. Perceval salva e apaixona-se pela jovem princesa Brancaflor e treina com o experiente Gornemant. Em um momento de sua vida conhece o Rei-pescador, que convida Perceval a permanecer em seu castelo. Enquanto aí fica, o cavaleiro presenciou uma procissão, em que jovens carregam objectos magníficos entre cómodos, passando por ele em cada fase do evento. Primeiro aparece um jovem carregando uma lança coberta de sangue e, depois, dois jovens empunhando candelabros. Por fim, uma jovem aparece trazendo consigo um decorado cálice, o Graal. O objecto contém um alimento que, miraculosamente, sustém o pai ferido do Rei-pescador. Tendo sido aconselhado para tal, o jovem cavaleiro permanece em silêncio durante toda a cerimónia, apesar de não entender o seu significado. No dia seguinte, ele volta para a corte do Rei Artur.

A floresta aqui, é também traidora, lugar de alucinações, das tentações (em termos de uma moral feudalizante) e de emboscadas. A floresta opõe-se, deste modo, no sistema de valores medievais, à sociedade organizada – no romance cortês, à corte de Artur, em Camelot.

Contudo, também o monarca vai à floresta beber sacralidade e legitimidade. Na Literatura, vemos, principalmente, a oposição Floresta/Castelo. Finalmente, é na floresta protegida por si mesma e não no Castelo defendido pelos seus homens e por outros que levantaram altas e espessas muralhas. Finalmente, é na Floresta que Tristan e Isolda (em Tristan de Béroul), fugindo à ira do rei Mark, se refugiam para se sentirem a salvo, que Richard Wagner pôs em cena operática de excepção.

É de ver que, no que respeita ao mito do Graal, há uma diversidade de soluções para a questão do mistério, sendo como tal mais oportuno falar de lendas do que de uma só lenda.

O poema francês de Chrétien de Troyes [c.1135-c.1191] talvez tenha sido o grande impulsionador para a popularidade do mistério do Graal. A extraordinária diversidade de romances no que se refere a este tema pode ser explicada por ramificações pré-literárias e de padrões celtas, identificáveis na Literatura do Graal. Com efeito, as verdadeiras e últimas fontes das lendas foram, muito provavelmente, as sagas irlandesas precoces, tendo sido as personagens originais substituídas. A diversidade presente nas sagas terá gerado, pois, uma confusão de informação transmitida oralmente pelos Bretões aos Francos e Anglo-Normandos, levantando, por fim, todo um mistério e obscuridade em torno do Graal e da lenda que envolve a mesma. Por sua vez, os letrados terão solucionado, cada um com a sua própria imaginação, os contos originais que propalavam os Contadores.

Mais tarde, uma falsa pista nas palavras cors beneiz terá conduzido à cristianização da lenda e, a partir de então, os clérigos terão procurado explicações religiosas para o mistério do Graal.

 

“O Rei Artur é uma figura histórica ou o herói
que deu corpo a uma lenda?
Cabe ao leitor decidir – porque Artur é o simbolo da luta
incessante do bem contra o mal,
da luz contra as trevas”.
(Raquel Ribeiro)
 

  V. A Matéria Britânica
 

Foi sobretudo através de França que a matéria britânica se espalhou pelos países baixos europeus. De facto, aquela região, na Idade Média, produziu mesmo uma maior quantidade de Literatura arturiana que a Inglaterra. Contudo, foi devido aos Bretões que a lenda se espalhou até ao reino dos Francos.

Efectivamente, a Literatura celta precoce já tinha dado origem, no século IX, a uma série de lendas locais, nas quais Artur era a figura central. Estas eram recheadas de folclore, lenda e rastos de mitologia pagã, tudo contado em prosa para entretenimento popular.

Os textos celtas variam de tal maneira que isto sugere que haveria uma considerável história de tradição oral. Assim, a tradição celta foi herdada pela Bretanha e pela Irlanda, tradição esta sobretudo oral, mas também escrita.

 








(O reino terreal de Artur e seus Cavaleiros da Mesa Redonda, inspirado no Reino celestial da harmonia cósmica, seria o modelo oferecido aos homens para que, também inspirados nele, acedessem ao caminho de sua própria perfeição)

 

No século XII, começa a aparecer na Europa uma vasta literatura, também na qual Artur era a personagem mais destacada. Para os historiadores, cada vez se torna mais claro que ter-se-á devido provavelmente aos Bretões a difusão deste fenómeno e muitos concordam em atribuir-lhes não só a circulação das histórias que envolvem o Rei (e a sua espada mágica) mas também a ideia da Távola Redonda e o magno sentido que ela envolve, a igualdade de todos ante os destinos do Reino – algo que é absolutamente inovador e precoce a ideais que se formaram noutros Países -, da sua passagem por Avalon e dos seus fiéis companheiros.As semelhanças entre os romances franceses e anglo-normandos são, com efeito, muitas, parecendo ser seguro atribuir aos contadores bretões a adaptação da sua herança de lendas-romances ao gosto das cortes francesas e inglesas, de tal modo que terão adquirido uma reputação de entertainers. Com os seus versos em torno da figura de Artur, estes aedos conseguiram encantar condes e reis que não tinham a menor ligação ao herói britânico e dar origem a um fenómeno de grande sensação com as suas “novelas” de ficção fantástica, especialmente em França e na Hispânia.

 

 

 

 

 

 

 

(A Távola Redonda)

 

Por fim, bastantes variantes na recitação oral podem ser detectadas nos textos arturianos, preservados ainda hoje. A grande mudança num tema pode, por vezes, ser explicada por um longo desenvolvimento pré-literário, quando cada recitador fazia as suas alterações.

  VI. O Ciclo Arturiano
 

“Quando o rei viu seus homens em tal dificuldade, suspirou pelos da mesa redonda, e esporeou o cavalo, e foi feri-los, com grande sanha e com grande desejo de vingar seus homens que via diante de si matar [...] meteu mão à espada, que era boa e bem cortadora, e ele era muito corajoso e muito forte e defendia-se tão bem e tão valentemente que diziam bem quantos o viam que aquele era rei Artur e seus inimigos também o louvavam e prezavam muito, tanto o viam bem defender-se”.
(A DEMANDA DO SANTO GRAAL, 1988. p. 344.)

 


Dentro do ciclo literário arturiano, o mais conhecido é composto por cinco romances:


- L’ Estoire del Saint Graal;
- Merlin de Robert Nye;
- Lancelot-Grail ;
- La Queste del Saint Graal ;
- Le Mort d’ Artur.

A prosa de Lancelot-Grail, La Queste del Saint Graal e Le Mort d’Artur datarão, muito provavelmente, de entre 1215 e 1230, um período em que o romance arturiano, ainda beneficiando do impulso dado por Chrétien de Troyes, estava a tomar novos rumos. A tendência para transformar os versos narrativos em prosa e juntá-los por grupos já se havia manifestado, assim como o processo de cristianização da lenda do Graal já tinha ido longe, trazendo novos mistérios e um novo espírito ao mundo da cavalaria.

Esta literatura já detinha requintadas qualidades de imaginação e estilo e a prosa de Lancelot-Grail impressiona mesmo pela sua consistência e estilo, interligando as aventuras do herói. De facto, Lancelot, o fiel companheiro de Artur, estava destinado a brilhar na tardia história da Literatura arturiana.

Em meados do século XII, já se havia tornado no herói de uma lenda. É, pois, neste poema que Lancelot é promovido ao papel de herói e feito amante da rainha Gwenevere, mulher do rei Artur. Aqui ele aparece como o perfeito exemplo de fidelidade e de paixão, um mais refinado e submisso Tristão. Com a combinação desta prosa com o poema de Chrétien, a personagem de Lancelot adquiriu uma nova glória. Logo no início, Lancelot surge como filho da calamidade, roubado por uma fada (A Dama do Lago) aos seus pais biológicos e por ela foi criado no seu palácio. Com dezoito anos, é conduzido pela mãe adoptiva à corte do rei Artur e, a pedido dela, tornado cavaleiro.

Walter Scott, nos seus poemas, entre os mais estimados, legou-nos The Lady of the Lake, A descrição é, em geral, sacrificada à rapidez da narração. Neste romance, porém, ainda podemos encontrar alguns trechos que recordam um delicioso pintor de paisagens, tal como o foi Lord Byron.

Apesar de as acções da Dama do Lago serem meramente regidas pelos interesses do seu cargo, com a cerimónia de ordenação de Lancelot, as origens do mito de cavalaria são lançadas e o simbolismo literário das armas do cavaleiro e do seu cavalo, assim como as suas obrigações têm o seu início. Ainda que devoto ao serviço das armas, o cavaleiro deve subordinar o seu orgulho e egoísmo à protecção dos mais fracos e à defesa da Sagrada Igreja. Desta forma, o ideal de cavalaria é harmonizado com a moral cristã e colocado ao serviço da religião.

Contudo, paralelamente à devoção do herói por Artur, neste romance, Lancelot devota-se também à mulher do rei, constituindo este o seu maior pecado (aos olhos do ideal cristão/feudal), contrabalançado com a sua nobreza de espírito (e, deste modo, de certa forma, indulgido).

O herói enveredará assim, numa série de aventuras – votos fantásticos, combates e encantamentos.

Em La Queste del Saint Graal, quando os cavaleiros da Távola Redonda se encontram reunidos na grande sala, o Graal desaparece e estes milites juram ir em sua busca. Partem juntos, mas cedo se separam e às suas aventuras individuais, corresponderão os seus méritos. Esta obra está cheia de espírito monástico e nos cavaleiros podemos encontrar uma série de virtudes, como a humildade, a paciência, a justiça e a caridade, a temperança, a cordialidade, a moral, a ética, o auxílio às mulheres, aos órfãos e aos mais fracos, a benevolência, o amor e o respeito pela Igreja. São doze virtudes, como são doze os lugares na Mesa redonda.

Por outro lado, o Graal representa aqui o divino e os paralelos com episódios da Bíblia são alguns. Por exemplo, quando Galahad, Perceval e Bohort encontram o Graal, aparece-lhes Cristo que os serve com comida e lhes adiciona nove cavaleiros à refeição, numa reencenação da última ceia. São doze, não treze, como as virtudes à Mesa, que são, igualmente doze.

Em La Mort d’Artur, o rei descobre a traição do seu filho nascido de incesto. Chama-se Mordred e, numa luta, é morto. Contudo, também o rei é, mortalmente, ferido na cabeça e o seu corpo é levado por Morgaine e pelas fadas. O autor preserva e embeleza o ancestral mito da partida de Artur para Avalon pela mão das fadas, antes de estas o enterrarem na Capela Negra.

Neste romance, o autor conseguiu unificar materiais distintos na sua natureza e na sua origem, como o adultério de Gwenevere com Lancelot, de Chrétien, e a queda de Artur pelas mãos de Mordred, de Geoffrey. Por outro lado, o autor concedeu à narrativa uma natureza dramática, onde o poder do destino é enfatizado por efeitos de ironia e de pathos. Todavia, as calamidades também são provocadas pela vontade cega dos cavaleiros que os conduzem à sua perdição. Em cada uma das personagens coexistem o bem e o mal, ou seja, elas são, pela primeira vez, mais humanas.

Quanto à crónica de Merlin, este, meio humano, meio diabo, tem o dom da profecia. Tudo na personagem converge para o evento supremo, o do estabelecimento da Távola Redonda que representa a igualdade dos cavaleiros, defende um ideal de cavalaria, acção e defesa da Igreja. A unidade é representada por Merlim, tal como as ligações de causa-efeito. É ele o guardião de Artur e, por entre questões políticas, a história de Merlim é a história da glorificação de Artur. A generosidade deste último é assegurada pelos conselhos do primeiro.

Na Literatura, a ruína de Merlin será a sua amante, a fada Morgana, o que encaixa, perfeitamente, na sua personagem eterna (pois ela não envelhece nem pode morrer) que só poderia ser encantada para todo o sempre.

Por último, também na Literatura medieval inglesa, a lenda arturiana penetrou profundamente e um grande número de romances foi adaptado da Literatura francesa e do legado céltico. Tal como em França, Chrétien impulsionou ou expulsionou o espírito arturiano… em Inglaterra, esse papel foi assumido por Geoffrey.

Como disse Óscar Wilde, “a vida imita a Arte”.

Com efeito, na época medieval a Literatura arturiana teve uma forte influência nas cortes régias, na cavalaria nobre, nos desportos (caça ao porco montês, falcoaria, exercício dos sentidos…) e nos espectáculos da época (dança, teatro, cantares, música instrumental, canto, no papel do bobo…).

Os reis presidiam a távolas redondas: importantes Lords adoptavam os nomes de Gauvain e de Lancelot; personificações e encenações das personagens arturianas eram recorrentes nos festins, de forma a emular os seus feitos de armas. Desde 1223 até ao século XIV, uma combinação de banquete, festim e dança era conhecida como a Távola Redonda e foi uma das mais populares distracções da Cristandade. Em D. Quixote de La Mancha, de Miguel Cervantes, encontramos uma sátira ao papel do rei Artur, quando D. Quixote desafia (de forma absurda) todos os cavaleiros que encontra para um duelo.

A Literatura arturiana tornou célebres personagens que encarnavam o ideal cavaleiresco – Gauvain tornou-se o ídolo dos jovens com aspirações a cavaleiros. Tristão, que viveu um trágico amor com Isolda, inspirou a Richard Wagner, como referimos acima, a sua célebre ópera. Lancelot viveu com Gwenevere um amor de adultério e de perdição. Nasceu o amor cortês que contribuiu, sem dúvida, para o ideal de gentleman e o amor romântico. A busca do Graal desvendou mistérios religiosos, enquanto profundas lições de moral podiam ser retiradas da história de Percival.

No enredo destas histórias de amor, aventura, comédia e de alta dedicação, esteve o grandioso esquema da glória e queda da Távola Redonda do rei Artur que, por sua vez, vimos encarnar a perfeição de todas as virtudes e magnificências e toda uma Literatura que foi, no Renascimento, substituída pelo raciocínio e coerência neo-classicista, pela emoção e novidade das descobertas de novos mundos e pela intolerância do protestantismo.

Não pensemos, porém, que a fantasia, o mistério, o amor impossível, a desordem social, a imoralidade escondida… desapareceram da Literatura europeia. No pré-romantismo, no Romantismo e em autores ainda dos nossos dias e de sempre, somos envolvidos, de amiúde, pelo herói, a donzela, a mulher casada, o ciúme, a alegria e a tristeza., a imaginação… deixaram ou deixarão de existir, porque a vida real supera, a contrario Óscar Wilde, a ficção.

Os romances deste ciclo foram cedo conhecidos em Portugal. Comprovam-no alusões que surgem no Cancioneiro da Vaticana a Merlim (C.V., 930) e à besta ladrador (C.V. 1140), a Tristão e Iseu (C.V. 115) e a existência no Cancioneiro Colocci-Brancuti (n.os 1 a 5). De cinco lais de Bretanha (I, 31), dois dos quais se referem a Tristão e um a Lançarote, acompanhados de explicações sobre factos referidos nos romances deste ciclo. É possível que diferentes romances tivessem sido passados a Português no século XIV. Só dois subsistiram. Um deles, a História dos Cavaleiros da Mesa Redonda e da Demanda do Santo Graal, que se conserva na Biblioteca Nacional de Viena de Áustria. Parte deste livro foi publicado em Berlim, em 1887 por Karl von Reinhardstoettner. Otto Klob publicou na Revista Lusitana (VI, 332-346), dois episódios inéditos do mesmo livro.

Ainda destro da influência do ciclo bretão em Portugal e seus vestígios, encontramos um Merlim na chamada Livraria de D. Duarte. Aqui, havia ainda um Galaaz e um Tristam.

Estas narrativas eram geralmente conhecidas entre os cavaleiros, e até ministravam, para a conversação vulgar, exemplos e termos de comparação, como vemos no que se passou com o cerco de Cória entre D. João I e os milites. Basta, para isso, ler-se o que se refere na Crónica de D. João I, (2.ª parte, cap. 76) de Fernão Lopes. D. Nuno Álvares Pereira, logo em muito moço, tomara a Galaaz por modelo e, só por obediência à vontade do pai, consentiu em contrair matrimónio. Muitas pessoas tinham nomes de heróis dos romances do ciclo bretão.

Luís de Camões não olvidou a tradição cortesã e cavaleiresca. No Canto VI de Os Lusíadas, descreveu um episódio sintomático: os “doze de Inglaterra”, um Memorial das Proezas da Távola Redonda. É, porventura, a memória mais antiga que se encontra em obras portuguesas acerca do feito lendário. Camões acentua que não vai contar coisa fabulosa ou nova, porquanto o acontecimento relatado nesta parte do Poema pode ter-se realizado na semana da Páscoa ou pela festa do Espítito Santo, do ano de 1396, quando Ricardo II de Inglaterra ainda estava viúvo de Ana da Boémia e para casar com Isabel de Valois.

“O Rei Artur é uma figura histórica ou o herói
que deu corpo a uma lenda?
Cabe ao leitor decidir – porque Artur é o simbolo da luta incessante
 do bem contra o mal, da luz contra as trevas”.
(Raquel Ribeiro)

 

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São estas histórias que ainda hoje são contadas e que maravilham muitos de nós, fazendo-nos viajar e sonhar, por entre mundos e seres virtuosos e mágicos, convidando-nos a transcrever os nossos limites da mente e do quotidiano.

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João Silva de Sousa (Portugal)
Professor do Departamento de História, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Académico correspondente da Academia Portuguesa da História

 

 

© Maria Estela Guedes
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