REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número 11

 

MARIA AZENHA

 

Nove poemas

nove meses

 

 

 

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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    traçado para um belo aprendiz
 

eu sei  foste informado

de que o mundo real não existe

estou de acordo contigo

 

stop

 

vamos fazer um Kit

imagens na cabeça só uma

uma fotografia

um relógio

um livro de poesia

ao toque um fio de prumo

nem um queixume

 

medir lentamente tudo

 

uma máquina fotográfica

um filme

um esquadro

um compasso

uma rosa no mundo

 

um bosque de luz

um menino com fome

um país sem rumo

 

água

fogo

fumo

um cálice de chumbo

um ovo

uma escada para subir

um último olhar

 

sobretudo uma terrível paz

uma

terrível

paz

 

nu

 

ao peito um simples colar de aprendiz

 

  o poeta imaginário
 

 

(a  Maria Estela Guedes)

O poeta imaginário vive em ruas imaginárias

numa casa imaginária com mãos imaginárias.

escreve poemas imaginários  em livros de seda imaginários.

nos braços correm-lhe mares  imaginários que o  trespassam  

a espuma  é a sua  dor imaginária. o sangue  e  o sal imaginários

compõem  sombras imaginárias ao longo de  paredes  imaginárias.

em  fins de  tardes imaginárias grandes canções  de chuva imaginária

invadem os seus  olhos imaginários,

e todas as paisagens  imaginárias de um mundo imaginário 

ensaiam uma onda imaginária com a orla do vestido de  uma mulher imaginária.

o coração  do poeta  pinta   o coração dessa   mulher  imaginária.

ouve  ecos imaginários numa gruta imaginária.

 

sonha com a  morte  imaginária.

 

 

 

maria azenha

2011,jan.lx

 

  Vale a pena saber o que aconteceu
 

 

Vale a pena saber o que aconteceu:

dois anos, olhitos marejados de breu

colhia do chão uma poeira de farinha

que colocava num pedacito de pano.

Para o tecido encontrado algures no solo

sabia, com precisão, aquilo que deveria ser alimento para crescer.

O menino não estava a brincar na neve nem outra coisa ocorreu.

E tu, leitor, lembrarás  para sempre o destino de um poema a arder

para fora das mãos.

 

Como disse Brecht:

“ Observa todos quantos o teu olhar alcance.

E aqueles que conheces como se te fossem estranhos,

os  desconhecidos  como se te fossem familiares.”

 

Só quem sabe qual é o destino do homem

pode com exactidão ver.

 

  A festa de natal
 

 

À hora do almoço  fui a uma festa de Natal.

Havia teatro com estrelas, meninos e anjos.

Estavam todos mascarados. A virgem maria tinha 5 anos

E uma bola de neve na barriga.

Era Dezembro. Os pais e os avós estavam contentes

Como as coisas vulgares desta época.

Quando o Menino Jesus nasceu fomos todos

Para o andar de cima. Eu comi dois croquetes.

Os reis magos, uma fatia de chocolate e um bocado de salame.

Havia muita batata frita, gelados e coca-cola para os garotos.

Um rapaz que não estava na peça

Achou estranho que as ovelhas falassem

E que o Menino Jesus estivesse todo o tempo calado.

Rimos muito. Demos um passeio pelo parque

Esquecemo-nos de todos aqueles disparates

Contados na peça de Natal às crianças.

Quando acabou a festa chovia muito. O céu estava escuro.

O resto da noite foi sem mais sobressalto.

O papá ficou a ver o futebol.

Não foi preciso jantar.

A mamã estava com uma depressão pós-parto.

Amanhã hei-de ler-te este poema

Enquanto fizer o café.

 

  A maravilhosa flor
 

 

o amor não é de modo nenhum uma receita veloz.

com um pouco de água

cenouras

batatas e cebolas

não se fazem manjares.

dão-se algumas cambalhotas

dentro do calor.

também não é uma sopa instantânea

nem tão pouco caseira,

exige traje a rigor

bordado a pontos de travesseiro.

é absolutamente indispensável

ter uma cozinha no universo,

olhar de vez em quando, com ternura, a terra…

deve-se estar elegantemente preparado

para chorar quando se descascam as cebolas

observar com rigor cada lágrima

vertê-la para dentro de uma caixinha

e colocá-la de novo no mar,

chuva entre os intervalos da cozedura.

é indispensável

para lavar a amargura. algum sol

para a secar

para que a receita se possa tornar um manjar,

um pouco de mel

para que o produto final

possa ser assinado

não por um homem e uma mulher

mas por duas abelhas.

 

não esquecer

uma sinfonia durante o tempo de permeio

fogo

muito fogo

primeiro forte

depois suave

cultivando sempre e com rigor a devoção alheia.

de um ingrediente a outro

devem observar-se as nuvens

a temperatura ambiente

fazer pousio,

só depois recomeçar o movimento

à semelhança da nostalgia das dunas,

reparar ainda se há depósito de lodo.

deve haver.

para que mais tarde possa nascer

da invisibilidade da água

a maravilhosa flor

 

 

Poema de natal

 

 

Uma das coisas que Maria detesta

é andar com calendários nos bolsos.

Maria vai fazer oitenta anos, vive em tempo real.

No último aniversário foi engolida por um bolo.

As velas foram guardadas para memória futura.

Está nas mãos da Bela Adormecida e do Pai Natal,

que é o bombista de Estocolmo, cidadão sueco.

É o que faz fazer anos sem razão nenhuma,

como se uma abelha pousasse no coração

e a picasse com números.

A cadeira de Maria ficou sentada no lugar do WikilLeaks.

Quem publica este poema é o açucareiro.

A polícia acredita que Maria nada tem a ver

com o ministro dos negócios estrangeiros,

quer acreditem ou não.

 

  uma recordação
 

 

talvez o poema seja uma ficção e  não exista realmente.

qualquer nome com que o escrevamos

transforma-se   rapidamente num enorme  problema.

senão vejamos:

mar é simplesmente o nome que se  dá  ao mar

numa outra língua qualquer dir-se-á  mer  ou  meer , 

neste último caso em alemão.

A  senhora  Merkel  talvez se lembre disso,

sou sinceramente  a favor destas  terapias   de nomes

acho até  um absurdo  haver tradutores de línguas.

Chamemos  o mar  então por nomes distintos,

todos  a   falar a  chorar a rir  ao mesmo tempo.

(é aliás o que acontece nos tempos de antena de hoje

que não são  mais nem menos que um reflexo de pasta  de dentes

em que  falam  cinco ou seis simultaneamente... )

E  sei que há poemas que são poetas por simpatias

e outros que são poetas  atravessando  celas  da noite,

quase   ninguém  os distingue…)

Coloquemos   pois  o mar  no  lugar devido

dentro de uma bola de sabão  com outras coisas somenos

como meia dúzia de  parvos  alguns versos  taxados

a senhora Merkel  soprando com a boca aberta num papiro

 

uma recordação  de  infância na  esplanada  de Adolfo…

 

  Pai
 

 

Pai, tu és a poesia que eu não sei escrever.

Os versos vivem em todos os momentos

Quando me beijas e abraças,

E todas as palavras  se tornam mais belas

Quando te  chamo  Mamã. 

 

  coisas em forma de ilhas
 

 

as mães empurram as ilhas para dentro

de casa. durante nove meses ocupam mais espaço.

vertem gotas de água para dentro do rosto das palavras.

os seus olhos esplandecem

espreitando para o interior do corpo.

 

por vezes a luz derramada numa sombra antiga

que  vai enlouquecendo  nas mãos

reflecte a gestação das árvores e a chuva que tomba

para dentro das sílabas.

é  então nos ramos que brilham.

 

há  uma pedra grávida que atira metáforas para

o silêncio do poema.

 

As mães andam o tempo todo com um ovo na mão.

 

 

 

maria azenha

2010,lx

 

 

Maria Azenha - (Coimbra/ Portugal).
Licenciada em Ciências Matemáticas pela
Universidade de Coimbra. Professora e escritora.
Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de
Autores. Tem publicado vários livros de poesia.
Email: mariaazenha@netcabo.pt
Blogue: http://estrelasegalaxias.blogspot.com
Mais informação em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Azenha

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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